Vidas secas: o mais árido movie
Por Heto Sazá
Vidas secas (1963) faz questão de deixar bem claro, logo no primeiro plano, com um letreiro em tela: o filme trata-se de uma nota de esclarecimento sobre a realidade sertaneja e uma chamada pública à luta. O filme, por isso, começa e termina no mesmo fatídico lugar: na seca, na penúria, na miséria; começa e termina ciclicamente, tal qual a natureza que ele desnuda: num grito, alarmante e desconcertante. Melhor preparar o estômago, pois o que virá não será fácil. O filme a seguir não é daqueles que nos alisa a cabeça, pelo contrário, parece mais interessado em nos socar a barriga.
A primeira fala de Sinhá Vitoria é
reveladora, diz muito sobre uma gente que mal fala e, se fala, é feito bicho,
num grunhido. Ela, exausta e esfomeada
pela longa viagem, mata o papagaio de estima da família na mão e se justifica
dizendo “também, (ele) não falava, não servia pra nada”. Mas, mais reveladora
ainda é a sua fala final, pois agora, no desfecho de sua jornada, ela vê a si
mesma enquanto bicho, reclama de sua mazela, de sua “andança sem fim”, pelas brenhas
e veredas sertanejas, sonha com a cidade e com a escola, com a alfabetização e
com a humanização, e questiona mais ao público que a seu interlocutor: “um dia
temo que virar gente. Pudemo continuar vivendo que nem bicho, escondido no
mato, pudemo!?”
O poder desses diálogos, enxutos e
robustos, revela o primor do texto-base, escrito por Graciliano Ramos em 1938,
e o cuidado do roteiro, consciente e coerente, adaptado às telas por Nelson
Pereira dos Santos quase trinta anos depois. O tom de Nelson tanto para o
roteiro quanto para a direção parece irretocável. O cineasta lança mão de uma
abordagem sóbria e austera. Se o conteúdo da obra já é por si impactante, é
ainda mais acentuado pela perspectiva crítica e documental do diretor: aqui a
comida é crua e o prato frio, por assim dizer. Diferentemente do jovem Glauber
Rocha que dirigiria seu imponente Deus e o diabo na terra do sol (1964)
apenas com 25 anos de idade, Nelson ao produzir Vidas secas já era bem
mais maduro e dono de um currículo respeitável, tendo inclusive roteirizado,
dirigido e atuado em outro filme dentro do universo sertanejo ainda em 1961: Mandacaru
vermelho.
Nelson foi, na verdade, o
precursor do Cinema Novo com seu Rio, 40 graus (1955), filme introdutor,
por sua vez, do neorrealismo italiano no Brasil, com sua montagem crua e sua
linguagem nua, atenta a realidade periférica carioca. A influência italiana fica
clara também em Vidas secas, em especial, na forma como Nelson conduz a
sua mise-en-scène, de modo a aproximar a película o máximo possível de
seu objeto-realidade. Essa escolha fica cristalina no que diz respeito à
preparação de elenco, formado, inclusive, por não atores, como a extraordinária
Maria Ribeiro que interpreta Sinhá Vitoria, em seu olhar arrebatador. É
evidente, ainda, na fotografia documental, com sua captura fiel da iluminação
direta. Diferente de O cangaceiro (1953) de Lima Barreto, que ganhou
fama uma década antes pela sua abordagem hollywoodiana sobre os sertões e seus
tipos, aqui não se pode, nem ao menos, olhar o céu sobre a caatinga: ele
aparece estourado num mar infinito de luz, que nos dá mal na vista, que nos dói
de tão claro.
Apesar de tamanha dureza, o filme é
assumidamente sensível; ele olha admirado, contempla apaixonado o seu objeto,
pois é capaz de ver nele mais que a miséria imediata, consegue sonhar com ele:
com a cama de couro de Sinhá Vitoria, com os preás gordos de Baleia. No mais, o
filme é sensivelmente poético. Tomemos como exemplo a tão sonhada chegada da
chuva no sertão: ela chega com um tiro, literalmente, um tiro cortante que
quebra em pedaços a “cegueira branca” da caatinga a perder de vista. O bom uso
do som se mostra também nas sequências de falas sobrepostas entre Fabiano e
Sinhá Vitória, mais grunhidos simultâneos do que diálogos, pois não se entendem
em linguagem.
A gente aparente aqui é
propositadamente rude, bruta, animalesca. E, mais uma vez, diferentemente do
filme de Lima Barreto, que insinua de maneira disfarçada e aventuresca o
caráter desumano do seu bando de cangaceiros, aqui a mensagem é clara e direta.
Ainda em comparação com O cangaceiro, em Vidas secas
os desafortunados não dominam o sertão, não bandeiam livres por matas
exuberantes, mas agonizam, passivos, sob as botas das velhas e tradicionais
oligarquias rurais; aqui eles não vivem em uma caatinga romântica, e sim, no
Brasil de verdade, que aliás, é o país pré-64 e que, depois de muito tempo,
parece ter descoberto, enfim, o seu rural-real.
Aqui o coronel, tal qual nas
terras de Deus e o diabo na terra do sol, rouba descaradamente o pouco
que tem o vaqueiro; o que muda é a reação: enquanto no filme de Glauber, o
trabalhador decide matar o patrão, algo que altera radicalmente o curso da
trama, aqui ele se rende à inação. Pobre Fabiano, ignorante e incapaz, ele “não
tem miolo”, “não sabe fazer conta”, “não sabe ler”; pobre coitado, ele apenas
apanha, nas mãos do rico coronel, do funcionário público e do soldado
amarelo.
Pobre Fabiano, ele e sua família
são, antes de tudo, tristes desajustados sociais, e marginalizados que são pelo
Estado, mal cabem nas roupas limpas de ir à missa aos domingos. Pobres
coitados, se não se sentem confortáveis nem mesmo dentro da casa de deus, onde
mais podem pedir pela benção da chuva, quando só ela os salvará? Salvará? Aqui,
diferente do “Banquete de signos” de Zé Ramalho não se pode “Saracura do brejo
na novena”.
Diante da ausência de mais uma Instituição, só
lhes resta, então, recorrer às rezadeiras e benzedeiras, genuínas bruxas
sertanejas, que carregam nas vozes e nas ervas, os preparos mágicos contra
tanto inferno. E é aqui que pergunta o menino mais velho: “mãe, é aqui o
inferno?”, “você já foi lá, já viu?”. E é diante de tanto inferno que Vidas secas,
a meu ver, sintetiza melhor a Estética da fome do que o próprio Glauber. Tudo
aqui conduz à inevitável fome: a crueza da direção, a dureza da gente, a
miséria da fala. Aqui ela se revela em tudo: da arribação das aves à morte do
gado. Aqui ela engole de tudo: das entranhas das personagens às folhagens das
árvores. Aqui ela mata até baleias de fome.
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