Um chá bem forte e três xícaras, de Lygia Fagundes Telles
Por André Cupone Gatti e Guilherme de Almeida Gesso
Antes do baile verde é talvez o livro de
contos mais conhecido e aplaudido de Lygia Fagundes Telles, e desde o seu
surgimento em 1970 vem se firmando como um dos pontos altos da contística em
língua portuguesa da segunda metade do século XX. Verdade seja dita, porém, há
irregularidades, no livro, de um conto para outro, e apesar da escrita ser
sempre limpa e bem urdida, nem sempre a narração, às vezes explícita demais,
alcança a excelência literária; por outro lado, quando Lygia constrói tramas laterais,
discretas e quase nulas, e impregna algumas poucas palavras aparentemente
despretensiosas de significações decisivas, alcança-se a primazia no gênero.
Exemplos de contos dessa espécie, e que são obras-primas não só do século XX,
mas da literatura em língua portuguesa desde sempre: “O menino”, “Meia-noite em
ponto em Xangai”, o machadiano “Antes do baile verde”, e o discretíssimo,
enganador e de trama quase inexistente “Um chá bem forte e três xícaras”,
objeto desta nossa análise.
A narrativa nos apresenta a
duas personagens que entabulam uma conversa. A patroa (Maria Camila) está
sentada no jardim, reflexiva e inquieta. A empregada (Matilde), dando sequência
a uma costura, está apoiada no batente da janela da casa, posicionada em
direção ao jardim e à patroa. As duas tangenciam o que nos parece serem
amenidades. Logo compreendemos que há, por parte da patroa, a suspeita de que
seu marido a trai com uma mulher mais jovem. Esta, nas últimas linhas, vem
chegando ao cenário em questão. O conto termina quando a ansiedade pela
aproximação da jovem mulher toma conta da patroa e da empregada.
Limite, encenação e gesto
Somente na modernidade o conto foi mais atentamente
estudado, formalizado e testado, de modo que surgiram visões nem sempre
concordantes de quais elementos estruturais e narrativos seriam definidores do
gênero. Guy de Maupassant, Edgar Allan Poe e Anton Tchekhov certamente são os
três mais proeminentes renovadores do conto no século XIX. São, em poucas
palavras, os pais do conto moderno. Para cada um, no entanto, o conto demandava
processos formais distintos: enquanto para Maupassant e Poe o essencial
resumia-se a elementos que dramatizassem notavelmente a linha narrativa —
embora o francês findasse essa linha numa descida subsequente ao ápice da
história, e o estadunidense elevasse o suspense ao último grau, findando o seu
texto no momento da erupção dramática —, para Tchekhov o conto devia trazer um
não dito significativo, ações mínimas, intrigas silenciosas sustentadas por
nenhum artifício senão a sugestão. Machado de Assis, desconhecendo a obra do
russo, escreveu preciosidades valendo-se de processo similar. Lembremos de
“Missa do Galo”. Lygia Fagundes Telles, mesmo tendo se aventurado em diversas
vertentes do conto, também faz parte dessa linhagem de contistas para os quais
a discrição é a lei máxima.
Em “Um chá bem forte e três xícaras”, como em muitas outras
de suas composições, Lygia faz um recorte mínimo da trama, de maneira que o que
não está dito é tão ou mais importante que aquilo que se apresenta, e não pode
ser deduzido senão pelo leitor atento e desconfiado, que vislumbre nos sutis
detalhes do campo os dilemas do extracampo. Lygia, nesse sentido, aproxima o
conto da fotografia, fazendo do limite a baliza dramática do texto, e de tudo o
que é visível um elemento enganador, que só poderá ser decifrado à luz de
palavras e situações periféricas, indícios de um outro texto além da moldura.
O limite, para além da estrutura do conto, está traduzido na
mise-en-scène e no cenário, manipulados com precisão pela autora. O jardim
entre a porta da rua e a porta da casa é o enxuto teatro onde atuarão as
personagens. A patroa, posicionada no centro desse palco, sob a luz do sol,
dialogará com a empregada, seu antípoda cênico, alojada às margens do cenário,
encostada no batente da janela da casa, de frente para o jardim, sob a penumbra
dessa fronteira, a fronteira entre jardim e casa, mas também a fronteira entre
explícito e eclipsado, e entre ator e espectador. Essa tensão dialógica,
expressa na materialidade cênica, é, acima de tudo, um jogo entre réu (patroa)
e juiz (empregada), sustentado pela recusa e reticência do primeiro, e pela
provocação e sadismo do segundo. Por fim, os gestos, unidades menores da
fisicalidade teatral, estão igualmente impregnados pelo jogo proposto: as mãos
da patroa mais de uma vez movimentam-se em recusa; as mãos da empregada
costuram, munidas de agulha. Uma paralisa o dilema, a outra o fere, o costura,
o induz à confissão. O dilema da mulher traída, no entanto, como veremos mais à
frente, é secundário, enganador, motivo para se explorar um dilema mais cruel.
Analogia e correlato objetivo
A mise-en-scène concreta que o texto dá a ver,
singularizada pelo manifestar-se muitíssimo bem definido do espaço e som,
veicula uma técnica narrativa pretendente à visibilidade, ao mundo exterior, à
supressão da psicologia. Lygia, aqui, não busca o fluxo de consciência ou as
várias idas e voltas de uma mente atormentada; tampouco projeta um narrador
ubíquo, capaz de penetrar na alma de seus personagens; vê tudo de fora, pois
tudo são gestos, movimentos, ações. Mas não se pense que há no conto qualquer
gosto behaviorista. O recurso à exterioridade não esvazia a riqueza anímica,
antes a enriquece a partir de uma rede de analogias, rede que tece vínculos
insuspeitos entre, por um lado, o jardim da casa, as flores, os insetos, a
atmosfera geral e, por outro, a procela que são as maquinações de uma mulher
que se crê traída. Como, no entanto, apenas entrevemos tais preocupações,
estabelecem-se metáforas in absentia que precisam ser reconstituídas
pelo leitor atento, à força de imaginar em que medida uma rosa obscenamente
vermelha mais a borboleta que lhe suga o sumo iluminam a crise da protagonista
opaca.
Trata-se, portanto, de uma forma estética que prefere o
mostrar ao dizer explícito, teatralizando os eventos para esconder ao máximo a
presença do narrador. Nesse regime do showing teatral, aquilo que T. S.
Eliot chamava de “Correlato Objetivo” passa a exercer sua inigualável força.
Extirpada a verborragia da análise psíquica, tão própria dos principiantes,
tudo o que poderia ser explicado como conteúdo mental, toda a série de
lugares-comuns que poderia reduzir o drama da esposa abandonada encontra uma
concretização particular, objetiva, que justamente por sua sutileza e laconismo
eleva o texto ao cume da perfeição. Sendo o conto forma breve, Lygia se
concentra no essencial: quanto menos ela diz, mais significativas se tornam
suas linhas. De sorte que só nos resta lidar com o curioso paradoxo de que o dramatic
mode, como escolha narratológica afeita à superfície das coisas,
consiga, na pena dessa maravilhosa escritora, mergulhar no mais fundo da alma.
E isso, sem chamar a atenção, por um segundo sequer, para a virtuose técnica
que está em jogo.
Subtexto social
Mas uma releitura cuidadosa suscita dúvidas. É que à
primeira vista, o texto, como destacado, é exemplo definitivo de concisão
literária. Quando revisitamos suas páginas, porém, percebemos que os diálogos
entre a patroa e a empregada parecem excessivos, didáticos, explicativos
demais. Começamos a cogitar uma possível imperícia; uma capacidade de
construção cênica denegada pelo efeito morno dos diálogos, que serviriam apenas
à contextualização óbvia do drama.
Pouco a pouco percebemos que não, Lygia não errou. Ela está
na verdade nos enganando, construindo uma armadilha das mais perigosas. As
perguntas da Matilde a Maria Camila, em vez de cumprirem o papel de informar
sobre os antecedentes psicológicos que dariam base à trama, são uma espécie de
tortura sádica; a empregada pergunta já sabendo as respostas, pergunta querendo
acossar a mulher supostamente traída. Suas indagações viram vingança social: se
ela leva pitos mal-humorados da dona de casa e não pode reagir, resta-lhe
espezinhar a oponente com falsas dúvidas lançadas sob medida para evocar a
traição do marido. Assim, com sinuosidade ímpar, surge na narrativa um segundo
tema escondido pelo problema do adultério; referimo-nos à tensão de classe, que
neste conto ganha forma oblíqua e silenciosa. Lenta guerra de trincheiras pela
qual se redime a subalterna, o subtexto social mostra uma Lygia mais sutil do
que parece, pois o falso oco das falas revela um barril de pólvora prestes a
estourar.
Destarte, o narrador lacônico e oculto; a teatralização da
literatura, com direito ao concentrado espaço-temporal tipicamente cênico; a
substituição do interior pelo exterior; a supremacia do correlato objetivo; e,
por fim, a força com que pulsa, nas entrelinhas, uma quieta luta de classes
fazem de “Um chá bem forte e três xícaras” um dos tesouros da contística de
Lygia. Sendo pouco lido e comentado, torna-se tanto mais urgente buscar
conhecê-lo. Estamos convencidos de que se trata do melhor feito da autora no
que toca à difícil arte de ser breve.
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Antes do baile verde, Lygia Fagundes Telles
Companhia das Letras, 2009, 208p.
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