Marrom e amarelo, de Paulo Scott
Por Pedro Fernandes
Paulo Scott. Foto: Renato Parada. |
Depois de alguns tímidos esforços
institucionais ou estaduais, o Brasil passa a contar com uma lei de cotas a
partir de 2012. Nos moldes como foi pensada e como tem sido executada, apesar
dos números positivos demonstrados, a questão nunca deixou de ser polêmica e
marcada por enfrentamentos feitos com os mais variados argumentos de setores
diversos da sociedade. Sem entrar no mérito da execução legal ou nas
deficiências do sistema, importa sublinhar que a complexidade da coisa é em
parte produto de um pequeno nervo das nossas hipocrisias: este que a partir do
conceito de miscigenação passou a tratar este país como mestiço, no sentido de
franca, harmoniosa e livre convivência racial.
É bem no interior desse debate —
motivado pelas tentativas de aperfeiçoamento desses suplementos jurídicos e
estatais — que se localiza Marrom e amarelo, de Paulo Scott. Mas isso é
o raso de um livro que, decidido a se aproximar do que chamaríamos de
problema-Brasil não partidariza um tema dessa complexidade e desfia outras das
diversas pontas importantes da que observamos. Uma delas, é o retorno a algo muito
bem percebido — talvez com nenhuma outra destreza — por Machado de Assis: a
implicação dos vínculos individuais na coisa pública e o papel social da
síndrome do bem-nascido.
O disparate de construir um
sistema eletrônico capaz de determinar em critérios físico-biológicos o que para
nós se reduziu a uma intriga de tonalidade da pele é apenas uma pequena parte de
nossa incompetência em administrar objetivamente a questão. O mecanismo pensado
por um grupo de bem-intencionados servidores públicos logo à entrada da
narrativa de Marrom e amarelo tem base coerente: oferecer garantias
mínimas de que um candidato e mesmo as bancas examinadoras não se utilizem da
autodeclaração para se beneficiar das garantias legais alheias. Mas, nenhuma
dessas duas situações seria possível se não tivéssemos construído uma sobre-história
interessada em aplainar nossas circunstâncias sociais ou se sob a ética não
vigorasse uma política do arrumadinho para beneficiar o sobrenome Tal.
Conveniências existem em toda parte, mas entre nós, sabemos, se enraizou e se
institucionalizou como sub-política e sub-jurisprudência.
A estrutura de Marrom e amarelo
tem seus problemas. Nada, entretanto, que comprometa o bom do romance e seu funcionamento. São dois fios temporais muito distintos que não tarda e se articulam
repetindo certo lugar-comum do passado enquanto retorno no interior do presente,
coisa que cobra dos envolvidos alguma alternativa a fim de se estabelecer uma
lisura da história — isto é, um modelo novelesco, em que o conflito se
desenvolve integralmente para um final estabelecido; este fim não se confirma no
romance ora lido, o novelesco, refere-se, portanto, mais ao tecido da
trama, à organização dos conflitos. De toda maneira, essa escolha se modela
pelo conteúdo ou tema cardinal da narrativa. Basta pensarmos no sistema de
cotas como uma maneira de corrigir um passado que, como bem sabemos, se
estrutura num perverso modelo de condena de muitos e favorecimento de uns
poucos privilegiados continuadores do poder e das regras de mando no presente.
O escritor opta por dois núcleos
narrativos que apenas eventualmente se integram às distintas temporalidades,
embora estas não estejam reduzidas a aqueles. No que poderíamos chamar de
primeira parte do romance, entramos num arrastado exame dos primeiros convívios
de um grupo de funcionários públicos de formação e setores diferentes designado
para, no âmbito da política de cotas, pensar o tal software racial; por
baixo, desenvolvem-se alguns episódios familiares do passado de um dos
integrantes — são situações envolvidas num dilema que toca a questão racial em
vários setores a partir do ensaio de aproximação com um motivo caro à
literatura, o doppelgänger, o duplo. Em seguida, desistindo da monotonia
da primeira parte, a narrativa adere então à dicção da novela: a vida burocrática
de Brasília passa ao segundo plano e acompanhamos os volteios daquele integrante
sobre o qual já testemunháramos algumas notas e situações de sua história e sua
posição no debate que não é difícil de descobrir desde o primeiro instante da
sua entrada na narrativa.
O tema que assinalamos no segundo
parágrafo deste texto segue esse movimento; aparece de forma muito sutil no que
chamamos de primeira parte do romance e ganha relevo adiante, quando o
protagonista se descobre encalacrado num dilema policialesco que coloca em
xeque sua ética, obrigando-o a se submeter ao regime que corre por baixo dos
dispositivos legais, o mercado das conivências individuais e dos usos de uma
posição social estabelecida pelos de suas origens. Quer dizer, o clichê da
estruturação do romance é suplantado pela astuta maneira encontrada pelo
romancista de, ao interrogar a lisura de suas personagens, nos interrogar sobre
nosso ponto de bem-colocados — em falso, naturalmente —, este que
nos permite apontar o outro sem olhar a si; algo que, nos termos da
autodocumentação pública nascida com as redes sociais, se nota mais nitidamente
como um fenômeno universal.
É o próprio Federico, quem na
primeira intervenção na comissão de trabalho sobre as cotas, diz: “Dentro do
mundo jurídico nenhuma objetividade é incontestável, Isso faz parte da dinâmica
de qualquer julgamento, Ano passado, um desembargador federal lá de Porto
Alegre me explicou isso, Explicou usando exatamente estas palavras, [...] O
subjetivo, a leitura subjetiva, tem de ser aferível, Se for aferível, é válido”.
É justamente isso o que se coloca em causa posteriormente, o que nessa ocasião
o protagonista quer que seja prerrogativa da comissão numa medida de reeducação
das pessoas para o sistema de cotas baseado na autodeclaração. Se é certa a ideia
da inexistência de uma objetividade pura, o contrário também pode ser válido, ainda
mais quando o modelo social estabelecido tem fincadas suas raízes no interesse
particular ou na sua transformação em interesse coletivo.
Bem ou mal resolvida, a dinâmica
da história dos povos difere da nossa história individual. É verdade que nas
duas não se perduram regressos do passado no presente, mas, se no caso particular,
é possível nos confrontar com o negado, no âmbito das coletividades feito de
outras dimensões, o silenciado é sempre outro. Disso resulta que o social só é
possível enquanto luta contínua e quando apostamos na calmaria cedo caímos
outra vez no retrocesso. Algo disso se vislumbra na jovem sobrinha de Federico.
Enredada pelas ideologias de revolução sem o subterfúgio de quem lhe diga do
fatalismo da utopia, Roberta implica essas duas camadas como uma só e o
resultado é sempre trágico e, não que este seja o caso, mas há quem nunca
aceite clara essa diferença. Em contraponto, vale citar certa passagem da
adolescência do tio de Beta, quando tomado pelo espírito interrogativo e o
mesmo ímpeto juvenil da sobrinha, a mãe busca amainar tudo com um conselho que
é lição caríssima para todos: as coisas não mudam num repente apenas por
obediência ao nosso instinto de rebeldia. Não é sobre conformismo que falamos,
é de experiência para discernir outros regimes decisórios realmente implicados
na modificação da história.
No âmbito coletivo, nossas
atitudes podem dirimir o presente acerca de determinadas faltas, mas nada do
que fizermos servirá para aplainar o passado: nem a revisão — como escolhemos
desde quando passamos a tratar nosso colonialismo como um festim dos povos; tampouco
a negação pura e simples, como agora no milagre do cancelamento, esta outra
forma a mesma de dissentimento. Esses movimentos interior-exterior
desenvolvidos no romance de Paulo Scott se demonstram como descontinuidades e
problematizam bem uma parte do nosso mal-estar nunca resolvida e talvez, para
mal e para bem, os demônios com os quais precisamos aprender a enfrentar pela
convivência — tal como Federico se decide abondar a vida mansa em Brasília para
experimentar outra vez uma Porto Alegre minada de inimigos. É ainda do que para
nós se tornou a insuperável distinção entre o individual e o coletivo sobre o
que falamos.
Ao chegar aqui, resta sempre a pergunta
de qualquer um ávido por uma receita eficaz para os nossos dilemas: e o que fazemos?
Talvez possa ser útil começar a descobrir na vida coletiva que os nossos ódios,
nossos fanatismos, nossas perspectivas exclusivistas do mundo, tudo isso apenas
serve para continuarmos no ponto de naufrágio que nos encontramos desde 1500 e
que, qualquer alteração disso passa por um lento e gradual processo de não
tratar a coisa pública como extensão dos nossos vícios, o quintal da nossa casa.
Outra vez, a conduta dos pais de Federico aponta nessa direção: mesmo
invisível, ela opera ainda procurando alguma oportunidade de se tornar
protagonista de um Brasil outro.
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Marrom e amarelo, Paulo Scott
Alfaguara Brasil, 2019, 160p.
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