Literatura através das águas: uma análise crítica da obra O som do rugido da onça
Por Lucas Pinheiro
Micheliny Verunschk. Foto: Renato Parada |
Desde suas características técnicas até sua incrível escolha
estilística, Micheliny Verunschk, graduada em História pela AESA-PE, Mestre em
Literatura e Crítica Literária e Doutora em Comunicação e Semiótica pela
PUC-SP, guia-nos entre a história de dois jovens indígenas brasileiros raptados
por Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix no começo do
século XIX.
São inúmeras as similaridades da obra de Micheliny em relação aos
romances do século XX, especialmente sua relação próxima a Guimarães Rosa, já
que há em ambos uma mistura de hábitos populares a uma narração
erudita, fatores que oferecem ao leitor uma perspectiva de caráter
antropológico justaposta ao que é fruto das escolhas cintilantes e nada
superficiais que só existem enquanto mediadas pela imaginação febril e lírica
dos escritores.
Todavia, ainda permeada de enormes singularidades, a obra traz
uma trama por vezes bem interligada, de escrita simples e fluida, repleta de
doses de lirismo, suspense e misticismo, intercalando entre a simplicidade e a
dor, que, ao longo da obra, tornam-se elementos de perseverança, força e busca
por pertencimento.
Martius e Spix, assim como muitos outros pesquisadores da
época, são vistos com bons olhares e apreço, tendo sido responsáveis, por
exemplo, pela documentação da diversidade da fauna e flora brasileira, além de
serem os autores da divisão de cinco dos seis biomas que o Brasil possui e que
utilizamos até hoje: cerrado, mata atlântica, floresta amazônica, pampas e,
posteriormente adicionado, o pantanal.
É recorrente vermos na literatura nacional contemporânea uma
dedicação em dar palco às desigualdades históricas. Esse ponto de vista do
oprimido se faz necessário à vista das injustiças que ainda permeiam a
sociedade, e diversos autores têm conseguido alcançar este objetivo de forma
admirável, como é o caso de Verunschk em sua quinta obra.
À vista disso, a
autora fundamenta a narrativa a partir de um acontecimento histórico já
previamente abordado, a expedição dos cientistas Martius e Spix por terras
brasileiras entre 1817 e 1820, que se encerrou com o rapto de oito crianças
indígenas, das quais apenas duas sobreviveram à travessia do Oceano Atlântico
em direção à Europa. Tendo em vista que a narrativa exposta pelos cientistas
documenta somente os desejos e lados de uma verdade difusa, a autora faz uso de
personagens silenciadas e despersonalizadas da História para criar um prisma
narrativo, que dá voz ao misticismo da natureza de um povo.
A jovem Iñe-e, a garota indígena de aproximadamente quatorze
anos que foi submetida a viagem até Munique, é quem a autora utiliza para nos
guiar neste romance. Entretanto, o que é abordado, na verdade, é a história de
um extermínio ainda em andamento, da anulação de visões de mundo e a ganância
que aparenta ser, em diversos momentos, atos particulares ao ser humano.
Micheliny nos insere em uma realidade que se apresenta
completamente desconhecida, embebida de mitologia, relatos, termos e
conhecimentos de povos originários brasileiros. Elementos que constituem e
proporcionam um estranhamento, ou talvez uma aversão, que expõe o quão
distantes estamos da cultura nativa brasileira e nos mostra que conseguimos nos
conectar muito mais facilmente com a cultura europeia imposta.
Todavia, este é claramente muito mais do que um romance
histórico, é também uma literatura política que serve como manifesto contra
toda tentativa de violência e abuso de poder que se dá através da imposição
cultural. Em relação a essa imposição inumana, porém recorrente, a autora traça
um paralelo a partir de uma personagem contemporânea ao leitor e evidencia que
a impetuosidade imposta pelo povo europeu em terras brasileiras ainda reverbera
suas hostilidades hodiernamente.
As escolhas narrativas da autora são fascinantes e
utilizadas com maestria, parecendo ter como objetivo oculto a aproximação
emocional do leitor com o desenvolvimento muitas vezes poético que percorre a
escrita da autora. Há uma mescla de estilos, narradores, tempos narrativos que
compõem o romance que podem não ser tão favoráveis ao todo da obra, como, por
exemplo, a perspectiva e narrativa contemporânea da história que não se vê
tendo uma conexão íntegra com o restante do livro e que, apesar de ser
responsável por traçar em segundo plano um ótimo paralelo entre realidades, não
deixa de ser um clichê literário para uma obra tão rica como essa.
Ademais, se Spix recebe certo reconhecimento ao término da
narrativa, possivelmente por ressentir ao aceitar o sequestro das crianças
indígenas no começo da história, seu companheiro, Martius, não demonstra
arrependimento em suas ações motivadas por um querer dito científico ganancioso
e é tratado com repúdio e desdém.
Não é uma obra que manifesta interesse em uma pressentida
virtude relativa ao lugar de fala predeterminado, mostra-se uma eclosão de
ideais que fundamenta seu efeito no inesperado, como durante o diálogo do
cacique Raoní e um jornalista, onde inesperadamente levanta-se uma pauta acerca
dos Direitos Humanos: “Se o chefe de vocês continuar com o plano de fazer
barragens, eu vou à guerra com ele. Os homens nascem livres e com direitos
iguais.” (p.48)
Evidente que um manifesto como esse vale-se ainda mais
universal e humanizado do que quando declarado por revolucionários europeus,
franceses, em 1789.
Sendo um romance primoroso, O som do rugido da onça é
vigorosamente sugerido pela sabedoria e escrita instigante que a obra traz e
que não fomos capazes, com a mesma maestria de Verunschk, de fazer caber neste
texto. A obra é parte da história do Brasil, do passado-presente brasileiro que
explora a existência de um progresso vazio, e por isso é, sem dúvidas, uma
leitura viva indicada àqueles que anseiam enxergar histórias que se expõem
diariamente e são, às vezes, narradas. Outras, muitas, raptadas. Esquecidas.
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O som do rugido da onça
Micheliny Verunschk
Companhia das Letras, 2021,
168 p.
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