Maus, de Art Spiegelman
Por Sérgio Linard
Escrever resenhas e torná-las
públicas é sempre, além de um desafio, uma atividade de desnudamento na qual se
observa grande risco. Explico. Quando me proponho a vir aqui expressar minhas
percepções sobre um determinado texto, com simples intuito de gerar em vocês a
vontade pela leitura, estou abrindo algumas portas para as minhas
idiossincrasias que não são tão fáceis de serem abertas em escala tão grande.
Ao lerem minhas resenhas, vocês têm acesso direto às minhas escolhas de leitura
bem como aos meus conceitos e preconceitos gerados por e para elas,
especialmente se considerarmos que todas as resenhas até hoje publicadas
partiram única e exclusivamente de vontades minhas e não por quaisquer tipos de
motivações editoriais e/ ou comerciais.
Os tipos de textos que leio, as
origens culturais deles, quem os escreveu, quem os publicou e tantas outras
informações muito preciosas quando escolhemos um livro são simplesmente jogadas
aos “sete ventos” da internet e fico, então, exposto ao escrutínio de todos
vocês. É desafiador.
Por que, dessa forma, coloco-me
nesta posição por livre e espontânea vontade? Não deixa de ser verdade o fato
de que eu poderia simplesmente fazer minhas leituras e, no máximo, compartilhar
uma foto ou imagem do exemplar dizendo: “leiam”, algo que fiz e ainda faço com
certa frequência. Mas isso deixou de ser suficiente para mim.
Alguns livros, após lidos, têm
gerado movimentos internos que me instigam a falar sobre eles justamente por
perceber ali potenciais influenciadores para que mais pessoas adentrem no
universo da leitura e não seria justo que se limitassem a uma foto. São bons
demais para ficarem somente comigo.
No entanto, um dos grandes
desafios em se resenhar uma obra, além dos já citados, está no fato de que este
gênero textual exige uma determinada linguagem que seja capaz de fazer com que
em vocês desperte, efetivamente, o interesse pela leitura do texto apresentado.
Tenho consciência plena de que aquelas pessoas que gastam seus minutos lendo o
que publico podem, ao final, detestar a narrativa resenhada e não querer lê-la;
bem como outras pessoas podem imediatamente adquirir o livro e ansiar pelo
início da leitura. É este potencial que me motiva a publicar os textos.
Veja, se ao final desta resenha
você concluir que jamais lerá o texto apresentado ou que irá adquiri-lo
imediatamente, o saldo é positivo para ambas hipóteses. Publicar livros
tornou-se algo fácil e são várias exposições, todos os dias, o tempo inteiro;
desde textos bons a textos esquecíveis, estamos em contato constante com
distintas produções literárias.
Quando, em um universo enorme de
possibilidades como o que nos encontramos, você e eu conseguimos
conscientemente escolher o que não ler, ganhamos mais tempo
para nos debruçarmos sobre o que ler. Precisamos conhecer o não para
identificarmos o sim. É bem verdade que todos os textos que resenhei até agora
são aqueles de que eu gostaria que você lesse. Mas se você, após minha resenha,
chegar à conclusão que não gosta daquele tipo de leitura, consegui atingir, pelas
vias contrárias, meu objetivo.
Assim, adentro no texto desta vez. Essa
talvez tenha sido uma das melhores leituras que fiz em toda minha vida até aqui.
Será por isso, porém, uma das resenhas em que terei maior dificuldade de me
expressar por dois motivos:
1 – um coração bobo e apaixonado
tem grande tendência para falar elogiosamente sobre aquele alvo da paixão de
forma desmedida. Algo como se não houvesse nada antes nem nada depois daquele
objeto. Esperei a leitura amadurecer por quatro semanas para evitar que esta
resenha seja mais uma “carta de amor ridícula”.
2 – o tema central do livro só é
conhecido por mim por meio dos livros de história, documentários, produções
cinematográficas etc., o que não é, necessariamente, um problema. Contudo,
coloca-me em uma posição de extremo cuidado, especialmente por sua delicadeza.
O tema deve ser sempre relembrado para que jamais seja repetido e para que se
respeite a memória daqueles que sofreram com ele. Essa obrigatoriedade,
contudo, não nos priva de tomarmos os devidos cuidados em nossas abordagens.
O livro resenhado desta vez é a
novela gráfica de Art Spiegelman: Maus (ratos, em
alemão). Esta obra é um sucesso de público e de crítica e está,
novamente, envolvida em burburinhos no mercado estadunidense, onde foi originalmente
lançada, porque algumas escolas de estados conservadores passaram a banir sua
leitura. O único livro em quadrinhos a ganhar o prêmio Pulitzer retornou
para a lista dos mais vendidos, mesmo após anos de sua publicação, justamente
devido a essa proibição e à procura em grande escala pela leitura. Mais um tiro
do movimento de censura que sai pela culatra. Gostaríamos de que todos fossem
assim.
No Brasil, a obra ganhou, em 2021,
reimpressão pela Companhia das Letras, com o selo Quadrinhos na Cia., incluindo
uma belíssima versão em capa dura, contendo as partes um e dois da história do
polonês judeu Vladek Spiegelman, escrita e ilustrada por seu filho Arthur (Art)
e narrada pelo próprio, Vladek.
Os quadrinhos — em preto e branco —
contam a história da família Spiegelman durante a perseguição nazista na
Polônia. A HQ apresenta os acontecimentos desde o início das invasões até o
término da guerra, com respectiva mudança da família Spiegelman para os Estados
Unidos, somente após, depois de muita luta, conseguirem sobreviver aos campos
de concentração, ao frio, à fome e às perseguições sofridas pelo povo judeu
naquele tenebroso e vergonhoso período da história humana.
O texto organiza-se de modo que tudo
aquilo que se passou durante a perseguição sofrida por Vladek, Anja (mãe de
Art) e todos os demais personagens da história seja contado como um flashback.
O pai recebe, constantemente, as visitas do filho ilustrador que, com auxílio
de um gravador, pede para aquele senhor que rememore os acontecimentos do
período em que o nazismo intentou contra a vida dos judeus. Com um inglês
marcado pelo sotaque de quem precisou aprender a língua para sobreviver¹,
Vladek detalha os acontecimentos que levaram ao seu casamento, ao nascimento
dos filhos, à criação de empresas e ao campo de concentração de Auschwitz.
Todos os personagens do texto são
apresentados como animais: os judeus poloneses são ratos, os nazistas alemães
são gatos; as autoridades polonesas são porcos e as estadunidenses são
cachorros. No início da leitura tal distinção não parece fazer muito sentido.
Viradas algumas páginas, percebemos que não poderia ser de outra maneira.
O livro inteiro trata do tema e
das complicações e desdobramentos dele na vida da família Spiegelman de forma
brutal e seca. Não há, em Maus, espaço para quaisquer tipos de
sentimentalismos. Está tudo exposto no preto e no branco para que não reste
dúvidas ao leitor quanto a crueldade de tudo aquilo que fora vivido pelos pais
de Art e sobre como aquilo repercutiu na vida do autor e ilustrador. Os
sentimentos que conseguimos atingir são os de vergonha, dor e sofrimento. Tudo
no livro é muito visceral e está, invariavelmente, acompanhado pelos desenhos
que nos fazem imaginar mais ainda a dor que as milhares de famílias judias
passaram e passam ainda hoje como resultado do holocausto.
O suicídio da mãe de Art é um
acontecimento que acaba servindo como uma tônica para o comportamento do
escritor, do pai viúvo e novamente casado e das relações que ambos têm entre si
e com o mundo. A história de como Arthur Spiegelman reagiu ao suicídio da mãe é uma
das mais sinceras expressões artísticas que já tive a oportunidade de ler.
E não é nada bonita.
Por achar que a experiência
completa precisa ser feita pelo leitor e porque guardei minhas dúvidas quanto a
qualidade das imagens nas distintas plataformas de leitura que este espaço
alcança, não achei justo reproduzir aqui as fotos do texto que, com certeza,
falariam bem melhor do que eu. Por isso, destacarei somente o diálogo que Art
tem — e publica — após a morte de sua mãe, Anja, mas ressalto que a leitura precisa ser
feita em associação com os quadrinhos:
“Bem, mãe, se estiver ouvindo...
Parabéns!... Você cometeu um crime
perfeito... Me pôs aqui.
Deu curto nos meus circuitos...
Cortou minhas terminações nervosas... E cruzou meus fios!
... Você me ASSASSINOU mamãe,
e me deixou aqui pra levar a culpa!!!”
É este tom de luto constante (algo
que Freud poderia chamar de melancolia, termo que prefiro não usar neste
momento justamente pela tendência ocidental de encarar este estado da psiquê
humana como um elemento estético de construção do Belo) que conduz toda a
história. Desde a capa, sente-se, na expressão dos ratos fugitivos, o medo que
eles enfrentam diante da figura amedrontadora de um Hitler em forma de gato.
Este medo, também invariável, é o que acaba por construir em Vladek um senso de
crítica capaz de fazer com que ele seja a típica figura de um senhor “ranzinza”
impossível de se agradar com algo, sempre preocupado em economizar. Lendo a
história daquele senhor, temos uma tendência muito forte para julgá-lo; também
achamos que o filho Art o trata mal.
Na verdade, porém, o que vemos na
horizontalidade e na verticalidade do texto é justamente um dos grandes
problemas da humanidade: gerações que foram forjadas em momentos distintos da
história tendo de conviver, chocando-se com a possibilidade de que aquilo que é
normal para um — como a necessidade de reaproveitar palitos de fósforo —,
seja apenas, na leitura de outro, um movimento de resistência de alguém que não
percebe que o mundo e as condições mudaram. Quem está certo? Quem está errado?
Responder a isto é um tipo de risco ao qual não me submeto, pois, se de um lado
temos a juventude que cresceu apenas sabendo a história, do
outro lado temos a experiência que cresceu sofrendo com aquela
mesma história. Não me parece tratar-se de um jogo de certo ou de errado.
Outra questão pertinente é: nesta
história, quem teria direito à memória? Aquele que viveu ou aquele que leu
sobre ela? Anja, a esposa e a mãe, alimentava diários que esperava serem lidos
pelo filho um dia, segundo o possível bilhete que a memória de Vladek não
parece ter certeza da existência. Aquele sobrevivente, em um impulso pelas
saudades da mulher agora morta, decide queimar todos estes diários. O filho,
após passar toda a primeira parte do livro procurando pelos escritos de sua
mãe, chama o pai de assassino ao saber do destino dos diários. Art queria
aquilo que lhe era de direito; Vladek recorreu ao seu direito de tentar
diminuir o próprio sofrimento.
Vê-se pelas expressões que o filho
não acha que o pai tenha matado de fato alguém, seu receio é, na verdade,
aquele que todos nós temos depois de decorrido um tempo considerável da morte
de um ente querido: Art tinha medo de que a queima dos diários contribuísse
para uma vida em que as memórias de sua mãe ficariam cada vez mais distantes e
remotas.
O texto tem ainda um prefácio,
logicamente na forma de quadrinhos, que apresenta, desde os primeiros traços,
as percepções distintas que motivarão a história e ajudarão a construir este
grande acontecimento da literatura. Como disse acima, em Maus não
há espaço algum para sentimentalismo e a beleza do material está justamente na
forma em que o tema tão abjeto é tratado. É mais um daqueles livros que consegue
ser belo por meio de sua feiura. Neste caso, todas as vísceras estão
expostas e o sentimento que nos resta é somente o de vergonha... E não é a
alheia.
Notas:
1 Aqui cabe o registro do
brilhante trabalho do tradutor brasileiro, Antonio de Macedo Soares, por ter
conseguido manter, no texto em português, essa característica do texto original
de forma primorosa.
______
Maus, Art Spiegelman
Antonio de Macedo Soares (Trad.)
Quadrinhos na Cia., 2005
Quadrinhos na Cia., 2005
296 p.
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