O Modernismo por metástase

Por Pedro Fernandes




 
O Modernismo acabou. O Modernismo continua. Lidas separadamente é possível perceber apenas o valor contraditório de uma afirmativa em relação a outra. Mas, multiplicando o complexo de contradições, elas juntas designam bem o destino de um acaso que se expandiu mesmo fora das suas fronteiras, além de assinalar que este se fez do inadiável fim do espírito de uma época marcado ora pela sua autoconsciência, ora pelo interesse centrado sempre no passo mais adiante.
 
Entre nós a aventura modernista tomou como marco um evento articulado entre um grupo de inquietos espíritos e um grupo abastado interessado em suprir sua deficiência cultural pela abastança do capital, visto que, desse lado do Atlântico nem sempre as duas coisas coincidem. Mas quando paulistas e fluminenses se reúnem no Teatro Municipal de São Paulo graças à intervenção do baronato do café, o moderno estava disperso variadamente pelo mundo e já por um Brasil sempre aberto às novidades trazidas do exterior. O que ainda faltava — e esse é um mérito inegável do episódio de 1922 — era o aparecimento e mais adiante o estabelecimento de uma consciência própria da modernidade como força motriz de uma vanguarda.
 
A consciência sobre o Modernismo se estabelece desde quando seus mentores descobrem a necessidade de obnubilar o indispensável papel exercido pelas vanguardas europeias ou degluti-lo tornando os seus feitos a matriz para uma vanguarda genuinamente nossa, o que só se gestará muito mais adiante e não pela negativa dos seus constituintes — o material exterior — mas pela naturalização dos nossos em relação a ele, afinal, sempre parecerá problemático querer um arte brasileira fora de uma maneira integrativa. É possível que o Modernismo não tenha executado bem esse tratamento, uma vez que, enquanto vanguarda, sua tarefa estava mais afeita ao papel de, como seta, abrir uma saída à frente, capaz de fomentar uma região fértil para as novas criações.
 
Por um instante só agora alcançado, o Modernismo foi travessia entre um passado — aquele que ansiou por nossa independência mental e cultural — e um futuro aberto espetaculoso que entre nós se materializa como um contínuo devir. Um século à frente de 1922 nos fez perceber melhor a dimensão integradora de um projeto amparado pelo estabelecimento de uma ruptura radical entre as nossas criações (e também nossas mentalidades) então vigentes e as que nesse mesmo instante se gestavam como novidade; e tudo se renova outra vez, seja pelo acréscimo do que não se percebeu no calor dos acontecimentos, seja pela descoberta do trato impositivo que se manteve no interior do programa de rebeldia, seja pela tentativa de consolidar uma integridade entre as inovações de então e as de agora.
 
De toda maneira, duas questões são perigosas quando outra vez nos instalamos numa leitura, ainda que multifacetada, linear de um movimento (chamemos assim) que se situou na perigosa autoafirmação da negação e da imposição — esta última mais pelos leitores dos criadores modernistas que por estes, embora o que estes fizeram em relação ao seu passado iminente coloque leitores e criadores numa mesma ordem sectária. Quer dizer, o eventual estabelecimento de um interesse pela integração entre as personagens do evento de 1922 e de outras noutras frentes do país é algo a ser celebrado, mas ainda com a cautela de não ser isso outra maneira de uma estratégia perversa de dominação que visa usar do silenciado e dos silenciamentos como pódio para o mesmo modelo de domínio que nos deixou um complexo de antinomias, talvez a pior das heranças do nosso colonialismo.
 
Da mesma maneira, é sempre indispensável levantar a suspeita sobre a outra margem, se no impasse entre centro e periferia — para citar um desses jogos dicotômicos cunhados da interiorização do impasse metrópole-colônia — não se encontra ainda quando silenciados reafirmam pela integração o papel indispensável do centro na afirmação de um movimento e de uma mentalidade que agora sabemos descentrada. Se essa janela que outra vez se abre cem anos depois não a mesma que se abriu quando se quis disseminar um legado país afora.
 
É nesse sentido que o conjunto de ensaios organizado por Gênese Andrade para se estabelecer — repare bem no termo — um marco no ano do centenário da Semana de Arte Moderna não deve ser lido apenas com os louvores que até agora recebeu. Modernismos 1922-2022 é uma obra-impasse. É principalmente um rico e espantoso registro sobre as aberturas que se fizeram possíveis a partir da Semana de Arte Moderna, mas é ainda uma perigosa expansão — registre-se o plural do termo-título que se conjuga com o livro-caleidoscópio — capaz de diluir um Modernismo, o que se impôs em São Paulo, como o elo umbilical de tudo, um zeitgeist, do que se estabeleceu país afora, incluindo perspectivas dessintonizadas com o núcleo ideológico do movimento.
 
O que o tempo vigente oferece de novidade é a constante interrogação sobre a unidade e a homogeneidade das formas e dos acontecimentos. No centenário da Semana de 1922 — e este livro-enciclopédia é uma prova — os ufanismos foram guardados e no pior dos casos desvirtuados com os revanchismos que são a moeda de troca das imposições. Mesmo assim escapou dessa longa conversa o contraditório: os vazios e os silenciamentos aparecem de alguma maneira submetidos a certo formalismo de convenção, esse modelo de convivência forjado na pasmaceira dos nossos ambientes acadêmicos. Alguns debates espinhosos são levantados — o negrismo, as vanguardas, o feminismo, as presenças indígenas — e mesmo assumindo a zona fronteiriça que ocupam em relação aos ideologemas dos modernistas findam por se integrar nas circunstâncias já sedimentadas.
 
Mesmo o rico diálogo estabelecido na outra margem — pensemos na recepção dos intelectuais da Literatura de 1930 sobre os ideais modernistas ou ainda no esforço de apagamento a que se dedicaram os leitores do Modernismo em relação aos romances do homem interior, uma pena até agora não cumprida pelos escritores desse segmento — é ignorado enquanto outras questões tão ou bem exploradas passam por um mesmo ou um investimento mais atento, como o caso do aspecto gráfico das revistas modernistas ou o papel das artes plásticas para a Semana, para citar dois exemplos importantes. É verdade que o evento de 1922 e seus desdobramentos constituem o epicentro do livro, entretanto, algumas descontinuidades carentes de enfrentamento passaram despercebidas.
 
As qualidades de Modernismos 1922-2022 resultam da leitura criativa de alguns dos ensaístas — uns poucos perfeitamente integrados às correntezas da provocação visíveis na fase mais radical do movimento — e do acesso a detalhes mais íntimos seja do acontecimento no Municipal seja das suas personagens seja dos desdobramentos. O tratamento de retirar do limbo alguns autores, algumas publicações ou o despontar do interesse bandeirante dos modernistas na difusão de suas ideias fora do circuito paulista somam outro elemento no quadro da importância deste livro para a leitura e releitura do Modernismo brasileiro.
 
Afirmando-se como obra de referência sobre a Semana de 1922, a publicação desse material não redivive esse passado mas o prolonga sobre o presente e para um futuro. Por isso, é ora uma obra de abertura criativa para outras linhas de estudo sobre o episódio-elemento nuclear da coletânea e, por que não, ponto de projeção para outros possíveis capazes de se integrar ao complexo de forças engendrado pelos leitores do Modernismo, mais, repetimos, que pela qualidade criativo-literária dos seus criadores sempre questionável quando colocada em relação com o fora da pequena redoma que habitaram e depois buscaram estabelecer como princípio essencial da nossa literatura, a ilusão ou o desejo vão dos muito audaciosos.
 
De alguma maneira, esse livro e os seus 29 textos se enredam no esforço daqueles leitores que colocam a Semana de Arte Moderna nesse lugar idealizado do estabelecimento dos destinos há muito pensados entre nós: o ideal de uma literatura brasileira, sabemos, se deixa perceber desde as primeiras apropriações temático-linguísticas do nosso barroco. Sua perspectiva integrativa, portanto, considera o Modernismo entre o acontecimento da Semana, isto é, como ponto nodal na nossa história e o que veio depois, mas não como contraditoriamente os modernistas se afirmaram numa tradição vigente negando peremptoriamente esse enlace.
 
Para muitos, se o Modernismo brasileiro nasceu com a Semana de Arte Moderna, morreu com as últimas investidas das personagens que dela participaram. Para outros, e talvez este seja o caso do trabalho agora apresentado, o Modernismo se irrompe com o evento de 1922 e se expande até agora. O fato é que o evento paulista não foi o mais importante do século XX entre nós; fizeram-no importante. E é graças à sua mitificação que nunca o esgotaremos. Mas, se um século depois os debates ainda guardam sua relevância, isso parece o melhor sinal de um evento de permanência na nossa paisagem cultural e literária. O Modernismo acabou. O Modernismo continua.

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Modernismos 1922-2022, Gênese Andrade (Org.)
Companhia das Letras, 896p.
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