Mães paralelas, de Pedro Almodóvar
Por Solange Peirão
Sobre duas mulheres à espera do
parto, em uma maternidade qualquer de Madri. Em duas camas dispostas
paralelamente, num quarto comum de hospital. Ali, começam a compartilhar suas
vidas, suas histórias. Janis, a mais velha, feliz com o fruto bem-vindo de um amor
fortuito, e Ana, a jovem angustiada, com a criança indesejada, gerada em
violência. As duas aguardam a chegada das filhas Cecília e Ana.
E assim, somos introduzidos nesse
filme recente de Pedro Almodóvar, no qual o feminino é a grande questão.
Pela linhagem familiar de Janis, seus
ancestrais viveram a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Seu bisavô, e alguns companheiros
do Pueblo onde habitavam, foi assassinado pelos falangistas nazifascistas, apoiadores
de Francisco Franco. Enterrados em vala comum, a comunidade busca resgatá-los,
para lhes dar uma sepultura digna. Janis lidera essa iniciativa que reúne
sobretudo as mulheres, guardiãs da memória dos fatos.
Se as mulheres na família de Janis
são emancipadas, avó, mãe e ela própria mães solteiras, e Janis com sua vida de
fotógrafa conduzida sem conflitos, a família da jovem Ana é o contraponto conservador.
Ana é fruto de um casamento prematuro de Teresa que tenta, com persistência,
ser atriz.
O trio, Janis, Ana e Teresa,
forma, na linha de frente, a sustentação do filme. Em um momento de lamentação,
por lhe sobrar cuidar da filha menor, agora com seu bebê, Teresa declara: “trinta
anos para começar a atuar, e parecendo um pouco burguesa para a profissão; não
é uma profissão de burgueses, os atores são todos de esquerda”. Janis
questiona: “e você, o que é?”; “eu sou apolítica, meu trabalho é gostar de todo
mundo”, responde Teresa.
E o filme segue numa quase
urgência das questões que envolvem as mulheres, por vezes, com uma crítica de
viés feminista.
Janis ampara Ana oferecendo-lhe
trabalho de cuidadora de sua pequena Cecília, para poder seguir como fotógrafa.
E, em algumas cenas, ensina à garota, de forma prazerosa, as lidas com a casa,
com a alimentação. Teresa, a mãe de Ana, sabedora da nova função da filha, não economiza
na crítica: “trabalha como empregada doméstica?”
Essa questão, aliás, maternidade,
casa e trabalho profissional das mulheres, tem, em Mães paralelas, tratamento
abundante. Ana cuida de Cecília, a filha de Janis, como babá, até certa altura do
filme. Não se trata aqui de avançar sobre um spoiler que expõe o nó central da
narrativa, então fiquemos com a abordagem mais geral: o sentido verdadeiro da maternidade.
Em uma crítica que escrevi sobre Que horas ela volta?, de Anna Muylaert
(leia aqui), faço a seguinte observação: quem é, de fato, a mãe? quem me
criou? quem cuida, faz o cafuné da
noite, prepara o café da manhã? ou a mãe biológica?
Em outra cena curiosa, que expõe
mais uma vez as relações variáveis entre as mulheres, Ana e Teresa sentam-se à
mesa de um restaurante, no qual Ana trabalhou anteriormente como garçonete. Agora ela é cliente, servida por sua ex-colega,
fazendo um pedido bem pueril: um sorvete de morango!
Há a introdução de outras questões
femininas e feministas. Janis revela a história da mãe, uma hippie, fã de Janis
Joplin, que também morreu drogada aos 27 anos. Janis topa fotografar qualquer
coisa, sapatos, maquiagem, bijoux, belas imagens por sinal, desde que tenha uma
renda. Janis fotografa uma modelo trans. Janis tem, como chefe, uma amiga de
infância, que parece ser a fim dela. E, por último, Janis acaba por ter um
caso, ainda que breve, com a jovem Ana.
E aqui, me parece, é possível
tecer uma primeira crítica a essa dramaturgia de Almodóvar. Não terá sido um
excesso desnecessário, que perturba uma leitura mais bem acabada da narrativa?
Acredito que sim. Mesmo considerando que se trata de um cineasta especializado em
melodramas.
Revi o filme A flor do meu
segredo, que é dos que mais gosto dele. Parece-me fresco e atual, que não
caiu na armadilha dos excessos. E olha que lá pelas tantas, sobrou esse primor
de observação dos editores para a escritora, protagonista: “você se comprometeu
a entregar, cinco novelas, pelos próximos três anos: novelas de amor e luxo, sexo
sugestivo e apenas sugerido, esportes de inverno, sol radiante, subsecretários,
ministros, yuppies, nada de política, ausência de consciência social”.
No caso de Mães paralelas,
em que o tema da guerra civil e os confrontos entre socialistas e fascistas
compõe o outro pano de fundo do filme, há um certo alinhavo exagerado no
desenlace positivo e bem-sucedido das ações, em prol do resgate da memória
histórica.
Arturo, o antropólogo e pai da
primeira e da segunda filha (também menina, quem sabe) de Janis é o caso
fortuito, onde tudo começou. Ele conduz as escavações da vala da comunidade, tendo
Janis por sua assistente. Ela recolhe a amostra do sangue dos membros da
comunidade, para confrontação do DNA com o dos ancestrais martirizados. Digamos
que exercitou seu know-how ao longo da narrativa, quando tentava desvendar o “imbróglio”
das maternidades.
Mas se melodrama serve para verter
uma lágrima ou outra, como não se emocionar com a cena final dos pesquisadores
se sobrepondo aos esqueletos na vala? E, de quebra, ler a bonita frase de
Eduardo Galeano:
“Por mais que a queimem, por mais
que a quebrem, por mais que mintam, a história humana se recusa a ficar calada.”
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