O Cangaceiro: o sertão versus a civilização
Por Heto Sazá
O narrador do filme de Lima Barreto se apresenta como
afastado e deixa claro, logo na abertura da narrativa, que a história a seguir
se passa em uma “época imprecisa, quando ainda havia cangaceiros”. Após esse
esclarecimento, O cangaceiro se inicia à la Jonh Ford: em plano aberto,
assistimos a um ajuntamento de cangaceiros montados a cavalo e perfeitamente
enfileirados marchar ao som da canção popular “Mulé rendeira”. As silhuetas
escuras recortadas contra o céu claro conferem um tom elogioso, para não dizer
glorioso, à sequência de abertura, que poderia estar em qualquer faroeste
norte-americano não fosse a especificidade do cangaço; e ele não se demora em
se revelar ao público. Logo na sequência seguinte somos apresentados ao chefe
do grupo, que é também o nosso protagonista, Capitão Galdino, homem rude e
caprichoso, de gestos bárbaros e imprevisíveis.
Com Galdino, somos apresentados também à dicotomia base para
a trama: barbárie versus civilidade. Isso porque ao se deparar com um
grupo de funcionários públicos que mapeavam ali as terras sertanejas, o líder
dos cangaceiros faz questão de esclarecer: “Volte e diga lá pro seu Governo que
ele fica mandando lá nas suas governanças e não se meta no sertão, onde mando
eu”. Pois bem, o sertão que se apresenta aqui não pertence aos domínios da
civilização, diferente de quem o narra, ele tem suas próprias regras e forças.
Essa aversão do vaidoso líder às instituições civis é reiterada mais tarde em
um encontro com um padre, que acaba roubado e ridicularizado por seu sermão,
pois Galdino não reconhece alteridade que não a sua.
Esse é o mote do filme e fica cada vez mais claro na medida
em que a trama avança. Ainda nos momentos iniciais vemos o capitão e seu bando
invadir, com gosto e com jeito, um pacato vilarejo; a mise-en-scène aqui
é desorientadora: balas voam, pessoas correm, cavalos avançam; pintando-se com
isso um retrato de cangaceiros bestializados, que passam por cima de todos com
um sorriso animalesco e debochado no rosto. Ismail Xavier¹ enxerga nisso uma
clara pretensão de apresentar os cangaceiros como verdadeiros “desequilibrados
mentais”.
O que ainda me chama atenção nessa sequência é o tom que o
diretor decide dar à cena, sobretudo, com o seu uso da trilha sonora, adocicada
e graciosa, contrastando sensivelmente com a violência gráfica estampada na
tela. Enquanto o conteúdo é de violência, a ambiência é de aventura; como nos westerns,
estamos diante de um espetáculo de tragédia glamourizado. Mas as influências de
Hollywood não param por aqui. A fotografia do filme, por exemplo, assinada pelo
britânico Chick Fowle, abusa de técnicas típicas à produção hollywoodiana. Lima
Barreto demonstra, por sua vez, uma direção operante e até mesmo rebuscada,
quando analisada em relação aos padrões da incipiente indústria brasileira da
época, principalmente, no que diz respeito à coreografia das cenas e à condução
dos planos. A sua direção é por vezes inventiva, destacadamente, quando lança
mão de close-ups, como quando uma mulher é marcada à brasa na face, e o
filme quebra de supetão o tom aventuroso que vinha desenhando, com um grito
desconcertante de estridente e um zoom-in sufocante de abrupto, para nos
deixar cara a cara com a vítima que agoniza.
As influências de Hollywood podem ser percebidas, também, na
narrativa, uma vez que encontramos aqui um exemplo típico de roteiro
estruturado em três atos. O primeiro deles, após nos introduzir aos personagens
e seu universo, encerra-se na invasão à vila com o sequestro da professora Olivia,
o primeiro ponto de virada, já que é esse incidente que acaba por desequilibrar
drasticamente o mundo dos cangaceiros, colocando em disputa o capitão e seu
bando. Como aponta Celia Aparecida Tolentino², a escolha da profissão da
mocinha, não foi por acaso, pelo contrário, a professora Olivia traz em si, o
signo da educação e, portanto, do progresso, colocando em campos opostos a
partir de seu rapto aqueles que possuem alguma vocação à civilização, por assim
dizer, contra os que a esnobam por completo. O até então cangaceiro figurante
Teodoro ao se apaixonar pela pacata professora decide se levantar contra seu
capitão para livrá-la do cativeiro e vai, com isso, na medida em que desenvolve
seu arco, mostrando-se um homem de princípios.
Temos aqui, além da novelesca disputa amorosa em molde
melodramático, outro elemento básico das construções de tramas clássicas,
inclusive dos faroestes: o duelo entre figuras opostas. Galdino e Teodoro são
perfeitos opostos, no que pensam, no que dizem, no que fazem, são, no mais,
representantes da dicotomia base do filme: um deixa-se encantar pela
civilização, por mais que esteja à margem dela, enquanto o outro não, na
verdade, a despreza. Temos, portanto, um típico caso de bem versus mal
que, como veremos, culminará num duelo final típico de bangue-bangue com o
terceiro ato.
Mas antes disso, temos uma imersão mais íntima no mundo dos
cangaceiros ao conhecer de perto o seu acampamento. O filme adota um tom
folclórico, quase saudoso, usa e abusa do cancioneiro popular: assistimos o
grupo dançar e cantar ritmos típicos, ora coco, ora xaxado, ora forró, ao redor
da fogueira em um retrato pitoresco do bando. Esse sertão incivilizado pode ter
ficado no passado, mas, pelo menos, suas heranças culturais parecem dignas de
alguma manutenção por parte do narrador, que parece enxergar nelas algum
mérito.
Temos, portanto, ao longo do segundo ato, perfeitamente
encaixado na narrativa cinematográfica clássica, uma aproximação mais íntima
com o grupo dos cangaceiros, o desenvolvimento do romance, e o acirramento da
disputa principal, que, como exigem os melhores faroestes, necessita de uma
polarização crescente. Eis que no clímax, a trama chega a um duelo, onde bem e
mal se encaram, nas figuras do desertor e do capitão, levando este último a
melhor. O chefe Galdino não respeita seu adversário, nem na hora de sua morte,
e após caçá-lo por uma caatinga de onças e caraíbas, o mata pelas costas com
uma chuva de tiros. O capitão não tem palavra, não tem honra, pobre sertão sob
suas sedentas mãos. O sertão de O cangaceiro é demasiado distante de
quem o narra e, por isso mesmo, exótico aos seus olhos e incivilizado aos seus
modos.
Notas:
1 XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a
estética da fome. São Paulo: Brasilense, 1983.
2 TOLENTINO, Celia Aparecida. O Rural no cinema
brasileiro. São Paulo: UNESP, 2001.
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