Drive my car, de Ryûsuke Hamaguchi
Por Solange Peirão
Preparando a viagem
André Malraux, escritor francês,
escreveu, em 1933, sua obra icônica, A condição humana. A ação se passa
na China, durante um dos períodos efervescentes da república que se constituíra
em 1911, e trata dos confrontos entre os revolucionários nacionalistas, liderados
por Chiang Kai-shek, e os comunistas, seus aliados. Chiang, preocupado com o fortalecimento
destes, acaba por traí-los, com o apoio do Ocidente. Em 12 de abril de 1927,
milhares de operários e dirigentes comunistas foram dizimados, nesse que ficou
conhecido como o massacre de Xangai.
O romance reúne personagens de
diversas nações, de diferentes línguas e ideologias. Mas não se trata de uma
obra sobre engajamento político. Malraux enceta, antes, na condição do homem
frente às questões que, mais tarde, serão caras ao existencialismo: a
inevitabilidade da morte, matar e deixar-se morrer, durante o processo
revolucionário; o mergulho no estranhamento de si mesmo e ali descobrir a
capacidade humana de sofrer e fazer sofrer; a solidão intransponível, mesmo se
a revolução possa supor a ação coletiva. Tão intransponível que nem o próprio
ser humano se reconhece a si próprio, muitas vezes.
E essa questão, o enfrentamento da
solidão, está expressa, no romance, por uma bonita passagem. Kyo, um dos revolucionários
comunistas, ouvindo uma gravação sua, na velha fita cassete, não reconhece a
própria voz. Enfim, não se reconhece; é, para si mesmo, um estranho. E declara:
“On entend la voix des autres avec ses oreilles, la sienne avec la gorge. [..]
Mais moi, pour moi, pour la gorge, que suis-je?” Sim, “ouve-se a voz dos outros
com as orelhas, a minha pela garganta [...], mas eu, para mim, para a garganta,
o que sou?”
A viagem
Malraux, com sua A condição
humana, me veio fortemente à cabeça, ao assistir a esse magnífico filme, Drive
my car, de Ryûsuke Hamaguchi, diretor que assina o roteiro com Takamasa Oe,
a partir de contos do escritor japonês Haruki Murakami.
E por quê? Porque a narrativa é
costurada por uma fita cassete que o protagonista Kafuku, diretor e ator de
teatro, escuta, durante seus deslocamentos em Hiroshima, conduzido por sua
motorista, Misaki. Ele veio de Tóquio para selecionar o cast de atores e
ensaiar uma nova peça, Tio Vânia, de Anton Tchékhov. A gravação é da
leitura da peça por sua mulher, Oto, roteirista, recentemente falecida. Durante
o percurso, Kafuku, que já apresentara a peça como ator, em Tóquio, interpreta Vânia,
em voz alta, tendo Oto, ou seu “fantasma”, contracenando com ele em todos os
papéis.
Um dos focos do filme são as
sessões de leitura e os ensaios da peça. E, dessa vez, Kafuku não será o
protagonista, e sim um jovem ator, Takatsuki, que, no passado, fora amante de
Oto.
Os outros focos são histórias,
histórias... Várias histórias que se articulam em torno daquele norte. E, nessa
totalidade, o que está em jogo é, justamente, a solidão, os limites do
conhecimento de si mesmo e do outro. Daí Malraux.
Em Drive my car, esse
dilema existencial se configura naquilo que Kafuku expõe como sua prática dramatúrgica,
e que ele chama de método multilíngue. Ou seja, a peça é encenada por atores
falando em diversas línguas. Uma torre de Babel? É o que pensamos de cara; mas
conseguirá Kafuku comunicar aos espectadores a verdade de um texto, nesse caso Tio
Vânia, que já em si trata também de questões similares? Em outras palavras,
até que ponto tristeza, felicidade, relações pessoais de dominação, vaidades, solidão
são verdades intercambiáveis? De que maneira pesa, nesse conjunto, o alcance da
comunicação interpessoal, ser ela possível, ou não?
Aqui reside, a meu ver, a grande
beleza do roteiro que Hamaguchi e seu parceiro nos apresentam.
Como não amar a estratégia que o
casal Kafuku e Oto acabam inesperadamente por criar, inventando histórias que
nascem das relações sexuais ardentes? Ela tece uma narrativa, adormece e, na
manhã seguinte, ele conta a história que ela já esquecera, mas que ele
memorizou. E, assim, foram nascendo, enquanto escritora, os roteiros de Oto.
Como não amar o encontro entre
Kafuku e Takatsuki que, após a morte de Oto, se descobrem completando mutuamente
uma história, que começou a ser contada ao marido e finalizou com o amante? E,
ambos, venerando essa mulher, inclusive compartilhando verdades sobre si mesmos.
Como não lembrar de As mil e
uma noites, das histórias com que Xerazade encanta o rei, entretecendo os
relatos para evitar a morte? A certa altura do filme, Kafuku verbaliza que essa
cumplicidade do casal, na criação, os mantém vivos, seguindo juntos, após a
morte da única filha.
Como não amar a narrativa que se
desenvolve em torno de Kafuku e sua motorista Misaki? Afinal, é nessa ação que
se concentra, à primeira vista, o título do filme. Ou será que esse “Dirija meu
carro” vai além, na perspectiva metafórica de quem conduz quem, ou o quê, nas
relações interpessoais, inserindo-se o título em sua expressão maior? Ou, então,
falando-se de um diretor de teatro que conduz seu cast?
O fato é que Misaki, de feição sisuda,
endurecida por seu passado, vai amolecendo à medida que é introduzida no
universo da arte, por meio da fita cassete que ouve durante os percursos. É
indiscutível que também importa a história pessoal de Misaki, com a mãe cruel que
lhe rende um misto de amor e ódio. Aqui a multiplicidade da comunicação e das intenções
se expressa no recurso bonito do roteiro de inventar uma dupla personalidade
infantil, pueril, para a mãe, canal que possibilita a aproximação amorosa entre
ambas. E a fatalidade na história das duplas, Misaki e sua mãe, Kafuku e Oto,
acabará por aproximar Kafuku e Misaki.
Mas em relação à motorista, a cena
definitiva fica mesmo por conta do elogio rasgado do diretor a ela, em um
jantar que um casal da equipe da peça lhes oferece, e que Misaki, de tão
envergonhada, salta da mesa para o chão, com a desculpa de brincar com o cão.
Literalmente escapa da cena, num movimento estético de enquadramento da filmagem
dos mais belos. Muito tem se falado sobre essa cena. Qualquer discurso, em
palavras, tem alcance limitado para mostrar sua grandeza. Só um filme é capaz
de chegar quase lá.
E essa cena tem sua beleza
completada pelo contraponto da dona da casa, Lee Yoom-a, coreana e muda. Ou
seja, enquanto atriz na peça, se falasse, falaria coreano, mas ela ali se
apresenta por meio de uma linguagem gestual.
A inserção da atriz muda rendeu
outros tantos bonitos momentos, carregados de significação, naquela direção dos
aspectos mais gerais que vimos reiterando. Chega-se ao limite, por exemplo, no
que diz respeito ao alcance do discurso falado na comunicação, já o que conta
agora é o poder do gestual e da imagem.
Em duas cenas magistrais isso se
revela. Na primeira, Yoon-a contracena com Janice, representando
respectivamente a filha e a jovem esposa do professor, em Tio Vânia. Elas,
antes quase inimigas, agora tecem sua aproximação, trocando confidências sobre
a amizade, o amor, a felicidade. Yoon-a por gestos e Janice falando mandarim,
chinesa que é. Pode parecer loucura, mas se abstraímos os letreiros (em
português, portanto uma terceira língua), ficaremos deslumbrados com a mágica da
comunicação entre as duas mulheres.
Deslumbramento parecido com o que
ocorre na cena em que Yoon-a e Kifuko encerram o filme de Hamaguchi e, ao mesmo
tempo, encerrando a peça de Tchékhov. A posição da atriz, abraçando pelas
costas o ator sentado, e conduzindo seu gestual, literalmente, na cara de Kifuko,
não tem preço. Ele olha aquele quase balé das mãos de Yoon-a, passando a
impressão de que faz uma leitura muito particular e alegre do discurso que, a
depender dos gestos, não compreende. E nós, os espectadores do filme e da peça,
paradoxalmente, ao lermos as legendas, percebemos toda a melancolia, dor,
resignação e esperança, que contém a fala final do texto de Tchékhov.
Guia de viagem
Confesso que ter visto Tia Vânia,
de Tchékhov, antes de mergulhar nas três horas de Drive my car, foi
essencial e recomendo. Acredito que minha leitura do filme seria outra, se não
tivesse revisto a peça. Há uma versão excelente, na web, Uncle Vanya,
produzido pela BBC, em 1991.
Não considero, como vi em algumas
críticas, que Tchékhov é uma simples tessitura do enredo. Não é. É essencial.
Atentem para dois momentos do
filme. Em um deles, Yoon-a, declara: “Para mim, é normal as pessoas não
perceberem as minhas palavras. Mas consigo ver e ouvir. Por vezes, consigo
perceber mais do que palavras. O texto de Tchékhov entra em mim e mexe o corpo
outrora preso”. Em outro momento, Kofuku confidencia para Takatsuki: “Tchékhov
é aterrador. Dizer as falas dele revela o nosso verdadeiro eu. Eu não aguento
mais isso. O que significa que já não consigo mais entregar-me ao papel de Vânia.”
Quis o destino que Kofuku acabasse
por substituir Takatsuki, no papel de Vânia, em Hiroshima. Com cenas de tirar o
fôlego, em que o diretor, agora também ator, sai de cena e carrega para a coxia
o peso de sua fala. Onde termina a personagem e começa a pessoa? Onde termina a
representação e começa a vida como ela é?
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