Sobre a terra somos belos por um instante, de Ocean Vuong
Por Pedro Fernandes
Ocean Vuong. Foto: Celeste Sloman/ The New York Times |
Condenados ao perecimento, nos
sobraram, a depender da vida, alguns instantes (ou mesmo apenas um) que são as
únicas circunstâncias redentoras. Ocean Vuong denomina esse breve tempo como magnífico,
no sentido de deslumbrante ou belo, para reiterar o termo
utilizado na tradução brasileira para o título de seu primeiro romance. Cada
uma dessas palavras é incapaz de conter essa porção de vida irrepetível por mais
que busquemos alternativas ou refazer os mesmos caminhos que nos conduziram até
ela. Chamamos essa eterna tentativa de retorno de poesia, de fé ou de gozo —
não que cada uma seja a mesma coisa e sim porque se aproximam desses instantes irreprisáveis.
Em Sobre a terra somos belos
por um instante, o escritor recorre a duas imagens da natureza que se
revezam na narração como símiles capazes de capturar o ponto de aproximação do
sublime, este que aqui se alcança fundindo tais imagens numa síntese possível
apenas no interior de uma poética. O modelo, claro está, se estabelece em
perfeita apropriação do que fizeram os gregos, quando nomeiam os fluxos
subjetivos ou abstratos pelos afluxos objetivos ou visíveis da natureza.
A primeira dessas imagens é o movimento
migratório das borboletas monarcas. Em fuga do inverno, elas se deslocam entre
o Canadá e o México numa jornada que supera seu tempo de vida, dois meses;
qualquer descompasso nesse meio tempo, significa a impossibilidade de desfecho
da viagem estabelecida por um perfeito alinhamento entre o inseto, a natureza e
o sistema solar. A outra recupera um dos episódios de morte em massa de animais
acontecido nos Estados Unidos em 1870, quando, durante uma nevasca, um
gigantesco grupo de bisões despenca de um penhasco de mil metros de altura, algo
que ficou por esclarecimento da comunidade científica.
São duas imagens, reparamos, irmanadas
por um certo instinto natural de salvação da morte, mas que, por força dessa
mesma natureza, os seus seres são empurrados para o mesmo fim trágico. Isto é,
uma fuga de morrer pela morte. Mas, vale chamar atenção para os valores
simbólicos dessas duas imagens individualmente: a primeira se distingue da
segunda pela unidade de leveza e peso. Enquanto a imagem de milhares de búfalos
— tal como se retoma no romance apropriando-se da confusão dos primeiros
colonos da América entre os dois animais — jogando-se no precipício é toda
trágica, histriônica, mesmo ridícula, como sublinha uma das personagens, o
périplo das borboletas concentra algo de sedutor e luminoso. Os dois comportamentos,
embora naturais, possuem causalidade distinta: a migração das monarcas é
determinação puramente biológica; a morte dos bisões, embora não se tenha um
laudo preciso e definitivo, aponta para um desequilíbrio propositado pela política
estatal de exploração ambiental.
Essas imagens são, portanto,
estruturantes do romance: enumeram o instante mais belo, o intervalo entre a partida
e a chegada, o voo, o salto, e o identifica com o ato de existir, este que se
faz por dupla motivação, da natureza e das atitudes que em algum momento
assumimos. A tentativa de organizar situações de motivação diversa é a força
motriz com a qual Ocean Vuong ergue seu livro — embora a princípio pareça ser uma
espécie de acerto de contas com sua própria história e com aquela que o permitiu
viver, a mãe, figura que materializa um complexo novelo de significação.
A busca de Ocean Vuong é a mais
universal, a que carregamos desde sempre: o doloroso ato de se compreender no
mundo, de se reconhecer presença entre presenças. É o ser que se busca. Quer
dizer, não sobra espaço para lermos esse romance como um pedido de contas,
afinal, tudo o que aqui é confessado, não é totalmente de desconhecimento para
quem o escuta; não há segredo terrível que apenas pela escrita a mãe pudesse
tomar conhecimento. Alguém poderá dizer que o escondido nesse longo diálogo
surdo é a revelação do amor, mas isso todos gestos o significam. Quando decide
escrever para a mãe, o narrador procura responder para ele mesmo quem sou,
pergunta que só preenche com o voo, o salto, a própria vida. Procura encontrar
sentido nos acontecimentos que o fizeram dizer eu sou.
Trata-se de uma investigação que considera
ainda outras camadas destacadas ou enredadas no movimento da história coletiva.
Embora seja um romance que não centralize qual a origem de tudo porque se sabe
que este é apenas um ponto fabricado por nossa própria consciência — ou uma
vírgula, recuperando o sinal de pontuação que melhor significa para o narrador
— deixa dois fios inescapáveis aos olhos do leitor: a atitude da jovem avó Lan
de deserdar do casamento em que estava metida, um gesto que poderia ter-lhe
custado a vida; e mais tarde, as circunstâncias de alguma segurança capazes de
permitir sua mãe Rose a prosseguir com a gestação. Olhando de perto, um acaso
da natureza, outro gerado pela ação humana.
O convívio de Lan com os soldados estadunidenses
é parte fundamental do destino dessas duas vietnamitas que pulam da morte para
a morte, uma vez que a vida nos Estados Unidos não significará, de nenhuma
maneira, sua redenção. Na nova terra, sobra o martírio pelo trabalho que
transforma essas mulheres em criaturas continuamente subjugadas, sobra toda
sorte de preconceitos que só não as enterram porque as empurram para o convívio
com outra extensa galeria de degredados que fazem as vezes de mão de obra barata
para empurrar a força de mercado de um país que se expande fazendo o mundo seu
cativo — são outros vietnamitas, latinos e africanos.
Apesar de tudo, a narrativa não
assume o ranço dos nacionalismos. Preocupado em sobreviver, essa talvez seja a
última das questões. Ocean Vuong prefere tratar esses impasses raciais pelo
nível das complexidades humanas, o que significa dizer, que não transforma
estrangeiros em bondosas criaturas e estadunidenses em maléficas, ainda que os
gestos mais nobres sobre para estes últimos e podemos enumerar pelo menos duas
personagens que concretizam bem isso: o avô postiço Paul e o primeiro amor
Trevor. Essas duas relações, aliás, singularizam alguns dos instantes mais
bonitos do romance, justamente porque são feitas daquela abnegação que nos faz
reconhecer o outro sem cobrar absolutamente nada porque sabe que o outro é um
seu semelhante. Esta talvez seja também uma das lições mais valiosas desse
romance — este amor que é misto de entrega pura, afeto indistinto,
reconhecimento e liberdade plena. São essas duas relações, aliás, que atribuem ao
narrador uma identidade que o afirma e não o faz sempre sombra ou submetido
como foi educado a ser.
A leveza e o peso trágico se
revezam na constituição da forma desse romance. Sobram violências da mais
variada sorte — o abandono, o estupro, o aborto, os espancamentos entre marido
e mulher, entre mãe e filho, o bullying, os racismos; sobram os horrores — a
fome, a penúria, a humilhação, a prostituição, os abusos, a exploração, a
banalidade das vidas; sobram mortes — naturais, de guerra, as da violência nas
periferias, para as drogas. Esse rosário é a vida em seu estado puro e entre um
mistério e outro, um intervalo de respiro. São os espaços de afeto entre avó/
avô e neto sobretudo, mas também entre filho e mãe que se reconhecem presas dos
seus segredos mais penosos; são as trocas de ternura; as vivências mais comuns;
as liberdades, o afastamento do medo da morte e do preconceito; as descobertas
do outro e do corpo e com essas do desejo e do amor; é, por que não, a da
escrita, se não capaz de reviver, capaz de pensar uma vida com dores e cores.
Ocean Vuong quer, como todo romancista, a totalidade inapreensível da existência.
Isso não é mau; é da natureza da forma literária. A questão é como sistematizar
esse querer. E esse é o principal defeito do romance — exuberante e
encantador como o voo de uma borboleta e pesado como o salto do bisão no
precipício. O material literário convocado para a feitura da narração é muito e
diverso: é a vida do narrador, mas também a da sua mãe, a da sua avó, a do seu
avô, circunstâncias cortadas por episódios extremamente complexos, da guerra no
Vietnã à emigração, da vida no país de origem ao país de língua e cultura
estrangeiras, das violências sociais e históricas à esquizofrenia da sociedade
de consumo, das descobertas do corpo à montanha-russa do primeiro amor etc.
Esse excesso quando condensado na
escolha do recurso de organização da narrativa, contribui ora para dificultar a
compreensão do leitor numa narrativa que mesmo seguindo o ir e vir da memória
estabelece certa linearidade dos acontecimentos, ora tolda um tanto o efeito
poético que almeja. Exemplo desse último caso é a história do primeiro amor;
dominando mais da metade do romance, o desenvolvimento desse fio narrativo é
prejudicado pelas contínuas interrupções e finda por deixar muitas lacunas como
entre sua continuidade ou não quando o narrador vai viver em Nova York. A estratégia
aqui parece ser a de não escorregar para o melodramático — mas efeitos para
tanto, pelo que dissemos no parágrafo acima, não faltam e mesmo assim, o
narrador se nega entregar alguns acontecimentos desse episódio.
Entre as produções romanescas
recentes, Sobre a terra somos belos por um instante dialoga muito de
perto com o também primeiro trabalho de Édouard Louis, traduzido entre nós como
O fim de Eddy. Mas, diferente daquele, o romancista francês prefere se
centrar em determinadas situações deixando outras para desenvolver noutras
circunstâncias. A prosa exige o difícil controle dos ímpetos, sobretudo quando
esses são fortalecidos num terreno tão denso de experiências como é em Ocean
Vuong. No caso do romance de Louis, é puramente o drama individual e familiar
nas margens da sociedade; em Vuong, essas questões estão indissociadas da
complexa tessitura histórica e esta não é apenas um pano de fundo porque estão
presas na biografia dos próprios indivíduos.
É compreensível que Ocean Vuong
tenha buscado expiar o que não foi possível — pelas limitações da poesia — no
seu excelente Céu noturno crivado de balas; o romance pode ser lido como
a versão em prosa do conteúdo desse livro. Mas, assim como a poesia não é capaz
de dar conta do tudo, a ficção muito menos. Obviamente que um escritor sabe
disso, mas faltou no romancista o que sobrou no poeta: manter-se mais no
terreno do poético e menos no cinematográfico. Que a escrita é incapaz de
conter o mundo, também os dois livros atestam isso ou mesmo o tratamento de proposital
desfazimento das fronteiras entre a poesia e a prosa: no livro de poemas, o
poeta se vale de vários recursos da prosa, incluindo sua dicção, e no romance,
dos recursos da poesia, incluindo sua forma. Quer dizer, voltamos outra vez ao
trabalho de organização do registro.
Sobre este, também se repetiu que
o romance em leitura se funda na forma epistolográfica, o que o aproximaria,
por exemplo, para citar outro caso famoso na literatura estadunidense, de A
cor púrpura, de Alice Walker; aqui, Celie, uma negra praticamente
analfabeta escreve cartas para Deus e para a irmã missionária na África dando
contas da sua vida de agruras e das pequenas experiências de respiro. Não é o
caso do romance de Ocean Vuong. O que faz o narrador de Sobre a terra somos belos
por um instante é identificar o seu narratário. Lição básica de organização
da narrativa: todo narrador escreve para alguém. E nesse caso, a mãe do
narrador perfaz essa categoria; o narrador estabelece com ela um longo diálogo
surdo — a duração da própria narrativa —, mas não escreve uma carta, escreve um
livro, na hipótese de, quem sabe, numa vida outra, reencarnada a mãe, possa
encontrar esses escritos e saber que alguém escreveu uma coisa do tipo.
Com isso, o narrador se apropria, isso
sim, do mesmo movimento da avó que, durante a infância constantemente o
enredava com suas próprias histórias: as da família, as dela, as inventadas.
Toda a narrativa refaz essa forma, alimentando-se da circularidade, das
repetições e dos vazios recorrentes na oralidade. Os assuntos aí se interpolam,
modificam-se quando interferidos por outros, preferem sugerir antes e só depois
contar o acontecido. O narrador performa o drama da voz dos seus antepassados,
esse que, acompanhou mais ou menos pelo que escutou do que não saiu do reduto familiar
porque a sua mãe e a sua avó renegam ainda cedo no novo país o idioma que
apenas serviu para caçoar delas. Desde a infância, esse narrador precisou
aprender a língua do opressor para falar por ele e por elas, defender-se e
defendê-las. O que ele, agora devolve, é de alguma maneira o som do silêncio que
a mãe e a avó estiveram submetidas durante toda a vida.
Em algum momento das nossas vidas fomos
confrontados em descobrir por que, dentre tantos, a natureza escolheu manter vivos
nós que estamos vivos. Essa condição nos equipara às borboletas monarcas que,
como outras borboletas, poderiam perecer no inverno canadense. A cultura cristã
responde, certa de que os desígnios divinos se desenvolvem bem mesmo por linhas
tortas (afinal que tanta gente imprestável ainda caiba nesse mundo é algo
sempre a espantar), com a ideia de que carregamos um propósito. Essa é uma resposta
que, como toda baseada na fé, não guarda sentido algum. O romance de Ocean Vuong
traz embutida essa pergunta. E as respostas são singelas e melhores que o
modelo ocidental cristão: estar vivo é produto de pequenas ocasos e vivemos
para criar e atravessar esses instantes que, se não fosse por nós, o mundo não
teria notícia da sua beleza, sozinho o mundo é imenso silêncio, nada diz.
Isso se mede pelo que dissemos
sobre este narrador ser a voz da mãe e da avó, mas se mede ainda por um diálogo
belíssimo entre o narrador e o rapaz que será seu primeiro amor. Depois de um
dia de estafa na plantação de tabaco, os dois estão no telhado de zinco de um
dos galpões, observam o pôr do sol, com a força natural e repetível dos dias de
acentuado verão; Trevor destaca que Cleópatra “viu esse pôr do sol”, ao que o
narrador responde: “Deve ser um saco ser o sol.”; e “Porque você nunca se vê se
você for o sol. Nem fica sabendo onde você está no céu.”; e, “Tipo, você nem
sabe se é redondo ou quadrado, nem se você é feio ou não [...] você só consegue
ver o que você faz com a terra, as cores e tal, mas não quem você é.”
Todo esse diálogo empurra a narrativa para o desabrochar da consciência do
narrador sobre sua sexualidade; quando Trevor encerra dizendo que “deve ser um
saco ser o sol porque ele tá pegando fogo”, uma fala de duplo sentido, o olhar
do narrador se desloca para as “pernas escancaradas” do amigo, e percebe “o
pênis, macio e rosa, sair pela parte de baixo do short”. Mas, antes disso, é o
tema do ser visto pelo outro como o que encerra a própria natureza de existir, possivelmente
o único instante em que somos belos sobre a terra. Ou mesmo quando a partir do
visto acrescentamos uma linha mais — trabalho da arte.
As duas imagens naturais,
dissemos, fundem-se no desfecho de Sobre a terra somos belos por um instante:
“penso nos búfalos em algum lugar, talvez na Dakota do Norte ou em Montana,
seus ombros ondulando em câmera lenta enquanto eles correm para o desfiladeiro,
seus corpos marrons num gargalo no estreito precipício. Os olhos negros como
petróleo, os ossos de veludo de seus chifres cobertos por pó, eles correm, sem
pensar, juntos — até se tornarem alces, imensos e com galhadas, narinas
molhadas bufando, depois cães, com patas arranhando rumo ao abismo, suas línguas
penduradas na luz até que, enfim, eles se tornam macacos, uma tropa imensa
deles. Os topos de suas cabeças se abrem, seus cérebros ocos, eles flutuam, os
pelos das pernas e braços bonitos e macios como penas. E no exato momento em
que o primeiro deles pisa para fora do penhasco, no ar, no eterno nada abaixo
dele, eles incendeiam nas fagulhas ocre-avermelhadas das borboletas-monarcas.
Milhares de borboletas-monarcas se derramam sobre o abismo, voam pelo ar
branco, como um jato de sangue que atinge a água.” Em qual outra medida que não
essa da imaginação é possível essa imagem? Ao acrescentar outra camada à
realidade, ultrapassa-a e desfaz o fim trágico. Só para isso existimos.
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Sobre a terra somos belos por um instante, Ocean Vuong
Rogerio W. Galindo (Trad.)
Rocco, 2021, 224p.
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