Boletim Letras 360º #472

 
 
DO EDITOR
 
1. Caro leitor, eis o Boletim n.472. Aproveite nossas boas informações e boas leituras. E, cabe não esquecer que na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ajuda a manter o Letras.  
 
2. Em nome do Letras, obrigado pelo convívio e pelo apoio!

James Joyce. Foto: Berenice Abbott




 
LANÇAMENTOS
 
Nova tradução integral do Finnegans Wake, de James Joyce.
 
Sylvia Beach dizia que Joyce comparava a história à brincadeira do telefone sem fio, na qual alguém sussurra alguma coisa no ouvido da pessoa ao lado, que a repete não muito perfeitamente para a próxima pessoa, e assim por diante; quando a última pessoa escuta, a frase surge completamente transformada. Parece-me que Joyce levou essa brincadeira para a sua ficção. Em Finnegans Wake, ele diz, na página 5, em tradução de Afonso Teixeira, que “Deve perfazer agora mil e uma estórias conhecidas e parecidas”. Além disso, destaca-se que Finnegans Wake é uma grande fofoca: tudo gira em torno de um possível crime cometido por HCE. Ninguém tem certeza de nada, e cada um que conta a história conta de uma forma diferente. Afinal, lê-se na página 440, em tradução de Aurora Bernardini: “Aplique seus cinco saberes às quatrúltimas verdades”. Instigada pelo próprio Joyce e pela fofoca que emerge em Finnegans Wake, Dirce Waltrick do Amarante decidiu empreender uma tradução coletiva em 2016. Cada tradutor ficou responsável por um ou mais capítulos do livro. As traduções foram feitas quase ao mesmo tempo e, idealmente, cada tradutor contou a sua versão da história para os outros. Como uma boa fofoca, de conto em conto aumenta-se um ponto, ou diminui-se. Mas os olhos não podiam ficar de fora; Sérgio Medeiros traduziu em ilustrações cada uma das quatro partes que compõem o livro. Portanto, há muitas vozes nesta tradução, muitos pontos de vista e diferentes interpretações da história joyciana. Se uma voz masculina “começa” narrando a história (que não tem começo, meio nem fim, pois é circular), é uma voz feminina que “termina” o livro. Os tradutores são todos estudiosos de Joyce ou das vanguardas de um modo geral. Cada um traz uma bagagem cultural que se revela em suas escolhas tradutórias. Há capítulos mais solenes, outros mais descontraídos; alguns mais enfaticamente eróticos, outros menos; e há também capítulos que destacam a história na Irlanda de Joyce, da época de Joyce, e outros que mesclam a história da Irlanda com a do Brasil contemporâneo. Essa multiplicidade de vozes revela também as diferentes leituras que se pode fazer do livro, que na verdade é sisudo e cômico, erótico e pornográfico, que conta a história da Irlanda, que simboliza os muitos países colonizados. O “Coletivo Finnegans” é formado por Afonso Teixeira Filho, Andréa Buch Bohrer, André Cechinel, Aurora Bernardini, Daiane Oliveira, Dirce Waltrick do Amarante, Fedra Rodríguez, Luis Henrique Garcia Ferreira, Sérgio Medeiros, Tarso do Amaral, Vinícius Alves e Vitor Alevato do Amaral. Finnegans Wake é um livro que exige uma outra forma de leitura, que não aquela a que estamos acostumados. Ele pede um leitor performático, que cante suas linhas, que não se preocupe em “entender” o todo, pois o livro é feito de fragmentos, é uma colcha de retalhos, cada retalho tem característica e história próprias, cada palavra é um cosmo ou “caosmos”, como se lê na página 118, em tradução de Daiane Oliveira. Então, escutemos Joyce de olhos abertos! O livro é publicado pela editora Iluminuras. Você pode comprar o livro aqui.
 
Premiado livro de Diego Meret ganha tradução e publicação no Brasil.
 
Vencedor do prêmio Indio Rico de autobiografia num ano em que o júri contava com Ricardo Piglia, María Moreno e Edgardo Cozarinsky, Na pausa, de Diego Meret, é um relato lindamente pessoal, fragmentado, de alguém que escolhe se voltar para os espaços em branco — os intervalos de que uma vida também é feita — para narrar a si mesmo. Para Felipe Charbel, “esse é o modo que Meret encontra de prestar contas com a riqueza das suas experiências. E de dar forma a um modo peculiar (e peculiar porque rico, estranho, interessante) de existir”. O livro é publicado no âmbito da Coleção Archimboldi, da editora Papéis Selvagens e a tradução é de Davis Diniz.
 
As editoras Ateliê e Mnema publicam primorosas edições com as tragédias completas de Sófocles em sete volumes. Os dois primeiros livros são Ájax e As traquínias.
 
1. Segundo a Ilíada, de Homero, depois de Aquiles, Ájax é o mais ilustre guerreiro grego na guerra de Troia. Com a morte de Aquiles, Ájax e Odisseu disputam as armas do morto. Odisseu vence a demanda, e Ájax é possuído pela ira. Com sede de vingança, ele decide matar compatriotas que considerava seus inimigos, especialmente Agamêmnon, comandante dos gregos, o irmão dele, Menelau, e o odiado Odisseu. Alucinado, vê no rebanho a imagem de seus desafetos e promove a degola e o massacre do gado. Ao cair em si e constatar o terrível engano, sente vergonha, humilhação e se vê objeto do riso de seus adversários. Por não suportar essas dores, dá cabo da própria vida. O mito de Ájax ganha admirável versão dramática com a tragédia homônima de Sófocles em edição bilíngue acompanhada de agudos e reveladores estudos do tradutor e de Beatriz de Paoli.
 
2. Dentro de sua casa na terra dos traquínios, Dejanira lamenta a longa ausência do marido, Héracles, chamado Hércules pelos latinos, o mais poderoso e célebre herói dos mitos clássicos. Dejanira sente dolorosa angústia por não ter notícia do marido há quinze meses. Aflita, pede que seu filho Hilo busque informações sobre o pai. Hilo parte. Um Mensageiro traz a notícia da vitória de Héracles. Em seguida, o arauto Licas confirma a notícia e apresenta um grupo de mulheres cativas de guerra, que Héracles enviava para casa. Uma das moças desperta a atenção de Dejanira. O Mensageiro revela que a moça se chamava Íole, era filha do rei Êurito, e Héracles apaixonado por ela a tinha como concubina. Dejanira submete-se ao desejo de Héracles e acolhe Íole, mas não evita um forte ciúme. Lembra-se, então, do centauro Nesso que tentara estuprá-la e fora morto por Héracles. Moribundo, o centauro aconselha Dejanira a guardar seu sangue como um filtro que garantiria a exclusividade do amor do herói por ela. Dejanira embebe uma túnica com o suposto filtro de amor e a remete a Héracles, que a veste. A túnica não continha filtro do amor, mas fatal veneno. Hilo retorna e narra a agonia do pai sob ação do veneno. Dejanira, sob o peso da culpa, comete suicídio. Héracles chega carregado numa maca e seus pedidos ao filho são surpreendentes. O episódio final da vida de Héracles é o tema de As Traquínias, segundo volume das tragédias completas de Sófocles, que a Coleção Clássicos Comentados, da Ateliê Editorial, associada à editora Mnema, tem a satisfação de oferecer para deleite do leitor sensível e exigente. A edição bilíngue é acompanhada de esclarecedores e eruditos estudos do tradutor e de Beatriz de Paoli. Os dois volumes se completam com um útil e conveniente Glossário Mitológico de Antropônimos, Teônimos e Topônimos. As traduções são de Jaa Torrano.
 
Uma ode às famílias, às suas dinâmicas, aos seus limites e seus silêncios.
 
Um avô volta do exterior a seu lar para visitar os filhos adultos. O filho é um fracassado. A filha está prestes a ter um bebê com o homem errado. Somente o avô, um patriarca orgulhoso, é perfeito — de acordo com ele mesmo, pelo menos. Durante dez dias intensos, as relações dessa família caótica, mas completamente normal, desdobram-se e trazem à tona memórias dolorosas. Alguém tem que ceder. Mas o filho está atado ao pai por causa de um acordo que eles chamam de “a cláusula do pai”. Será que a cláusula pode ser negociada? Ou ela deixará para sempre presos ao passado todos os envolvidos? Com A cláusula do pai, o escritor Jonas Hassen Khemiri, vencedor de diversos prêmios literários, criou um romance afetuoso, engraçado e contundente sobre o que significa ser um bom pai, sobre a dificuldade de entender aqueles mais próximos de nós e sobre como às vezes é preciso coragem para apenas se manter por perto. Uma ode às famílias, às suas dinâmicas, aos seus limites e seus silêncios. Em toda a sua glória conturbada, o livro revela um dos maiores desafios da vida: como impedir que sua família defina seu destino. O livro é publicado pela editora Âyiné. Você pode comprar o livro aqui.
 
Obra bilíngue reúne os principais trabalhos do pintor mineiro Amadeo Luciano Lorenzato.
 
Lorenzato produziu um corpo de obra estimado entre 3 mil e 5 mil pinturas com temas e iconografias os mais diversos, que refletem sua biografia e sua relação com a paisagem de Belo Horizonte, seu entorno e sua urbanização. Suas obras conhecidas datam dos anos 1940, quando ele volta ao Brasil depois de ter passado quase trinta anos na Europa, a 1995, ano de sua morte. Únicas em suas técnicas e estilos, suas pinturas remontam a sua origem na classe trabalhadora, condição que o levou a conjugar as ambições artísticas à necessidade de sustentar a si e à família com o trabalho na construção civil. Só pôde se dedicar inteiramente à arte com mais de cinquenta anos, quando se aposenta devido a um acidente de trabalho. Seu ofício como pintor-decorador lhe inspirou a criação de uma técnica pictórica original, que se valia de instrumentos adaptados da decoração de paredes. Com o auxílio de um pente, ele raspava a tinta sobre a superfície repetidas vezes, criando uma fusão de cores com texturas e promovendo uma sensação de movimento. Costumava manipular as tintas a partir de pigmentos minerais encontrados no mercado, e frequentemente as aplicava sobre uma camada de alvaiade que contribuía para intensificar a vibração das cores. A fabricação dos suportes pictóricos, parte importante de sua economia de meios, o levava a reaproveitar pedaços de chapas de madeira e embalagens, às vezes recobertas com tecido ou papel, costurados ou colados à mão. Os formatos eram quase sempre pequenos ou médios — no máximo um metro no lado maior —, denotando certo sentido de domesticidade. Seus quadros têm aspecto áspero: são opacos, táteis e sensoriais. Durante muitos anos limitada a um círculo pequeno de admiradores, sobretudo de artistas e marchands de sua cidade natal, a obra de Lorenzato vem conquistando novas audiências nos últimos vinte anos por meio de exposições, sobretudo em galerias comerciais, que culminaram numa série de apresentações internacionais em 2019. Essa reapreciação consolidou seu lugar entre os artistas modernos brasileiros, contribuindo para a ampliação do cânone. Assim como outros artistas chamados preconceituosamente de primitivos ou ingênuos, Lorenzato recorreu a fontes populares, reprocessando-as com referências eruditas dentro de uma perspectiva não hierárquica. Sua obra deve, pois, ser compreendida como parte da modernidade tardia brasileira. No entanto, mesmo a despeito deste renovado interesse comercial, o sistema da arte não tem sido capaz de produzir reflexão sobre sua obra no mesmo ritmo por meio de mostras institucionais e estudos acadêmicos. Lorenzato: via e obra do artista mineiro é publicado pela editora Ubu. Você pode comprar o livro aqui.
 
A jornada épica que levará Jama ao norte através de Djibouti, Eritreia e Sudão, países devastados pela guerra, até chegar ao Egito.
 
Áden, Iêmen, 1935. Uma cidade vibrante, viva, cheia de perigos ocultos. E lar de Jama, um garoto de dez anos que se vê sozinho no mundo após a morte inesperada de sua mãe. Para chegar à Somália, terra natal de seus ancestrais nômades, o menino cruza o Mar Vermelho. A guerra está no horizonte e as forças fascistas italianas que controlam partes da África Oriental estão se preparando para a batalha, mas Jama não pode descansar até descobrir se o pai, ausente de sua vida desde que ele era bebê, está vivo em algum lugar. Assim começa uma jornada épica que levará Jama ao norte através de Djibouti, Eritreia e Sudão, países devastados pela guerra, até chegar ao Egito. De lá, a bordo de um navio transportando refugiados judeus recém-libertos dos campos de concentração, o garoto segue através dos mares para a Grã-Bretanha. Esta história da longa caminhada de um garoto em busca de liberdade também é a história de como a Segunda Guerra Mundial afetou a África e seus povos; uma história sobre sentir-se deslocado e, no fim, encontrar-se novamente. Nomeada uma das melhores romancistas britânicas pela Granta em 2013, Nadifa Mohamed foi finalista do Booker Prize de 2021 com o livro The fortune men. Menino Mamba-Negra tem tradução de Marina Della Valle e é publicado pela editora Tordesilhas. Você pode comprar o livro aqui.
 
Em Heresia, Betty Milan aborda o tema da morte assistida e questiona até que ponto é legítimo o prolongamento da vida pela ciência e de uma existência orgânica na qual a memória e a própria subjetividade já se extinguiram.
 
Betty Milan é autora de inúmeras e importantes obras, incluindo romances, ensaios, crônicas e peças de teatro. Heresia, romance autobiográfico, trata da morte da mãe, com Alzheimer, e do prolongamento de sua vida em decorrência da proibição cultural, e legal, de buscar a morte assistida. No início do romance, a protagonista diz: “Vou atribuir o que eu escrevo a outra narradora”, num movimento de afastamento do vivido para melhor contemplá-lo e, assim, reatar a ficção ao impulso de conhecimento irrompido pela imaginação.” Manuel da Costa Pinto, na orelha do livro, escreve: “Essa tensão entre o real e o ficcional se torna ainda mais aguda quando aquilo que é representado toca o nervo exposto de dilemas éticos e emocionais — como neste romance de Betty Milan, cuja personagem lida com sentimentos ambíguos ante a decrepitude da mãe centenária. A heresia do título, portanto, se refere a uma questão essencialmente contemporânea: até que ponto é legítimo o prolongamento da vida pela ciência, a perpetuação de uma existência orgânica na qual a memória e a própria subjetividade se extinguem? O romance traz uma dimensão ensaística e metaliterária que sempre esteve presente na obra de Betty Milan, mas que se intensificou desde Consolação. E se A mãe eterna tratou do tema da perda em chave autoficcional, Heresia o potencializa com uma narrativa dentro da narrativa, na forma de um caderno no qual a protagonista elabora sua cerimônia de adeus e descreve (ou imagina) as histórias vividas pela mãe antes do exílio no ‘palácio imaginário’ da amortalidade.” O romance é publicado pela editora Record. Você pode comprar o livro aqui.
 
Os quatro primeiros de Carlos Drummond de Andrade no retorno à antiga casa.
 
A editora Record inicia a publicação da obra do poeta brasileiro pelo seu livro de estreia Alguma poesia (1930), que traz posfácio do estilista Ronaldo Fraga. Junto, saem Sentimento do mundo (1940) com posfácio do líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak, Claro enigma, com posfácio de Mia Couto e a reunião de poemas feita pelo autor no auge da forma, Antologia poética, com posfácio de Zélia Duncan. Cada um dos livros traz bibliografia, uma cronologia da vida e obra do poeta e as variantes no processo de fixação dos textos encontram-se disponíveis por meio do código QR.
 
O segundo romance de Julia Dantas.
 
Murilo acaba de se mudar para um apartamento no qual a antiga moradora, Francesca, deixou uma tartaruga. Seguindo ordens recebidas por e-mail, tenta entregar o animal por meia Porto Alegre. A peregrinação parece inocente, mas a escritora Julia Dantas sabe que não há nada mais radical e transformador do que o encontro entre pessoas, quando minimamente desarmadas. Comovente, espirituoso, inesperado, o segundo romance da autora é narrado de forma tão firme que poderia ser utilizado em aulas sobre como contar uma história, criar cenas perfeitas, compor um personagem. Como as vias que o protagonista percorre na cidade, a jornada é sinuosa e cheia de ladeiras. Em embates com a morte, a doença e o fim dos relacionamentos, os personagens se abrem em suas vulnerabilidades, conflitos e anseios. Assim, ensaiam arranhar a couraça de dinâmicas de opressão, especialmente relacionadas a gênero. Ela se chama Rodolfo, de Julia Dantas é publicado pela DBA editora. Você pode comprar o livro aqui.
 
A poesia de Jean-Luc Godard.
 
Entre 1988 e 1998, Jean-Luc Godard escreveu e montou o monumental História(s) do cinema, trabalho que resultou num filme de oito episódios e neste longo poema-ensaio. Nele, o autor se firma como grande pensador do cinema, ao fazer coincidir a história do século e a sua história como artista. Manuseando um grande arquivo em que se chocam pedaços de livros, filmes, pinturas, Godard compõe um panorama pessoal, sob a forma de poema, que coloca o dedo em algumas feridas do século XX. Na orelha do livro, Katia Maciel afirma que Godard filma com a máquina de escrever “a genealogia do cinema depois da pintura, do plano americano ao close, dos irmãos Lumière a Hitchcock, da nouvelle vague e neorrealismo ao cinema hollywoodiano. A guerra. O horror. O amor. A loucura. A história do cinema como imagem da história.” Em tradução do premiado tradutor Zéfere, História(s) do cinema apresenta, pela primeira vez em língua portuguesa, aquela que é considerada uma das maiores criações de Godard, espécie de súmula do conjunto da obra do autor. A edição conta ainda com o posfácio de Joana Matos Frias. O livro sai em abril no clube Círculo de Poemas, da Luna Parque Edições e Fósforo Editora. No mês seguinte chega aos demais leitores.
 
Nova tradução de Hécuba, de Eurípides.
 
Pobre Hécuba! Não houve mãe grega ou troiana que tenha sofrido mais que a rainha de Troia! Um a um de seus rebentos, Hécuba perdeu para a guerra infame, realizada em nome de uma “mulher que o foi de mais de um homem”, como ressoou no coro esquiliano (Ag. 63-64). A tradição deu-lhe entre quatorze e dezenove filhos. Eurípides ampliou a prole para cinquenta filhos, o que a tornou a imagem da maternidade total.  Quando a tragédia foi encenada, o cenário da vida real era a guerra do Peloponeso, que já acumulava seus mortos. Toda a peça se centra no sofrimento materno, potencializado na morte dos derradeiros filhos, Polidoro e Polixena — o primeiro, traído por quem o deveria salvaguardar; a segunda, reduzida a butim de guerra do inimigo já morto. Assim como as duas guerras — a de Troia e a do Peloponeso — se espelham, tais mortes replicam um drama em que a mater dolorosa vingará todos os filhos perdidos para a insânia humana. Esta tradução de Hécuba oferece a leitores e plateias uma experiência totalmente inovadora, desobediente aos usos e costumes tradutórios que solenizam a linguagem, em detrimento dos sentimentos e impulsos que sangram a língua escorreita, para parturiar o trágico. Tradução descolonizadora, fiel à vertigem de um texto que revida à desgraça dessa mãe reduzida a nada — “sem filho, sem marido, sem cidade” (v. 669) — e cuja dor vai “muito além da Taprobana” (v. 714); chama a si recursos insuspeitáveis, para dizer a dor que não pode ser calada. Talvez esta tradução explique às plateias brasileiras a desrazão do belicismo em que vivemos. Com tradução da Trupe de Tradução de Teatro Antigo (Trupersa), dirigida por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, o livro é publicado pela Relicário Edições.
 
Um livro e dois volumes de contos da escritora Samanta Schweblin.
 
É famosa a afirmação de Júlio Cortázar de que no “embate que se trava entre um texto apaixonante e o leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve vencer por nocaute”. Herdeira direta de uma distinta linhagem de nocauteadores, da qual fazem parte Adolfo Bioy Casares e o próprio Cortázar, Samanta Schweblin, que já afirmou se identificar como autora de contos, mais do que de romances, está à frente de uma geração de escritores que renovam os votos de afinidade entre a forma breve e a ficção latino-americana. A autora recupera também a tradição do conto fantástico novecentista europeu, que encontra na Argentina solo fértil para o florescimento de um novo insólito, calcado nas particularidades do país. Esta reunião de dois volumes de contos da autora, o cultuado Pássaros na boca (2009), em tradução revisada de Joca Reiners Terron, e Sete casas vazias (2015), inédito no Brasil, apresenta uma miríade de personagens incomuns, narrativas fantásticas, elementos sobrenaturais, sanguinolentos e grotescos que fizeram de Schweblin um destaque internacional da literatura contemporânea. Pássaros na boca é título homônimo de um conto em que uma menina passa a se alimentar de pássaros vivos, para desespero de seus pais. Se isso não parece verossímil, tampouco o são os demais personagens: uma esposa assassinada em uma mala torna-se obra de arte, um herdeiro milionário age como criança na loja de brinquedos, um rapaz passa por uma prova inusitada a fim de se tornar um assassino de aluguel, entre outros. Sete casas vazias, por sua vez, explora o espaço doméstico como palco de um terror que, por ser cotidiano, não é menos inquietante. Aqui, o metrô, o trânsito, os mercadinhos de bairro e apartamentos pequenos são cenários de divórcios, suicídios, doenças e dos não ditos que preenchem cômodos e ilustram com nitidez o estranho familiar [Unheimlich] descrito por Freud. Medos se combinam à intimidade das famílias e ao caos que pode reinar entre um cigarro e uma xícara de café, ou numa simples ida à farmácia. Em ambos os livros, Schweblin oferece uma exímia contística e flerta com o lado sombrio e com o horror ao mesmo tempo em que reconhece a graciosidade e a inocência dos deslocados, mostrando que seu lado melancólico pode ocasionar tanto o riso quanto a reflexão. O livro é publicado pela editora Fósforo.
 
RAPIDINHAS 
 
Mais Jack Kerouac. A L&PM Editores publica no segundo semestre de 2022, três títulos ainda inéditos do autor de On the road no Brasil. Antes, começa a reeditar algumas joias do catálogo, como Os vagabundos iluminados. O trabalho assinala o centenário do escritor estadunidense. 
 
A chegada de uma editora portuguesa ao Brasil. O acontecimento não é novo e o caso mais recente que podemos citar foi o da editora Tinta-da-China que ainda publicou alguns importantes livros do seu catálogo até suspender as operações e repassar suas funções para o grupo da revista Quatro Cinco Um. A casa que começa a chegar por aqui no fim do primeiro semestre, numa atitude que marca seus bem vividos cinquenta anos de atividade, é a Assírio & Alvim.  
 
O Boom de Fernando Pessoa no Brasil 1. A chegada do braço português no Brasil da Assírio & Alvim se fará com a publicação de um conjunto de ensaios do poeta de Mensagem acerca da literatura. Sobre a arte literária foi editada por Fernando Cabral Martins e Richard Zenith e é parte na coleção Pessoa Breve.
 
O Boom de Fernando Pessoa no Brasil 2. Mas, antes outros dois anúncios renovam a presença de Pessoa entre nós: a Todavia publicará a coleção organizada por Jerónimo Pizarro (trabalho que começou pela Tinta-da-China); e a Companhia das Letras pela reedição da sua coleção organizada por Richard Zenith.

O Boom de Fernando Pessoa no Brasil 3. A mesma Companhia das Letras anunciou que publicará para o segundo semestre de 2022 a biografia de Pessoa escrita por Richard Zenith, recém-aparecida entre os leitores de língua inglesa e já disponível em Portugal.

Livros para ajudar. A Penguin/ Companhia das Letras abriu parceria para uma campanha de ajuda aos desamparados pela invasão da Rússia à Ucrânia. Quem comprar Contos de Odessa, de Isaac Bábel destinará o valor total para a Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Os livros são vendidos a preço módico e com frete grátis exclusivamente no site da editora.

Todo Machado de Assis em nova edição. A Todavia começa a publicar a partir de 2023 toda a obra de Machado de Assis publicada em vida e em ordem cronológica; são vinte e seis volumes reunindo poesia, conto e romance. A coleção em parceria com o Itaú Cultural tem chancela do professor Hélio Guimarães.

Um segundo livro de Enzo Maqueira. A Pontoedita se prepara para publicar no segundo semestre de 2022 um segundo romance do escritor argentino. Electrónica, o livro em questão, é descrito como o grande romance da classe média argentina semiculta e universitária. A casa já trouxe aos leitores brasileiros, o romance Faça-se você mesmo.
 
REEDIÇÕES
 
Nova edição de um romance de Nelson Rodrigues, repleto de ação, ironia e humor, além das famosas críticas sociais aos costumes brasileiros.
 
A mentira foi o primeiro romance-folhetim que Nelson Rodrigues assinou com o próprio nome, mas não o primeiro que escreveu. Àquela altura, em 1953, seu pseudônimo Suzana Flag já havia publicado cinco obras do gênero, e Nelson sabia muito bem do que precisava para prender a atenção de leitores e leitoras de periódicos. Ocupando semanalmente as páginas da Flan, revista semanal d’O Jornal da Semana, o enredo trazia os mesmos ingredientes infalíveis dos folhetins anteriores: drama, paixão, desejos secretos e, em especial, um grande e envolvente suspense. Mas, dessa vez, a assinatura do se faz mais visível, numa narrativa direta, sem rodeios, em que as mais imprevisíveis reviravoltas se sucedem num ritmo de tirar o fôlego. Uma leitura rápida que poderia facilmente, sem grandes alterações, ser adaptada para o teatro ― território pelo qual, aliás, Nelson já era reconhecidíssimo. Esta reedição conta com textos de apoio de Renato Noguera e Mariana Mayor. O livro é publicado pela HarperCollins Brasil. Você pode comprar o livro aqui.

No centenário de Jack Kerouac reedição de dois títulos.
 
1. Escrito em 1955 e publicado somente em 2008, Despertar: uma vida de Buda é uma profunda meditação sobre a natureza da vida, sobre a sabedoria e o sofrimento a partir da biografia de Sidarta Gautama. Kerouac refaz o caminho do príncipe desde seu nascimento num rico palácio até a decisão de renunciar a uma vida regida pelos bens materiais em busca da iluminação. Mesmo tendo sido criado em um lar católico, no início dos anos 50 Kerouac fascinou-se pelo budismo, interesse que teria um profundo impacto nas suas ideias sobre espiritualidade e nos seus romances. Um precioso livro para entender o budismo beat praticado e professado por Kerouac, Despertar é, a um só tempo, uma peça importante dentro da obra do autor e uma valiosa introdução aos ensinamentos budistas, acessível a todos os leitores. A tradução é de Lúcia Brito. Você pode comprar o livro aqui.
 
2. Considerado por muitos especialistas e leitores da literatura beat como o melhor romance de Jack Kerouac, Os vagabundos iluminados conta a história de uma busca pela verdade e pela iluminação. O protagonista, Ray Smith, é um aspirante a escritor de São Francisco que anseia por algo mais na vida. Esse algo mais será apresentado a ele por Japhy Ryder — um jovem zen-budista adepto do montanhismo que vive com um mínimo de dinheiro, alheio à sociedade de consumo norte-americana. Em meio a festas, bebedeiras, garotas, jam sessions, saraus poéticos, orgias zen-budistas e viagens, Os vagabundos iluminados — lançado nos Estados Unidos em 1958, apenas um ano após o estouro de On the road — é, sem dúvida alguma, uma obra à altura da sua irmã mais famosa. O estilo turbinado, superadjetivado e livre de Kerouac exala doses nunca vistas de humor, sabedoria e contagiante gosto pela vida. Temos aqui uma geração beat claramente herdeira de Thoreau, Whitman e London; mais beatífica, mais otimista e mais tranquila. Em suma: mais iluminada. A tradução é de Ana Ban. Você pode comprar o livro aqui.
 
Nova edição de Nelson Rodrigues por ele mesmo.
 
Numa coletânea de entrevistas e depoimentos, conheça a genialidade incomparável de um dos maiores autores brasileiros dos últimos tempos. Em 2012, quando Nelson Rodrigues completaria 100 anos, a escritora Sonia Rodrigues teve uma ideia tão genial quanto necessária: recordar-nos quem foi seu pai, esse gigante da dramaturgia, do jornalismo e da literatura brasileira. Depois de anos imersa em entrevistas e depoimentos que Nelson deu ao longo da vida, ela percebeu que o melhor jeito de compartilhar informações sobre a vida e o pensamento do polêmico escritor era deixando que ele falasse por si mesmo, sem intérpretes, sem críticos. Bastava que ela costurasse todo o material de seu arquivo pessoal: áudios e textos visitados e revisitados por anos. E foi assim que surgiu esta não ficção, que dez anos depois ganha nova edição, com prefácio de Fernanda Montenegro. “Na obra de Nelson Rodrigues nós nos reconhecemos no nosso pior e no nosso melhor. E nos aceitamos numa total e trágica inquietação existencial.” O livro é publicado pela HarperCollins Brasil. Você pode comprar o livro aqui
 
OBITUÁRIO
 
Morreu Gastão Cruz.
 
Autor de uma obra que aparece ligada ao coletivo Poesia 61 e destacado entre os principais nomes da poesia de língua portuguesa, Gastão Cruz também exerceu sua atividade literária na prosa e no teatro, além de escrever crítica e se dedicar ao trabalho da tradução. Na poesia, é o autor de mais de duas dezenas de títulos; Campânula, Órgão de luzes, As pedras negras, A moeda do tempo, Observação do verão, Fogo, Óxido e Existência são alguns desses livros. No teatro, foi um dos fundadores do Grupo de Teatro Hoje, para o qual encenou obras de Camus, Tchekhov e Carlos de Oliveira. E, como tradutor, trouxe ao português obras de autores como William Blake, Jean Cocteau e Shakespeare. Sua longa trajetória dedicada às letras obteve alguns importantes reconhecimentos em seu país, como o Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, o Prêmio D. Dinis e Prêmio Correntes d’Escrita. Formado em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Gastão Cruz nasceu em Faro a 20 de julho de 1941 e morreu em Lisboa no dia 20 de março de 2022.
 
DICAS DE LEITURA
 
É fato curioso que os gêneros que poderíamos tratar como os pais das formas literárias — a poesia e o teatro — tenham sobrevivido sempre à margem, beirando o fim do interesse dos leitores. Talvez por isso exista no calendário datas específicas para se ressaltar sua existência e, por extensão, sua importância. No dia 21 de março celebra-se o Dia da Poesia; e no domingo agora, 27 de março, Dia do Teatro. A primeira foi criada pela UNESCO e a segunda pelo Instituto Internacional do Teatro e é o norte para as dicas de leitura desta semana. Selecionamos três peças aleatórias mas que marquem três momentos da história do teatro no ocidente: uma tragédia grega, uma peça do ponto alto do renascimento e uma peça do teatro moderno. E você já leu alguma delas? Costuma ler o teatro? Se quiser, conta para nós! A caixa de comentários está aberta. Na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ainda ajuda a manter o Letras.
 
1. Édipo Rei ou Édipo Tirano, de Sófocles. O teatro grego legou uma biblioteca riquíssima de tragédias e comédias. Embora pouco tenha sobrevivido, o que chegou até nós remonta o apogeu dessa expressão artística. Nos festivais tornados parte indissociável do calendário de eventos da cidade e da vida cotidiana de seus habitantes, os criadores costumavam apresentar um conjunto de três tragédias e uma comédia. De Sófocles, sempre lido como um dos maiores tragediógrafos, restou essa peça e outras duas que possivelmente participam de um ciclo de criações em comum e se tornam epicentro de sua obra. Os três textos formam o que se designa por Trilogia Tebana e inclui Édipo em Colono e Antígona — que acompanham de alguma maneira os episódios de errância depois dos acontecimentos trágicos de primeira peça. Há muitas traduções e edições que você pode encontrar para leitura — mesmo online. Dos livros, recomendamos três delas: a tradução de Mário Gama Cury possível de ser encontrada nessa edição em capa dura da Zahar e com apresentação esclarecedora de Adriane da Silva Duarte; a sempre irretocável tradução de Trajano Vieira, publicada pela editora Perspectiva (você pode comprar aqui); e a digamos, ousada tradução de Leonardo Antunes (compre aqui) , publicada pela Todavia com um título que recupera o sentido mais próprio para a designação de Édipo — Édipo Tirano.
 
2. Rei Lear, de Shakespeare. O bardo inglês vale pela literatura de uma civilização. Seu rico universo criativo é matéria de leitura para uma longa vida. E qualquer uma das suas peças pode ser uma pequena janela para acesso a esse mundo. Tomara, que com esta o efeito no leitor — uma vez se decidindo pela leitura — seja o de abrir outras janelas e portas shakespearianas. Também é possível encontrar várias traduções acessíveis, como a da indispensável Bárbara Heliodora. Ou, a recomendada aqui, realizada por Lawrence Flores Pereira e publicada pela Penguin/ Companhia das Letras. Agora, se você é um leitor ousado e quer ampliar sua biblioteca para ler este e outros trabalhos de Shakespeare, recomendamos essa caixa com três pesados volumes reunindo o teatro completo traduzido pela Heliodora e publicada Nova Aguilar. Olha, valerá a pena, ainda mais porque a caixa está com 50% de desconto.
 
3. Quatro peças, de Anton Tchékhov. Dissemos sobre a riqueza do teatro grego. Mas o teatro moderno reúne mais de uma centena de autores fundamentais; pensemos em Luigi  Pirandello, Henrik Ibsen, Samuel Beckett, Bernard Shaw, Bertolt Brechet, Harold Pinter, Dario Fo, Arthur Miller, Wole Soyinka, David Hare, Botho Strauss e Anton Tchékhov. É mais ou menos acessível encontrar edições com boas traduções das principais peças do autor russo. Mas, para burlar as limitações das listas, achamos interessante recomendar essa edição da Penguin/ Companhia das Letras. Quatro peças reúne os trabalhos centrais de Tchékhov para o teatro: “A gaivota”, “Tio Vânia”, “Três imãs” e “O jardim das cerejeiras”. Os textos foram traduzidos por e comentados por Rubens Figueiredo, quem ainda escreveu uma apresentação para este trabalho. Valioso.  Você pode comprar o livro aqui.
 
VÍDEOS, VERSOS E OUTRAS PROSAS
 
1. Revisitando vídeos raros apresentados no arquivo do Letras no Facebook, encontramos com esses registros que capturam James Joyce por Paris do tempo de publicação de Ulysses.
 
2. Neste 26 de março de 2022 passam-se 130 anos sobre a morte de Walt Whitman. Você pode ler dois poemas do poeta estadunidense no arquivo do blog da revista 7faces aqui.
 
BAÚ DE LETRAS
 
1. Ainda pelo Dia do Teatro. Uma visita ao blog levará o leitor a encontrar algumas das nossas leituras sobre algumas peças. Mas, para ampliar sua biblioteca recomendamos aqui esta lista com onze obras do teatro moderno e contemporâneo — estão alguns nomes citados na seção Dicas de Leitura e outros. 

2. Em 2009, enquanto recordava seu encontro com Gastão Cruz, nosso editor escreveu alguns detalhes sobre a obra e a presença da obra no Brasil do poeta português que nos deixou no dia 20 de março de 2022. Você pode ler o texto aqui.

3. Nosso colunista Pedro Belo Clara escreveu sobre o livro Óxido, de Gastão Cruz, aquando da sua publicação em Portugal; o texto saiu em duas partes: a primeira está aqui e a segunda aqui

4. Já recomendado na seção Dicas de Leitura numa das edições do Boletim Letras 360.º, Faça-se você mesmo, de Enzo Maqueira, foi lido e comentado aqui no blog. O livro foi escolhido entre os melhores na categoria prosa na lista do Letras de 2021.

DUAS PALAVRINHAS

Na poesia procuro uma casa onde o eco
existe sem o grito que todavia o gera

— Gastão Cruz, no poema “Rua de Portugal”

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