Desconservar o masculino (parte 2): Chico Buarque e a estética do cancelamento em “Com açúcar, com afeto”

Por Marcelo Moraes Caetano

© Lucienne Day


 
Recentemente, o cantor e compositor Chico Buarque decidiu que não mais cantaria sua canção “Com açúcar, com afeto”. Tratou-se de uma importante postura, por ter vindo de um dos maiores artistas e intelectuais brasileiros. Os lados que essa atitude trouxe à discussão, suas causas e consequências, parecem interessantíssimos.
 
Minha admiração por Chico Buarque é imensa. Tanto que dediquei, recentemente, em 23 de novembro de 2021, uma coluna aqui no Letras à análise de uma de suas canções (“Todo o sentimento”, em coautoria com Cristóvão Bastos). Aproveitei o material literário para escrever a coluna que intitulei “Todo (o) sentimento em todo (o) tempo: um pequeno itinerário para uma breve crítica poética” (veja o final do texto).
 
Um dos meus campos de interesse atualmente é o conservadorismo à brasileira (plano do conteúdo) e suas múltiplas manifestações acadêmicas, midiáticas, artísticas, culturais, discursivas (plano da expressão), baseado prioritariamente numa forma colonizatória de patriarcado e machismo que vem cada vez mais sendo discutida. Já publiquei e continuo publicando muito sobre a linguagem do politicamente correto, o que encontra paralelo com esta questão. 
 
Estou escrevendo um livro sobre o tema do conservadorismo à brasileira, em diálogo com o Georg Wink, da Universidade de Copenhague, que acaba de lançar Brazil, land of the past (já sendo traduzido para o português pela Ludimila Hashimoto, a mesma tradutora que fez a versão em inglês do meu livro Em busca do novo normal: reflexões sobre a normose em um mundo diferente). No livro do Georg, o capítulo de conclusão teve uma modesta contribuição de minha parte, após ele me pedir que eu esclarecesse sobre um parecer da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que recusou artigo de Olavo de Carvalho para a revista Ciência hoje. Parcialmente com base no que eu esclareci sobre o parecer da SBPC, que tinha completa razão em recusar a hipótese troncha do Olavo de Carvalho sobre um Aristóteles que, com boa vontade, seria tomista e refletiria o século XI, há o capítulo “The guru´s reaction” no livro dele, o último capítulo, a conclusão do livro. O livro, cujo título em português é Brasil: o país do passado será tratado por mim em muitos momentos nas minhas colunas futuras.
 
Essa minha empreitada de falar sobre o conservadorismo à brasileira, seguindo a linha do meu já publicado livro sobre normose, tem seu fio de Ariadne iniciando exatamente na questão da masculinidade numa sociedade como a brasileira, cujo projeto de depredação, que vem desde a colonização em nossa terra, finca raízes sólidas no patriarcado e num tipo de machismo que incorpora, como no avesso da louvável antropofagia oswaldiana, elementos de normoses que atentam contra a riqueza das culturas europeia (notadamente a portuguesa), indígena e africana que nos perfilaram. Isso vai agir diretamente no que tange ao papel do homem (ou melhor, do masculino) nas representações sociais e nos papéis sociais de gênero desempenhados no Brasil, sobretudo neste atual, pós-2018, ou pós-golpe de 2016, em que um macho “incomível, imbrochável e imorrível” foi eleito presidente.
 
Na minha coluna de janeiro, por exemplo (acho que até anterior à questão do Chico Buarque), eu já publiquei a primeira parte do meu diálogo com o livro “Seis balas num buraco só: a crise do masculino”, do João Silvério Trevisan (veja o final do texto). 
 
Muito por alto, o que venho analisando e aprofundando é que uma postura estritamente punitivista ou criadora de caricatura sobre os homens (o que acaba sendo a mesma coisa) que venha a fundamentar parte dos movimentos que estejam contra o machismo e o patriarcado (o que se vê às vezes em frases do tipo “todo homem é um estuprador em potencial”) é retrógrada e conservadora, exatamente porque CONSERVA (daí ser conservadora) a única prática a que costumamos apelar em terra brasilis: o estado de polícia e de punição, em detrimento do estado de bem-estar social, que necessita de educação e cultura como base para tudo. 
 
É exatamente o que se faz na trombeteada “política” estatal contra as drogas, por exemplo, em que, sob o pretexto de se estar CONSERVANDO um bem maior (a saúde pública), desloca-se o “problema” do combate às drogas para a estrovenga da nossa polícia militar, que sabemos ser caso quase único no mundo civilizado, como braço, rebotalho e entulho da nossa ainda não extinta ditadura militar. “Combate-se” uma questão que é, de fato, NO MÁXIMO, atinente à saúde pública, como se fosse uma questão de segurança pública e, pior, de segurança pública DE GUERRA, MARCIAL, uma vez que quem lida com o assunto não é uma polícia qualquer, mas uma polícia MILITAR. Por isso, enxuga-se gelo. 
 
É curioso que toda uma sociedade conservadora como a brasileira se une para criticar sem a menor dissensão a estratégia de guerra da Rússia contra a Ucrânia (sem considerar que há um neonazismo patrocinado pelos EUA no governo da Ucrânia). Porém, essa mesma sociedade conservadora apoia incondicionalmente a guerra urbana causada pela polícia MILITAR que ataca com arsenal de guerra o “problema” das drogas. “Ah, mas aqui a guerra se justifica” — pleiteia a classe ultraconservadora. É como se a estratégia bélica no Brasil fosse perfeitamente justificável porque se conheceriam os “bandidos” e os “mocinhos”, e os “mocinhos” precisam atear guerra contra os “bandidos”. E ponto final! Essa “justificativa” foi a que os EUA sempre defenderam para suas “guerras contra o terror”, e suas guerras que derrubaram ditadores mundo afora, como a do Iraque. Todo estrato conservador aplaude esse tipo de guerra. Mas, se a guerra parte da Rússia, trata-se de uma violência óbvia aos direitos humanos... Se fôssemos justificar por aí, a Rússia também está tentando derrubar (ou é sua justificativa...) um ditador neonazista, e, diferentemente dos EUA, bem na sua própria vizinhança.
 
TODA GUERRA é uma violência óbvia contra os direitos humanos! A que a Rússia está promovendo não é menos atentatória. Todas as guerras que os EUA (e o Reino Unido, by the way...) promoveram, com justificativa de que estavam “promovendo o bem”, foram atentados grosseiros contra os direitos humanos. São a expressão máxima da barbárie contra a civilização, tão óbvia na famosa dicotomia de Freud. A guerra urbana contra as drogas não é uma guerra menos danosa e terrivelmente contra os direitos humanos. Mas as camadas conservadoras conseguem “discernir” o que são guerras do “bem” e guerras do “mal”. Basicamente, depende de quem ataca... E, em segundo lugar, de quem é atacado.
 
Trata-se do famoso cinismo (e da ignorância) dos ultradireitistas, que sempre incorrem na adorada falácia da seleção dos argumentos.
 
Voltando à questão do Chico Buarque, o que se armou ao seu redor foi todo um discurso bélico de punição, de ameaças (ainda que muito implícitas) de cancelamento ao artista caso ele mesmo não se autocensurasse.
 
Com isso, apelando-se estritamente ao punitivismo como arma contra os homens, sem se apelar TAMBÉM à única solução duradoura, que é a educação e a conscientização dos próprios homens (não tratados como caricaturas ou “estupradores em potencial”), o que temos é uma ferramenta em prol do nosso conservadorismo mais ferrenho e arcaico, de projeto depredatório e colonizador. 
 
Há que haver punição, é claro. Leis que protegem grupos vulneráveis ao machismo, como a Lei Maria da Penha, ou as leis contra o racismo e a homofobia etc., são freios efetivos contra a barbárie e desempenham papel cruciante na civilização. Mas não podem ser os ÚNICOS. 
 
Há que haver reflexão e releitura das práticas sociais, é claro. Afinal, é exatamente isso o que propicia que normoses sejam derrubadas com o passar do tempo, e que paradigmas possam ruir, deixando de causar os sofrimentos, doenças, mortes e guerras que as normoses cultivam.
 
Mas a punição como essência do extermínio de práticas — de quaisquer práticas — não é, obviamente, um caso de guerra? Seria essa outra guerra “do bem”, “justificável”, “aceitável”? Perguntas desse jaez são envergadas pelo Bertrand Russell em seu livro Por que os homens vão à guerra. O professor de Wittgenstein se questiona, em vários momentos, com outras palavras, sobre como as normoses lutam em prol de suas CONSERVAÇÕES (daí serem as defesas dos CONSERVADORES), justamente buscando estritamente declarar guerras contra os “bandidos”, colocando-se como “mocinho”, e apelando para o arsenal de guerra cuja grande coroação é o punitivismo.
 
Chimamanda Ngozi Adichie em seus livros Para educar crianças feministas: um manifesto e Como educar um filho feminista: maternidade, masculinidade e a criação de uma família advoga exatamente, como evidenciam seus títulos, para a EDUCAÇÃO e a conscientização das crianças, e não para uma suposta punição de “crianças machistas” ou de “meninos futuros estupradores em potencial”.
 
A questão é complexa e não pode ser reduzida ao Weltanshauung de um maniqueísmo raso.
 
Por exemplo, a herança portuguesa nos deixou elementos que, na nossa antropofagia, nem sequer merecem ser rebaixados ao estatuto exclusivo de metrópole-colônia. O conservadorismo à brasileira enfatiza normoses contra todas as etnias, arqueologias e culturas que nos compuseram — portuguesa, indígena e africana —, sem, muitas vezes, exatamente enaltecer-lhes as qualidades. O “macho” brasileiro é um tipo sui generis. Daí ser exatamente não um conservadorismo qualquer, mas um conservadorismo À BRASILEIRA. Em nenhum outro país essa característica conservadora se corporificou.
 
Nosso conservadorismo, que é o nascedouro e o alimento do racismo que estrutura nossa sociedade e nosso aparato burocrático-tecnocrático estatal, problema estrutural central no nosso paradigma como sociedade, infiltrado até mesmo no nosso pretenso projeto civilizatório, nasce no que eu acuso no meu livro Reflexões sobre a normose em um mundo diferente, publicado em 2020 (cuja segunda edição está a caminho) como “normose de Platão”. Curiosamente, Jessé Souza, no ano seguinte à publicação do meu livro, em 2021, no seu livro Como o racismo criou o Brasil, compartilha exatamente desse ponto de vista. 
 
No meu livro, eu mostro a citação no Alfred North Whithead que afirma: “A filosofia do ocidente não passa, de certa forma, de notas de rodapé do pensamento de Platão”. O idealismo (inclusive republicano) de Platão, seguido pelo reforço do idealismo de Kant e, no Brasil, da visão do “racismo científico” instaurado por Arthur de Gobineau e reforçado pelo Sérgio Buarque de Holanda (que, curiosamente, é pai do Chico, que alavancou este debate...), tudo isso criou a ideia de que “impuros” se rebelam contra a hegemonia dos “puros”, o que deve ser “combatido”, e o que sintetiza o caldo da essência de todas as formas possíveis de racismo (a “luta” dos “puros” contra os “impuros”) em suas manifestações ubíquas: racismo étnico, sexismo, homofobia, transfobia, etarismo, anticulturalismo. Ódio às diferenças. Ódio aos menos favorecidos.
 
A miscigenação, como constituição concreta da antropologia brasileira, é vista, por esses puristas, como elemento “contaminado” a ser combatido, uma vez que traz em si um corrompimento, uma “corrupção” (tão em voga no discurso da ultradireita, que se arma e busca legitimidade precisamente como paladino desse combate...) a ser frontalmente extirpada, haja o que houver, custe o que custar... O mestiço traria em si os traços do “homem cordial” que, contrariando a “pureza” do europeu, do negro ou do indígena em suas formas “puras”, não é demais reiterar, deve ser correlacionado a um estado de corrupção moral, étnica e cultural.
 
Daí que, em muitos casos, como legado direto de Gobineau e da sua releitura em Sérgio Buarque de Holanda, os próprios sincretismos manifestados na cultura brasileira são mais combatidos até mesmo do que as manifestações que sejam “puras”, ainda que de um grupo minoritário e/ ou não hegemônico e/ ou periférico e/ ou dissidente. A elite brasileira tem horror ao sincretismo. E isso se fantasia de um discurso que, muitas vezes, dá o ar de “tolerante”. A própria palavra “tolerante” denuncia esse status quo: afinal, quem “tolera” algo é alguém que, de cima para baixo, PODE escolher que ATÉ ACEITA determinada prática, que até a TOLERA (ou seja, consegue suportá-la, apesar de quase insuportável), desde que ela seja restrita e discretíssima. Caso contrário, é a guerra que a espera… O gay pode ser gay no seu gueto, mas nunca miscigenar seu objeto de desejo e sua pulsão de vida nos jardins e praças públicas à luz do Sol das cidades. O gay, de certa forma, até se manteria “puro”, com o magnânimo beneplácito da sociedade tão “tolerante”, se se dispuser a permanecer em seu espaço de confinamento. 
 
Todos os intelectuais brasileiros (de que Gilberto Freyre e Mario de Andrade tiveram a nobreza de discordar) reproduziram, em maior ou menor grau, essa visão “purista” e, portanto, racista da sociedade brasileira. Silvio Romero, Nina Rodrigues, Câmara Cascudo... Racismo que é ubíquo e se manifesta não apenas no preconceito contra a cor da pele, mas essencialmente em qualquer mistura que se opere na nossa antropologia e etnologia.
 
Você pode ser o que quiser, desde que permaneça no seu gueto, longe dos olhares “normais” (normóticos é o termo certo), com seu lugar de fala muito domesticado e adstrito a um espaço predeterminado.
 
Toda retórica baseada exclusivamente no punitivismo empurra grupos, mesmo que “maus”, para guetos, impedindo a miscigenação antropológica e o projeto de fato civilizatório, que é ontologicamente inclusivo. Esse padrão recusa em sua base a educação e a conscientização como formas mais concretas e eficientes de quebras de paradigma, e, então, da construção de práxis que realmente consegue subverter infraestruturas oprimidas em superestruturas que não se tornem opressoras, o que acaba refletindo a retórica exatamente do conservadorismo à brasileira. 
 
Isso, ainda quando pensa estar combatendo o “mal”... Porque o “mal”, mesmo o estereótipo de uma forma opressora, são os “impuros”, que os “puros” têm licença estatal e/ ou moral de combater. É assim que os racismos se tornam estruturais e, repetindo, infiltrados até no que seria um pretenso projeto civilizatório, que na verdade acaba CONSERVANDO as práticas da barbárie, uma vez que se dizem civilizatórios mas excluem da sua agenda o seu intrínseco papel inclusivo.
 
Foi assim que se entortaram as riquezas culturais que nos criaram como Nação — negra, indígena, europeia. É assim que se entortam as questões civilizatórias mais emergentes e legítimas, reforçando, num nível não apenas psíquico, mas também coletivo, o mal-estar que Freud acusou no nosso processo de ida da barbárie à civilização. E daí, para além da própria civilização, na nossa ida para um projeto em que Eros faça parte da cultura citadina, como lembrou Marcuse em sua crítica a Freud, abraçando as três ecologias que são a condição de sobrevivência para adiarmos o fim do mundo, como lembram Deleuze, Guattari, Bauman, Naess, Weil e, muito mais recentemente, o incensado (com toda a justiça) filme Não olhe para cima.
 
É preciso tomar cuidado para não cairmos na normose de Platão, que torna as coisas abstratas (nada mais abstrato do que a “liberdade”, única e última das bandeiras da extrema direita) e as generaliza em grupos “bons” e grupos “maus”. Se os homens forem colocados como “estupradores em potencial”, estarão segregados ao gueto racista e conservador dos “maus” que “justificam” as guerras promovidas pelos “bons”. É o que está acontecendo na Rússia. É o que acontece na “política” (na verdade, é uma GUERRA CIVIL) contra o “problema” das drogas. É o que se faz com os “impuros” como os negros, os mestiços, os multiculturais, os LGBTQIA+, as mulheres e até mesmo... os homens. Todo grupo tratado estritamente como “mau” cairá na normose de Platão, que odeia os “impuros” e trata de puni-los e segregá-los a guetos secundários onde, somente ali, eles podem se esgueirar silenciosamente e de modo invisível e oprimido.
 
É preciso sempre tomar muito cuidado para não sairmos do lado de oprimidos e abraçarmos o lado dos opressores. É o microfascismo de que tratam Deleuze e Guattari, o fascismo que podemos introjetar em nossas psiques. É o alerta que Paulo Freire lança ao nos lembrar que uma educação, se não for libertadora, fará com que os oprimidos desejem se tornar opressores. Acrescentando a dinâmica de Freud, esse desejo (a palavra é precisa e correta) pode mesmo ser inconsciente e arquitetar uma formação reativa psicanalítica contra o status de oprimido ou oprimida experimentado. É uma defesa do Ego, que não deixa de ter um componente inconsciente fortíssimo, que pode acabar operando para que todo o recalcamento da opressão sofrida crie o famoso retorno do recalcado, agora de forma violenta e vingativa de opressão. A psicanálise, como um braço importante da antropologia, vem nos explicar esse mecanismo nefasto, perigosíssimo.
 
O mal-estar na civilização, afinal, tem muitos outros elementos pós-freudianos, como os inseridos por seus leitores posteriores, desde os que o apoiaram até os que o criticaram ferrenhamente.
 
Em meu livro Freud e psicanálise: primeiros contatos com a teoria e a prática clínica (no prelo, Editora Jaguatirica, 2022), me aprofundo na questão.
 
Este meu texto, como todos os meus outros, não busca se fechar em si mesmo, mas abrir-se ao mundo. Recorrendo ao Deus Grego da Comunicação, Hermes, não busco ser hermético, mas sim hermenêutico.
 
Prossigamos!

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