Cesária Évora, de Ana Sofia Fonseca
Por Solange Peirão
Cesária Évora. Foto: Eric Mullet. |
A diva dos pés descalços
Foi assim que ficou mundialmente
conhecida a cantora cabo-verdiana Cesária Évora. Nascida na Ilha de São
Vicente em 1941, lá faleceu em 2011, com setenta anos.
O festival brasileiro É tudo verdade
incluiu, em sua programação de 2022, um belo documentário sobre ela, a Cize, como
era tratada carinhosamente pelos amigos. Esperemos que, em breve, esteja
disponível nos cinemas e nas redes do streaming.
A língua dominante no documentário
é o crioulo, dos habitantes de Cabo Verde, muitas vezes mesclado ao português, com
narradores ocasionais em francês.
A intenção maior do filme é contar
a vida de Cesária, de cantora local aclamada, a “rainha sem vintém”, como aqui
a chamavam, que ascende ao estrelato internacional, só a partir dos seus 47
anos. E, evidentemente, homenagear, essa que foi a grande cantora das mornas e
coladeiras, estilos musicais típicos de Cabo Verde. Cesária foi a responsável
por sua difusão mundo afora e, em 2019, a morna foi proclamada Patrimônio
Cultural Imaterial da Humanidade, pela UNESCO.
Documentário e História
Projetar, executar e dirigir um
documentário é desafiador. Nesse caso, Ana Sofia Fonseca, conceituada
jornalista portuguesa de reportagens e documentários, é a responsável por
diversas funções, e assina inclusive a direção.
É a fundadora da Carrossel
Produções, colecionando inúmeros trabalhos na área do storytelling. Com
essa bagagem, era esperado que a sua versão para a vida de Cesária tivesse tudo
para ser bem-sucedida. E foi. Para quem tem familiaridade com a área, esse braço
da História que se volta para a oralidade, no que diz respeito ao registro
documental, esse filme é uma preciosidade.
Fazer uso de depoimentos, aqueles
preparados especialmente para o projeto, que guardam, portanto, um
distanciamento temporal dos processos vividos pelos sujeitos focados, garimpar nos arquivos registros de tantos outros que foram gravados no devir de suas vidas
e tornar tudo isso harmônico não é tarefa pouca. Supõe muito domínio, no que
tange à pesquisa e ao arranjo editorial, para que o conjunto conte uma história
e de maneira bela.
No caso de Cesária Évora
tudo isso aconteceu, e mais: sob a destreza da condução, não de um único
narrador, mas de vários. E para quem tem a História como profissão, e é amante
de documentários, não dá para abrir mão de citações, de falas, para comentar o
filme. Como se estivéssemos a ler um bom livro, acrescido dessa fruição que só as
imagens em movimento permitem.
Nessa perspectiva, acompanhem
algumas “pérolas” dos principais narradores:
Cesária Évora, por ela mesma.
“Em Cabo Verde, temos sérios
problemas de finanças, e Cesária é quem tem mais. Primeiro, porque tem
responsabilidades. Segundo, ela é muito bondosa. Gosta de fumar um cigarro, e
gosta de ver as pessoas fumarem também. Eu bebo um copo e gosto de ver as
pessoas beberem também. Eu sempre fui assim. Agora, com um troco a mais, faço
mais movimento.”
Em Los Angeles, 2001: “Aqui não há
nenhum cabo-verdiano com um salão de cabeleireiro? Os americanos não entendem o
meu cabelo. É muito complicado. Pergunta a assistente: como assim? Ele é ruim,
responde ela, com ar de ironia.”
No Piano Bar, no Mindelo, cantando
“Se acaso você chegasse”, com Manecas: “Eu sou Ângela Maria, e o Manecas, Júlio
Iglesias.”
José da Silva, o narrador
principal. Responsável por tirar Cesária da pequena Mindelo, sua cidade na ilha
de São Vicente, e lançá-la para o mundo. Acompanhou-a entre 1988 e 2011.
“O dia que encontrei Cesária foi a
sorte da minha vida. Estava em Lisboa, e descobri o restaurante cabo-verdiano
Monte Cara, onde essa senhora estava a cantar. Uma voz que me comoveu
completamente. Levei-a para minha casa, ficou no quarto dos meus filhos, que se
transferiram para o nosso, do casal. Conhecendo sua história, meu foco era
ajudá-la a ganhar dinheiro.”
“Ela cantava em bar, não sabia
fazer show. No ensaio, cantava vinte minutos e queria parar para fumar e
beber. Era tímida. Necessitava do álcool para poder subir no palco. No Théâtre de
la Ville, o dono veio assistir ao ensaio. Ficamos tensos, mas ele mesmo trouxe
a solução. Colocou uma mesa, com água e bebida, no palco. Cesária fazia suas
pausas.”
“Cesária entrou no Olimpia, com uma
vontade que deixa a gente de boca aberta. Quando o dinheiro chegou no banco, no
Mindelo, ela foi lá e disse: quero meu dinheiro. O gerente: não pode sacar o
dinheiro todo, é muito. Ela: é meu, ou não é, o dinheiro? Começou um escândalo
dentro do banco. Foram buscar sacos. Ela disse para a filha: leva isso pra
casa, eu vou pro Café Royal. Começou a dar o dinheiro pra um e pra outro, e
nunca fez sua casa.”
“‘Mar azul’ (1991) mudou nossa
vida. Como uma mulher negra, de pé descalço, com uma indústria obcecada por
beleza e juventude, pode ter sucesso? Quando procurava as gravadoras, eles
ouviam a voz dela, e diziam: extraordinário! Quando mostrava as fotos dela,
eles diziam: não, não! Um, chegou a me mostrar a foto de uma loira e disse:
isso é que o mundo quer atualmente. E eu respondi: com essa senhora, vou fazer
o mundo chorar!”
“‘Miss perfumado’ (1992) e depois ‘Sodade’
(1994) foram os lançamentos que explodiram. ‘Sodade’ é a canção que homenageia
os emigrantes cabo-verdianos, que foram maciçamente trabalhar nas plantações de
cacau de São Tomé e Príncipe. O jornal Libération deu manchete de
primeira página, em matéria extensa, para Cesária, o que nunca tinha acontecido
com um artista. Nos anos que se seguiram, com shows pelo mundo todo, a Sony nos
procurou para tomar conta de tudo. Então decidimos, nós cuidamos de toda
produção e vocês só fazem a distribuição. Eles resistiram, mas aceitaram.”
“Entre os trinta e quarenta anos,
Cesária passou trancada em casa. Ela silenciou-se. Nesse período, Cabo Verde
libertou-se do colonialismo. Nós aqui na rua, na euforia, pela conquista da
liberdade, e ela presa em sua cabeça.”
“Quando veio o primeiro derrame,
conseguimos recuperar a voz, mas os médicos avisaram, se vier um segundo, ela para
de cantar. E foi o que aconteceu. Ela insistiu, e foi para o estúdio gravar. Eu
não consegui acompanhar. Ela foi, e não conseguiu. Pensei: agora o mundo cai,
agora só falta morrer. E foi o que aconteceu”.
Manuela Fonseca, amiga de infância.
“Conheci Cesária, ela com 6 anos e
eu com 8. Meu pai, quando comprou a casa, herdou um cão e uma cozinheira. Era
Joana, a mãe de Cesária. Ela ia em casa, e brincávamos de ser senhoras. Eu era
sempre a senhora, e ela a empregada. Brincávamos no quintal. A Cesária não
podia, não ficava bem, nem devia entrar em casa. Era a época, era o tempo. Era
uma sociedade estratificada, onde havia ricos e pobres, brancos e não brancos.
E para ser branco, não precisava ser branco de pele. Os brancos eram pessoas de
posse. E a Cesária, é claro, não era gente branca.”
Rosa Delgado, amiga do orfanato.
“Bordávamos, íamos à igreja, à
escola. Aprendíamos o que era preciso para sobreviver, ou para arranjar um
marido que nos ajudasse. A Cesária tinha verrugas nos pés, que não a deixavam
andar. Ela cantava. Tinha boca grande e nariz de clarinete. Mas ela não gostava
do orfanato. Passava uns dias, e ela fugia. A mãe trazia de volta, e ela fugia.
As freiras falaram que ela era um mal exemplo para as meninas. Cesária fez bem
de fugir. Ela não tinha nada, era como nós. Se tivesse ficado, não tinha fama,
não tinha casa, não tinha meios para ajudar ninguém, porque ela ajudava todo
mundo. Era uma mulher livre, à frente do tempo dela.”
Cesária Évora, pessoa e artista
Sim, Cesária Évora foi uma mulher
à frente de seu tempo. Mesmo vivendo numa sociedade patriarcal, racista e de
corte escravocrata, foi à luta. Luta pela sobrevivência, antes de tudo. É
curioso, como em todas suas declarações, antes de se tornar celebridade, e
consequentemente rica, seu discurso é marcado pelo desejo de ter uma casa para si
e para a família, para viver em paz na velhice, e poder ajudar as pessoas.
Isso ela concretizou. As cenas que
marcam a fase da prosperidade, em sua casa, enfim construída, são muito interessantes.
Havia comida em abundância, com o travesti Piroc a comandar a cozinha e o
preparo da célebre cachupa, o prato típico da ilha. No fundo, era um grande albergue, por onde
transitavam famílias, agregados e muitos que vinham à procura de ajuda, a ponto
de haver uma agenda para isso. Ela conversava com as pessoas, muitas vezes, da
janela. Lembra fortemente as instituições de caridade, com filas à porta para o
atendimento.
Já próximo ao fim da vida, há uma
cena marcante. A plateia lotada pede bis, e ela diz aos assistentes que precisa
finalizar, está cansada. O narrador verbaliza o que sua feição mostra. A diva
de pés descalços está no limite, com tanta requisição de toda ordem, e precisa
de isolamento, de silêncio. Isso nos remete à contradição que essa mulher
viveu: doar-se ao extremo, como pessoa e como artista, mas enfrentar um
diagnóstico de bipolaridade que chamava para o isolamento.
O documentário dá a ideia correta
do alcance de seu sucesso, com viagens por países em todos os continentes, a
ponto de ela ligar, na madrugada, para a assistente, e perguntar onde estava. Um
episódio muito interessante é o encontro dela, em Cuba, com Compay Segundo,
para uma gravação conjunta. Dois senhores, duas estrelas. Poderia dar certo?
Quase não deu, foi hilário, mas acabou de forma carinhosa.
De volta ao documentário, fonte
da História
E retornamos ao começo, desse
quase ensaio, para falar das fontes documentais, que os historiadores tanto
prezam. Impressiona como, aos depoimentos, se agregam as matérias impressas, as
belas filmagens da natureza da ilha, dos contrastes entre a fase pobre da vida
de Cesária, cantora de bares e clubes, para a artista internacional. Sem falar
que não faltou a inserção dos registros históricos de contexto, como os
movimentos de libertação colonial. Interessante como as fontes se entrelaçam
com naturalidade, de maneira integrada, com cortes precisos, mas nunca bruscos.
A leitura de Ana Sofia Fonseca
sobre Cesária Évora condiz com sua tremenda sensibilidade e capacidade como
pesquisadora, roteirista e diretora. Enfim, um belíssimo documentário. Os
historiadores agradecem.
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