Orhan Pamuk, “o difamador”
Por Javier González-Cotta
Orhan Pamuk. Foto: Ozan Kose. |
Não é a primeira vez — nem
provavelmente será a última, para seu pesar — que o vencedor do Prêmio Nobel
turco em 2006, Orhan Pamuk, é visto nos agitados tribunais de seu país. Em 2021,
depois de publicar seu último romance na Turquia, intitulado Veba geceleri
(Noites de peste em tradução livre a partir do inglês), um advogado
da cidade de Esmirna, Tarcan Tülük, apresentou uma queixa-crime alegando que o
escritor havia insultado Kemal Atatürk, bardo da Turquia secular nascida em
1923 e, desde então, considerado o suposto pai de todos os turcos (é isso que
Atatürk realmente significa).
O advogado de Esmirna entende que
no romance a figura do oficial Kolagasi Kamil é uma cópia do próprio Atatürk,
que seria retratado, sempre de acordo com sua opinião, de forma muito
desrespeitosa. Pamuk ambienta seu novo romance em 1901, numa ilha fictícia do
Mar Egeu, chamada Minger (o vigésimo nono estado do Império Otomano),
localizada em um ponto não especificado entre Creta e Chipre (a ilha pamukiana é
tão fictícia que, de fato, não existe ilha nessas coordenadas geográficas). No
início do século XX, o Império Otomano, governado pelo velho sultão Abdülhamit
II, encontra-se em estado terminal aos olhos da Europa e, também, aos olhos dos
turcos mais engajados e renovadores (o que será conhecido como o movimento dos
Jovens Turcos, cuja ideologia o próprio Mustafa Kemal apoiará).
Kamil responderia, então, à figura
de um jovem militar, ambicioso e nacionalista, que se torna presidente da ilha
de Minger, daí a suposta semelhança com a figura, desta vez real, do próprio
Atatürk. É o que pensa o aparente crítico literário de toga Tarcan Tülük, o que
o levou a manter firmemente sua denúncia. Aparentemente, já em abril passado,
um juiz rejeitou sua primeira acusação e o promotor, após questionar até o
próprio Pamuk, arquivou o caso. Tülük recorreu e, mais uma vez, outro juiz de
Istambul ordenou a reabertura da investigação, à espera de se formular uma
acusação ou se, pela segunda vez, o caso volta novamente a ser arquivado.
A questão é esta: o que leva o
advogado a dizer que Atatürk é insultado no novo romance de Pamuk? Por um lado,
no seu entendimento, as semelhanças entre a personagem e o oficial Kolagasi
Kamil são bastante evidentes. Mas, para além deste pressuposto e de acordo com
o que se tem verificado, o que sabemos apenas é que a) num dado momento do
livro o referido oficial chega a agitar uma bandeira grega (ortodoxos e
muçulmanos coexistem na ilha), e b) no romance aparecem vários corvos voando.
Bem, e o assunto é tão sério?
Vamos por partes. Por um lado, como se sabe, a Turquia e a Grécia não são
países historicamente cordiais, a começar pelos séculos de dominação otomana
que terminaram com a independência grega (1827), seguindo-se a guerra que
gregos e turcos travaram atrozmente na Anatólia (1919 - 1922) e terminando,
hoje, com a disputa territorial sobre possíveis reservas de gás e petróleo em
águas, precisamente, do Egeu. Por outro lado, quanto à estranha matéria dos
corvos, aparentemente sabe-se que em sua infância Atatürk gostava de caçar esses
pássaros pretos, daí a especulação ornitológica e altamente suspeita extraída pelo
advogado Tülük.
Exceto pelo próprio escritor, de
fora tudo é observado com descontraído humor ou, pelo menos, com um pouco de
espanto disfuncional (digamos assim). No entanto, deve-se lembrar que na
República da Turquia, antes e mesmo agora, com a corrente islamista promovida
há anos pelo presidente da nação Recep Tayyip Erdogan, o insulto expresso ou
velado de Atatürk e de símbolos nacionais é punível com milimetricamente. Assim
se diz no código penal turco (artigo 301/1), que indica o que é considerado
“ofensa à identidade nacional turca”.
A questão armênia
Dissemos no início que, na
verdade, não é a primeira vez que Orhan Pamuk visita os corredores dos
tribunais em Istambul. Suas declarações ao jornal suíço Der Tages-Anzeiger
o levaram em 2005, um ano antes do Prêmio Nobel em Estocolmo, ao tribunal del
Sisli pela já mencionada “ofensa à identidade nacional turca”. Ele disse na
época, literalmente, que “Trinta mil curdos e um milhão de armênios foram assassinados
naquelas terras [sudeste da Anatólia e parte da Síria] e ninguém além de mim se
atreve a falar disso”. O julgamento foi adiado indefinidamente e o caso acabou
arquivado, talvez, como muitos deduziram na época, para não manchar a reputação
internacional da Turquia.
Curiosamente, a ex-companheira do
escritor, a também romancista Elif Shafak, foi processada pelo mesmo motivo
após a publicação de na Turquia de A bastardo de Istambul (sessenta mil exemplares
vendidas). Contada a partir de entrecruzamentos familiares (Estados Unidos,
Turquia, Armênia) e com um papel especial reservado às mulheres, em algumas
passagens é expressamente dito que “os turcos ou são ignorantes ou são
nacionalistas”, fala-se dos “carniceiros turcos” e que os armênios “foram
abatidos como ovelhas”.
Como Pamuk assinalou ao jornal
suíço, o que ambos os casos se referem é a questão muito delicada do chamado
genocídio armênio causado pelos turcos otomanos em 1915, fato discutido — o
termo genocídio — pela historiografia oficial turca — e não apenas turca — e
isso fez parte, como um rastro adicional, das vicissitudes produzidas pela
Primeira Guerra Mundial nas profundezas da Anatólia. Shafak foi considerada
inocente pelo tribunal, ao qual ela não compareceu para ouvir a sentença
exculpatória por ter dado à luz há apenas seis dias (como uma curiosidade
comovente, o então primeiro-ministro Erdogan — quem agora é o presidente da
nação — a chamou para perguntar sobre o estado de sua criatura).
Em sua defesa, em relação ao
argumento de Noites da peste, Pamuk argumenta que nunca considerou “desrespeitar
Atatürk e qualquer um dos heroicos fundadores dos estados-nação nascidos das
cinzas do Império Otomano”. E acrescenta: “Este romance foi escrito por
respeito e admiração por esses líderes da libertação. Como todos que lerem o
livro verão, Kamil é um herói com muitas virtudes que as pessoas admiram.”
É claro que o togado de Esmirna
não vê a mesma coisa. Zeynep Oral, presidenta do literário e internacional PEN
Turquia, levou as mãos à cabeça. Considera que quem prejudica o país não são os
escritores, mas as pessoas que não leem os livros, os advogados obtusos que não
entendem o que leem e que não sabem como a literatura funciona como mecanismo
de criação. Por sua vez, o famoso pianista turco Fazil Say fala de “grande
infâmia em nome do país”. Todo o mundo literário, incluindo o Sindicato dos
Editores Turcos, pede que não se inventem os crimes onde eles não existem.
Acaso ou profecia
Vamos agora nos colocar no lugar
do escritor. Deve ser inquietante que se tenha passado quatro anos em solidão e
silêncio dando origem a um romance sobre um surto de peste em 1901 numa ilha
fictícia e que, uma vez escrito (os demônios e as inseguranças de todo escritor
finalmente foram superados), a vulgaridade vem à tona para desmantelar todo
esse trabalho de criação intelectual, de idas e vindas entre o tempo interior
do romancista e o tempo exterior — e às vezes soez — da vida.
Em 2018, Pamuk estava em uma turnê
promocional nos Estados Unidos para apresentar seu romance anterior: A
mulher ruiva. A jornalista que foi entrevistá-lo em seu apartamento no
Upper East Side de Nova York notou que o escritor tinha vários livros sobre
histórias de pragas e pandemias em sua mesa. Pamuk já estava moldando Noites
da peste, cujo quadro de fundo é baseado nos efeitos da chamada terceira
pandemia de peste que, com origem na China (sim, China novamente), devastou
grande parte do Império Otomano. Foi um terrível surto de peste bubônica, mas
que afetou na época, no início do século XX, mais no Oriente e na Ásia do que
na Europa, onde quase apenas se soube dos seus estragos.
Seja por acaso ou profecia, muito
antes do surto do coronavírus, Pamuk já havia entrado literariamente em seu
próprio mundo pandêmico da ficção. Recolheu livros médicos e romances sobre
pragas (Diário da peste de Defoe, Os noivos de Manzoni, a
epidemia sobre Atenas narrada por Tucídides, a varíola antonina que Marco
Antônio acusou de ser espalhada pelos cristãos por se recusarem a venerar os
deuses, a chamada peste de Justiniano no século VI dentro do Império Bizantino
etc.).
Em particular, como ele mesmo
relatou, Pamuk estava interessado em puxar um fio histórico específico, mas
ligado ao fatalismo inato com que os povos muçulmanos tendem a aceitar o
destino, a predestinação da morte, o que inclui também aceitar a mortalidade
que ciclicamente causava epidemias.
O próprio Defoe, ao descrever em minuciosamente
a peste que devastou Londres em 1664, refere-se ao já mencionado fatalismo
muçulmano. Muito antes, no século XVI, do grande Solimão, o Magnífico, o
embaixador austríaco dos Habsburgos na Sublime Porta, Ogier Ghiselin de Busbecq
(também floricultor e introdutor, aliás, da tulipa nos jardins da Europa), percebeu
o quão pouco cuidadosos eram os turcos para evitar os contágios da peste que
devastou Istambul em que ele se encontrava como um encarregado. Eles ignoravam
a quarentena e mostravam, segundo o estrangeiro, que eram fatalistas por
influência de sua religião: o islamismo. Busbecq refugiou-se da praga na ilha
de Prinkipo, nas Ilhas Príncipe do Mar de Mármara, perto do Bósforo.
Injustamente ou não, a verdade é
que a mentalidade europeia chegou a associar a origem das pragas na Ásia às
práticas orientais de cultura e movimento. Na beira do Danúbio, diferenças
culturais marcavam seu solo. No Império Otomano, as medidas de quarentena eram
muito mais difíceis de aplicar, entre outras razões porque, inicialmente no
século 19, para fazer a quarentena, exigia-se que aqueles que entravam na casa
fossem médicos turcos e não cristãos, que eram na prática a maioria, a fim de
preservar a moralidade e a modéstia em relação às mulheres muçulmanas.
Os fluxos de peregrinos para Meca
e Medina também criaram seus bolsões de propagação e ajudaram, como vimos, a
destacar o estereótipo do fatalismo no próprio conceito do que é oriental,
vinculando-o ao atraso cultural, à impenetrabilidade do positivismo, à ciência
ou mesmo higienismo, que era outra das exigências do progresso e da
civilização. Aos olhos dos europeus, tudo fazia parte do encanto capcioso do oriente.
É este, pois, o contexto
sociológico sobre o qual Orhan Pamuk quis dirigir seu romance sobre a fictícia
ilha de Minger, devastada pela peste bubônica (não fictícia) de 1901. Ao longo de
mais de setecentas páginas, se contrapõem o já mencionado fatalismo muçulmano
com as ideias de secularismo e modernidade que permeavam as novas gerações de
turcos. É o caso, levado à ficção, do oficial Kolagasi Kamil. Nada a ver,
portanto, com uma indignação explícita ou figurativa contra a figura de
Atatürk.
De fato, como veremos agora, não é
nem a primeira vez que alguém grita fora da manada ao oferecer uma perspectiva
inadequada ou fora da imagem atribuída a Kemal Atatürk (ou seja, fora do foco
educacional ao qual os turcos estão acostumados desde a infância).
Ataturk, fumante e beberrão
Em 2008, coincidindo com o 85º
aniversário da República da Turquia, foi lançado um documentário sobre Atatürk
dirigido pelo jornalista e documentarista, agora no exílio, Can Dündar: Mustafa.
O herói dos turcos aparecia fumando como um caipora e bebendo raki em público e
quase a qualquer hora (os sultões otomanos — no caso de Selim II, o Bêbado —
bebiam em privado). O álcool de fato o levaria a morrer de cirrose hepática em
10 de novembro de 1938 no Palácio Dolmabahçe em Istambul.
A obra de Dündar, cuidadosamente
extraída de arquivos históricos, é um formidável retrato de uma das figuras
mais convincentes da primeira metade do século XX. Alguns queriam comparar
Atatürk a Winston Churchill, embora ele continue sendo um estadista pouco
conhecido entre os europeus, mas muito além dos usuais elogios como reformador
e defensor da nova Turquia.
O filme de Dündar não borra ou
esconde informações sobre a vida privada de Atatürk, como seus casos amorosos
ou seu casamento muito breve e estranho com Latiffe Ussaki. Atatürk não teve
filhos, mas era caloroso e paternal (hoje diríamos patriarcal). Adotará um
menino e até um coro de sete meninas (incluindo Sabiha Gökça, que seria a
primeira mulher piloto de guerra do mundo).
No ano de sua estreia, o
documentário de Dündar causou alvoroço na Turquia (havia filas nos cinemas para
vê-lo). O então presidente do parlamento turco protestou que Atatürk apareceu
inúmeras vezes fumando. Vozes do CHP, discípulos políticos do kemalismo,
assistiam atônitos como o líder idolatrado bebia quase todas as noites uma
garrafa de raki, o popular leite de leoa sem o qual a idiossincrasia social dos
turcos é inconcebível (como a bebida não alcoólica nacional Erdogan queria
promover o ‘ayran’, uma bebida de iogurte, água e sal que, curiosamente, já
associamos ao enredo de Uma sensação estranha, outro romance anterior de
Pamuk).
O documentário também recolhia
outros aspectos difíceis de digerir. Devido ao contexto histórico e oportuno,
Atatürk incompreensivelmente se permite ser visto como um “amigo” de Lênin
(famosa, porém, seria sua frase de que o comunismo era o principal inimigo da
Turquia). Em relação ao problema agudo dos curdos (Atatürk os chamará de “turcos
da montanha”), no trabalho de Dündar se insinua que o grande estadista pode ter
traçado algum tipo de autonomia para a minoria curda do país.
Além de tudo isso, o fato de o
reverenciado líder aparecer no filme como um ateu mais ou menos declarado fez
os seguidores islâmicos do partido de Erdogan e, em suma, a Turquia mais
sensível e religiosa (“todas as religiões estão no fundo do mar”, dirá Atatürk,
para quem o Império Otomano de sultões e califas foi um longo erro histórico).
Esta crônica sairia do controle se
continuássemos a esculpir aqui o busto histórico e político de Kemal Atatürk
(1881-1936). Isso nos daria um longo apêndice à biografia total de Andrew
Mango. De qualquer forma, como já foi dito, não é a primeira vez que sua imagem
é exposta abertamente aos olhos dos turcos de pele fina.
Por tudo isso, retornando ao novo
livro de Orhan Pamuk, teremos que esperar para lê-lo e para ver se é verdade
que o Kolagasi Kemal oficial é mesmo uma cópia perversa de Atatürk. Enquanto
isso, aqui está o que ele fez para levar Tarkan Tülük, um advogado de profissão
e, ao que parece, um crítico literário dos mais esclarecidos, a se armar contra
o romance.
Tudo parece, sim, um episódio
engraçado. Pode parecer frívolo deste canto do Ocidente, mas para o varejo do poder
vigente na Turquia raramente decepciona.
Ligações a esta post:
* Este texto é a tradução livre para
“Orhan Pamuk, ‘el difamador’”, publicado aqui, em Jot Down.
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