Doze haikus de Kobayashi Issa sobre animais
Por Pedro Belo Clara
Kobayashi Issa. Desenho: Yuki Bishu. |
I.
as abelhas
em volta do poste
— reunião de condomínio
II.
como se não mais
pudessem regressar
as andorinhas rodopiam no ar
III.
como se não quisesse nada
deste mundo
uma borboleta esvoaça
IV.
de repente
o cão pára de ladrar
— a flor de lótus abriu-se
V.
chuva de outono
— o cavalinho vendido
olha para a mãe
VI.
também as formigas
têm um lugar para dormir
— flores de cerejeira ao sol-posto
VII.
gansos de passagem
— o meu coração
também voa alto
VIII.
gatos com cio
separados pela parede
— amantes que não se tocam
IX.
regresso
à minha cabana
e as moscas fazem o mesmo
X.
anoitece
— como chora
o pardalinho abandonado!
XI.
banhado pelo luar
e longe de sua mãe
o potro chora
XII.
em união com o coração
dos lírios
a vaca adormecida
______
Kobayashi Yatarô nasceu em junho
de 1763, numa pequena aldeia da província de Shinano, no Japão. Foi o primeiro
filho dum casal da classe média rural.
Apesar da vida aparentemente
estável, iniciada num lugar dotado duma singular beleza natural, recheado de
montanhas, vales e rios que, invariavelmente, influenciariam a poética deste autor,
cedo o pequeno Yatarô se privou de mãe. Tinha apenas três anos quando se deu a
perda, mas o vazio deixado acompanhá-lo-ia a vida inteira. Temos por prova um
dos mais belos haikus que escreveu, este que de seguida partilhamos:
mãe, choro por ti
enquanto vejo o mar
de toda a vez que vejo o mar¹
Após o sucedido, fica ao cuidado da avó
paterna. O pai, porém, tornará a casar poucos anos depois — uma decisão aparentemente
natural, mas que marcará o início, para o nosso infeliz poeta, duma longa história
de desavenças com a sua madrasta, que sempre o rejeitara, e, posteriormente,
com os filhos desta.
A sua vida foi, na verdade,
bastante instável e atormentada, facto que abordava sem reservas nos vários
diários que escreveu: uma existência marcada por grandes distúrbios familiares,
pela morte de vários filhos e da sua primeira esposa e outras incidências
ocasionais, como o incêndio que destruiu por completo a sua residência meses
antes de falecer.
Vivendo uma infância algo
desamparada, Yatarô encontrava muitas vezes refúgio num templo budista das
proximidades. Mais um acaso que irá marcar o seu trabalho poético, todo ele
atravessado pelos preceitos budistas. Aprende a ler com um poeta, curiosamente,
que também era professor de aldeia, de seu nome Shimpo, sendo ele que incute no
pequeno Yatarô o gosto pela poesia.
Aos catorze anos abandona enfim a
terra natal e a vida difícil que aí tinha, partindo para Edo, a actual Tóquio,
em busca de trabalho. Parece então mergulhar num enorme obscurantismo, já que
se inicia um período da sua existência do qual quase nada se sabe. Crê-se que
tenha desempenhado as funções de copista num templo budista da região e que a
década aí vivida tenha sido um tempo de grandes provações.
Volta a dar sinal de si já perto dos
25 anos, quando entra numa escola de poesia fundada por Chikua, um discípulo de
Bashô, o grande mestre do haiku. É no seio deste grupo que Kobayashi começa a
usar o nome Issa, que significa “chávena de chá”, e publica os seus primeiros
poemas. Poderemos desde já adiantar que, anos depois, tornar-se-ia o mestre deste
grupo após a morte do professor. No entanto, acabaria renegado um ano mais
tarde por se ter afastado em demasia dos preceitos mais tradicionais do haiku.
Perto de completar trinta anos,
regressa à terra natal. Sendo mal recebido, logo se apressa a partir. Dessa
viagem nascerá a edição dum diário.
Mais tarde, decide abraçar por
completo a inclinação budista que já lhe era natural. Vestindo o hábito de
monge laico no seio duma escola de preceitos bem abertos e tolerantes, Issa,
sem regime de reclusão ou sujeito às obrigações dos templos, empreende uma
viagem que durará cerca de três anos, tendo por inspiração o exemplo de Bashô.
Dessa experiência nascerão dois diários que, ao serem publicados, registam um
sucesso notável.
Pouco depois, regressa à aldeia
que o viu nascer ao tomar conhecimento do iminente falecimento do seu pai.
Acompanha-o nos últimos momentos e escreve um novo diário, registando as
peripécias dessa triste inevitabilidade. As dolorosas recordações da infância,
reevocadas nesse regresso a casa, ficam bem patentes num dos haikus que então
escreveu:
a minha querida aldeia
— cada memória do lar
trespassa-me como um espinho¹
Após a morte do pai, recomeçam os
problemas com a madrasta, agora, por motivos de herança, questão que demorará
cerca de uma década até conhecer a resolução final. Entretanto, regressa a Edo
e começa a leccionar poesia. Neste momento, o seu prestígio como poeta de haiku
era notório.
Ao receber a parte que lhe cabia
em herança depois da morte do pai, Issa constrói uma casa num terreno que lhe
fora atribuído. Tendo pela primeira vez um lugar de que se diria legítimo
proprietário, decide casar-se. Contava já mais de cinquenta anos vividos.
Porém, como antes referimos, o novo capítulo somente trará mais dissabores: tem
quatro filhos dessa primeira mulher, mas três deles morrem em muito tenra
idade; ao dar à luz o quarto filho, a esposa, de nome Kiku, também falece. Um
raio de luz no seio de tamanha escuridão: a edição, em 1819, daquela que muitos
reconhecem ser a sua obra maior, A Primavera da Minha Vida (Onaga
Haru), escrita no impulso duma extrema felicidade pelo nascimento duma
filha.
Depois de enviuvar, Issa casa
novamente. No entanto, e sem que qualquer justificação tenha sido deixada à
posteridade, o enlace dura apenas algumas semanas. Mais tarde, já com sessenta
e três anos, Issa contrai matrimónio pela terceira vez, conhecendo finalmente
um período estável e feliz na sua existência. Porém, a felicidade não seria
duradoira: um extenso incêndio florestal devasta por completo a sua aldeia, não
deixando sequer vestígio da casa que habitava. Mudam-se temporariamente para um
celeiro que sobrevivera à catástrofe, com a esposa já grávida. Issa estava
prestes a ser pai de uma filha quando falece, nos primeiros dias do ano de 1828.
O poeta é depois enterrado no monte Kamaru, onde se ergue a seguinte inscrição:
“aqui / a minha última casa / — sob metro e meio de neve”. O celeiro que os
abrigou ainda hoje existe e pode ser visitado.
Não é à toa que Kobayashi é considerado
um dos quatro grandes mestres do haiku, a par de Bashô, Buson (já contemplado
nesta rubrica) e Shiki. A sua obra é extensa, contando com perto de vinte mil
haikus (onde cerca de dois mil são dedicados ou possuem referências a animais e
insectos) e diversos tanka², renga³ e escritos em prosa poética. Embora tal facto
não seja, obviamente, um sinónimo de qualidade, existe na sua obra um carácter
reformador, e por isso original, que o eleva justamente a tão destacado
patamar.
Começando a expressar-se
poeticamente através dos preceitos da escola de Chikua, herdeira de Bashô, Issa
adopta inicialmente muitos dos traços legados pelo velho mestre. No entanto,
com o decorrer dos anos e o múltiplo suceder das suas experiências de vida
consegue desenvolver uma autonomia louvável, firmando a sua própria
singularidade e, como tal, autenticidade num meio que à época vivia em águas
salobras, muito preso ainda aos preceitos clássicos.
Como antes já demos a entender, tal
independência concedeu-lhe vários dissabores, principalmente enquanto professor
de poesia. Ao dar um cunho muito pessoal ao seu trabalho, e com um discurso
quase sempre isento de formalidade, poderia parecer que certas obrigações de
composição eram renegadas — transgressão fatal aos olhos da doutrina clássica.
Julgado como alguém que professava
um certo afastamento à ligação com a natureza e seus elementos, não obstante
ter escrito tantos haikus com referências aos mais variados animais e insectos,
do seu trabalho dizia-se ser subjectivo (não será assim, a certo ponto, toda a
forma de arte?) e demasiado emocional. Era, sem dúvida, muitas vezes impregnado
de crítica social e dum humor bem apurado, capaz de quebrar etiquetas e corar
os rostos mais conservadores, donde sobressai uma imensa piedade ou compaixão
para com as agruras da existência humana e animal.
Apesar de muitos criticarem aquilo
que consideravam ser um declarado sentimentalismo, dada ser a obra tão pessoal,
Issa parecia realmente querer abandonar a obrigação da referência à natureza
para privilegiar o Homem e as suas emoções. Contudo, esclareça-se: somente
renegou o uso duma regra e não a natureza em si, tão-pouco a colocou num
patamar inferior ao Homem. Aliás, sendo budista, e seguidor da escola “Terra
Pura”, a sua atitude é agregadora ao invés de separatista, e muito menos
sobranceira, pelo que a sua linha artística só poderia nascer do amor por todas
as coisas: na sua poesia tanto merece destaque a borboleta como o mosquito, o
gato como a pulga, o cavalo e até, imagine-se, a… lombriga (!).
Porém, não raras vezes o poeta
confunde-se com o ser que foca no discurso poético, fazendo dele o porta-voz
das suas próprias emoções. Basta relembrar o haiku 11 desta nossa selecção:
será que Issa observava realmente um potro que, emitindo um certo som naquela
noite de luar, parecia chorar por sua mãe? Ou o lamento pertencia, afinal, ao
poeta, órfão de mãe tão novo, assim plasmado na cena que contemplava? A poesia
de Issa abre um espaço imenso a questões deste tipo, ainda para mais
considerando a natureza ambígua do haiku.
Para todos os efeitos, Issa foi
vanguardista dum estilo que se foca no Homem e nas suas emoções, levando a
natureza e seus elementos a fixar-se muitas vezes num plano de fundo, embora
com muito maior destaque do que uma mera “nota de rodapé”. É importante
compreender que, tendo ficado órfão muito cedo, era no mínimo natural que esse
sentimento de perda ficasse impresso um pouco por toda a obra — que se
alimentava, notoriamente, do sofrimento gerado por tão atribulada existência. Apesar
de tanto revés, era um homem capaz duma compaixão imensa. Tal virtude, que
brilha com a honestidade dos seres íntegros, concedeu ao seu trabalho não só
uma certa ternura pelo mundo e seus habitantes, grandes ou pequenos, como se
firmou num solo fértil para a frágil flor do amor irromper com toda a sua
singularidade.
Apesar das críticas, foi um autor
bastante lido no seu tempo. Porém, quando faleceu, diversas bibliotecas da
época arrumaram a sua obra nos cantos mais obscuros, ficando assim esquecida
por quase cem anos, até Shiki, o último grande mestre do género, a redescobrir
e sobre ela fazer incidir a luz que merecia.
Hoje, ninguém no mundo das letras
fica indiferente ao talento daquele que justamente se considera um dos maiores
nomes da arte do haiku.
Notas
1 Versão de Pedro Belo Clara a
partir da tradução inglesa elaborada por Sam Hamill em The Pocket Haiku
(Shambhala Pub., 2019).
2 Literalmente, “breve poema”.
Muito em voga nos sécs. IX e X, foi muito posteriormente reformado por autores
como Shiki e, pouco depois, Takuboku — já no encerrar do século XIX e durante
os primeiros passos do seguinte. É um género poético que na sua forma clássica
apresenta trinta e uma sílabas, compostas em cinco versos de acordo com o
seguinte esquema: 5 / 7 / 5 / 7 / 7.
3 Um poema colaborativo, de corpo
encadeado, que esteve na origem do haiku. Era geralmente composto em tertúlias,
onde diversos poetas participavam. Um dos seus grandes mestres foi Sogi (1421 –
1502), embora Bashô também tenha praticado o género.
Ligações a esta post:
* Tradução de Joaquim M. Palma em Kobayashi
Issa, Os animais (Assírio & Alvim, 2019). Selecção e notas adicionais
por Pedro Belo Clara.
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