Carlos Emílio Corrêa Lima, pedaços da história mais longe
Por Pedro Fernandes
O ego de todo escritor sempre se
acomoda penosamente no seu corpo e não importa qual sua estatura. Alguns poucos
disfarçam isso na modéstia outros estendem-no para o domínio do gênio, outra matéria
indissociável de um grupo de criadores em contínua extinção (ou sempre foram
raros?). Ora, quem conheceu alguma vez Carlos Emílio Corrêa Lima encontrou nele
esses elementos que oferecem apenas duas possibilidades de convívio: a sedução
ou o distanciamento. Para os tempos que correm, é mais comum a iniciativa segunda,
mesmo porque, é esta uma era de falsos escritores e de gente falsa, se
pensarmos no esforço de muitos em figurar na calçada da fama ou desses ou outro
tanto que se magoa com um dedo de sinceridade a mais levantado pela crítica,
para citar dois fenômenos dos recorrentes na nossa confraria.
Sempre se diz que os escritores do
nosso tempo estão mais livres porque não submetidos ao estatuto dos agrupamentos,
o que não é verdade. Os medíocres, por exemplo, formam o grupo dominante e
trabalham continuamente para o silenciamento da pequena parte que destoe mesmo
minimamente; sim, a mediocridade também se mede pela covardia. E, em todos os
casos, se calar é sempre preferível a se mostrar publicamente no debate com aqueles
que não se escondem. E todo aquele que se cala consegue estabelecer uma certa
unanimidade. O problema é que, para repetir o rifão de Nelson Rodrigues, toda
unanimidade é burra. E se devemos desconfiar dos empurrados para a margem do
sistema, desconfiemos triplamente dos que estão no seu centro. Raramente
prestam.
A morte repentina de Carlos Emílio
Corrêa Lima no dia 2 de abril de 2022 foi assunto entre todos os que conviveram
com a obra do escritor. Mas, os nomes vivos da literatura cearense preferiram a
ignorância. Não encontramos nenhuma crônica nos jornais. Uma rara ou tímida
nota. E aqui ou ali nas redes sociais, certa acusação do homem de bílis amarela.
Talvez isso esclareça um pouco os dois parágrafos que abrem este texto e ao
mesmo tempo nos provoque a refletir sobre o próprio destino da literatura no
nosso país, cada vez mais refém do modelo de escritor sobre o modelo da obra,
ou pela confusão entre o homem e obra, entre ideologia e obra, tratando esta sempre
como uma extensão do criador ou de uma posição ideológica, isto é, uma perigosa
segmentação que coloca em suspeição nosso capenga e pequeno sistema literário.
Esse silêncio, embora seja apenas uma continuidade do experimentado em vida, é
ainda mais terrível, porque é como a negação de toda uma existência devotada ao
trabalho com a literatura como foi a deste escritor.
E não foi apenas na obra, marcada
por um Ceará transfigurado, o que fez Carlos Emílio Corrêa Lima; foram os trânsitos
culturais entre o escritor firmado e os escritores em afirmação, foram as
várias ideias públicas que visavam retirar do desconhecido os criadores,
permitindo-os irmanar-se pela arte exercida, o que é, sem dúvidas, o gesto mais
nobre de um intelectual: sair do bafo frio do seu gabinete, do cômodo convívio com
os falsos sorrisos da confraria, e se colocar para o outro. Além dos vários
veículos literários — os jornais O Saco Cultural (1976-1977), Letras
& Artes (1980-1990), as revistas Siriará (1980), Nação Cariri
(1978-1980), Cadernos RioArte (1980-1990), Arraia Pajéurbe
(2000-2012) —, os eventos públicos de poesia como CEP 20000, Centro de
Experimentação Poética do Rio de Janeiro (1990), as Rodas de Poesia e Percussão
(1999-2000), as Zonas Poéticas Liberadas (2003-2008). Quantas vivências foram refiguradas
no convívio com tais espaços de convivência, experimentação, criação e revelação
neste país que persiste na gourmetização da cultura e no encilhamento das
mentes criativas? O engajamento artístico de Corrêa Lima, possivelmente
compreendido à luz dos vários movimentos que se estabelecem na democratização
da literatura no Brasil, do qual se destacou a Poesia Marginal na década de
1970, é já um feito suficiente de reconhecimento sobre sua importância para a
nossa cena literária.
À essa carreira se firmou o
intelectual com registro. Depois de abandonar o curso de Medicina há um ano do
ingresso na faculdade, buscou nas letras a extensão do seu ofício iniciado
precocemente ainda aos catorze anos. Sua entrada para o curso de Letras
acontece em 1976, mas o primeiro livro de contos é publicado seis anos antes, Solário.
Em 1982 interrompe um mestrado em Literatura Espanhola na Universidade de Yale,
nos Estados Unidos, e só retornará ao interesse de se dedicar à vida acadêmica
nos anos 2000: conclui mestrado em Literatura Brasileira (2002) pela mesma
instituição de graduação, a Universidade Federal do Ceará; e doutorado em
Estudos da Linguagem/ Literatura Comparada (2018) na Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Também na pesquisa, seu interesse se organiza em torno das
poéticas colocadas à sombra: primeiro a obra do escritor simbolista Virgílio
Várzea, estudo que é publicado como Virgílio Várzea. Os olhos de paisagem do
cineasta do Parnaso (2002); depois, o estudo do primeiro livro escrito por
índios no Brasil, a cosmogonia “Antes o mundo não existia”, dos autores desãna Umúsin
Panlõn Kumu e Tolamân Kenhíri (1980 e 1995) do noroeste amazônico brasileiro.
Mas, o editor, o agitador e o
estudioso da literatura brasileira foi ainda o jornalista e crítico-ensaísta
com publicações em veículos como Última hora, o suplemento cultural de O
Estado de São Paulo, o Jornal da tarde, Jornal do Brasil e as
revistas Isto É e Visão, para citar alguns; foi o poeta (que nunca
chegou a publicar um livro de poesia, mas não deixou de cultivar este gênero),
o inventivo prosador encontrável nos romances e contos que escreveu. Além dos
livros citados, encontramos na sua tábua bibliográfica A cachoeira das eras
(romance, 1979), Além, Jericoacoara. O observador do litoral (romance,
1982), Ofos (contos, 1984), Pedaços da história mais longe
(romance, 1997), O romance que explodiu (contos, 2006) e Maria do
Monte. O romance inédito de Jorge Amado (romance, 2008).
André Seffrin escreveu que o
escritor nascido em Fortaleza em 1956 “tem cadeira cativa entre nossos
prosadores mais densos e dotados de imaginação. É criador que conduz a
narrativa num crescente magnetismo verbal que, apesar de nebulosidade dos
enredos, acaba por atrair o leitor com seus sortilégios e elasticidades semânticas,
nos domínios do fantástico, do surreal e do órfico.” O crítico integra-o no rol
dos nossos simbolistas órficos, “dos escritores assistidos pelos encontros
mágicos que, é claro, parecem acontecer por acaso”, uma linhagem que inclui Raul
Pompéia, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector, Walmir Ayala, entre outros.
Mas, é possível compreender que toda
a obra de Carlos Emílio Corrêa Lima se integra a outra grande linhagem da
ficção imaginativa latino-americana, principalmente por encontrar no imaginário
dos povos originários a tour de force para a constituição da prosa, estabelecendo
entre nós uma prática escritural distinta do artificialismo da prosa modernista
— que encontra na narrativa indígena apenas uma guia ou temário, como fizeram
os narradores do romantismo. O romance de Carlos Emílio encontra-se, por isso, ao
lado de obras como Pedro Páramo, de Juan Rulfo, ou Eisejuaz, de
Sara Gallardo, para citar dois títulos dos mais lembrados entre os leitores
brasileiros. Quanto ao trabalho com a linguagem, sempre subversivo em relação à
sintaxe dominante, seja porque interessado em envolver a oralidade nas linhas
da escrita, corrompendo uma e outra ou arrastando para uma condição integrativa,
seja porque interessado em inaugurar uma língua própria sempre variável de obra
para obra, explodindo-se no balé disruptivo, sua prosa deixa-se ouvir as
complexificações de um Cabrera Infante, Alejo Carpentier, Severo Sarduy ou
Guimarães Rosa.
Seu último romance, Maria do
Monte, pode ser lido como uma obra que se dirige para os destinos de síntese
do projeto criativo. É uma narrativa, conforme afirmado em leitura apresentada
aqui (veja no final do texto), em que o fenômeno da linguagem (ou seria a linguagem como fenômeno?) se
impõe como síntese-simbólica do mundo; ela é desdobrada numa dinâmica de ritmos
e sensações. É recorrente acusar que ao se centrar na linguagem, os escritores
dessa estirpe, incorrem num distanciamento do social — algo facilmente
desmontável.
Carlos Emílio Corrêa Lima foi o
escritor de farta imaginação. Sua literatura se encontra na terceira margem;
nela, entre a realidade que vivemos e a realidade que supomos, encontra-se o
fabular, este em-si da literatura. Fincado no que chamamos de literatura
de invenção (a redundância dói, claro está), sua obra perscruta que entre o
mundo conhecido e o da imaginação, é ainda aqui que se pode erguer um mundo
autônomo, com funcionamento próprio, capaz de oferecer uma alternativa ao
exterior degradado ou marcado pela corrosão da experiência ou ainda subverter
pela subjetividade a objetificação imposta por um sistema de domínio que
prescinde de sujeitos alienados ou incapazes para acessar a dimensão do
simbólico. O desfazimento do irrisório para assumir a literatura como plano
dominante sobre as linguagens em curso não seria uma alternativa — radical — sobre
a ordem social?
Se não aceitamos corretamente isso
ao tratar as chamadas literaturas de invenção é porque ainda não conseguimos
alcançar o passo que nos falta para uma independência no mundo: a linguagem não
existe apenas como nomeação das coisas, mas é instrumento de renovação das
coisas. Nossos ancestrais sabiam disso e ao recorrer a eles, a literatura de Carlos
Emílio Corrêa Lima afronta não apenas os silenciamentos que contra eles se impuseram
no âmbito das práticas de domínio colonial, mas cobra dos seus leitores uma
posição outra, contrária à ordem dominante. Curiosamente, essa atitude
revolucionária encontra resposta nos silêncios sobre o escritor e sua obra. São
eles, o ponto nevrálgico, o sintoma, de um sistema aprisionado na rédea do facilitismo
com o qual aprendemos a continuar na posição de submetidos, preferível dos
sistemas de dominação, e pior, repetindo as mesmidades que esses sistemas nos impõem.
Carlos Emílio Corrêa está no oposto disso. O preço a se pagar é alto, mas o
dever da subversão é tão ou mais relevante que seu trabalho e sua obra contribuíram
sim para mover a necrosada engrenagem do nosso sistema literário.
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