Alejandra Pizarnik: correspondências
Por Fernanda Fatureto
Alejandra Pizarnik. Arquivo Flia D'Amigo-Digisi. |
As correspondências de Alejandra Pizarnik e seu psicanalista
Léon Ostrov foram reunidas em livro em 2012. Cartas tem edição de Andrea
Ostrov e mostra a relação íntima que Pizarnik trava com o papel e sua confiança
no profissional. Dessa relação que se converte num tipo de amizade a argentina
constrói belos momentos quando da sua estadia em Paris.
“Léon Ostrov foi o primeiro psicanalista de Alejandra, que recorreu a ele quando tinha apenas 18 anos, em meio de 1954. Quando ela se
instalou em Paris, entre 1960 e 1964, estabeleceu uma relação epistolar que se
converteu em 21 cartas. A relação de amizade entre Pizarnik e Ostrov foi
sustentada pelo profundo interesse de ambos por literatura e filosofia.”,
afirma-se na introdução do livro.
A poesia de Alejandra Pizarnik nasce da angústia e do
contato com o vazio. Léon Ostrov lhe impulsiona a persistir nessa busca: “tenta lhe dar
ânimo, reforçar sua autoestima, ajudá-la a tomar decisões, apoiá-la em seus
esforços e projetos”.
Deste livro de cartas surge, em 2002, um livro de poemas de
Malinow. Ele afirma: “deste material, com parágrafos, pensamentos,
circunstâncias assim nasceu este volume pois de imediato adverti que estas
cartas eram, antes de tudo, poesia”.
A coletânea de Cartas é organizada em ordem
cronológica e manteve suas digressões. Das 21 missivas, algumas foram publicadas em revistas e
em forma de fragmentos e nos mostra o desejo da vida pelas palavras. O avanço
do fazer poético era sua conquista, como afirma: “Leio Góngora e os
surrealistas e me preocupo com a palavra. Creio ter feito um pequeno progresso
nos últimos poemas. E descobri que se pode fazer poemas sem ter nada pensado,
sem pensar, sem sentir, sem imaginar, em qualquer instante e a qualquer hora”. E afirma: “o poema se faz com palavras...”.
Na “Carta n.º 4” Pizarnik indica o caminho de sua escritura ao
se perguntar: “Como salvar o abismo que existe entre a poesia e a vida?”. Na
verdade, lendo suas correspondências percebe-se que desta ponte entre vida e
poesia ela construiu sua escrita.
As cartas de Pizarnik para Ostrov, mas também para Julio
Cortázar, Octavio Paz e todos os amigos oferecem importantes indícios da sua verdade mais
profunda: “Estou lutando corpo a corpo com meu silêncio, com meu deserto, com
minha memória pulverizada”, afirma Pizarnik.
Andrea Ostrov, filha de Léon Ostrov, afirma que nas cartas de
Pizarnik “se impõe, em todo momento, a densidade de uma presença física, um
corpo como sede da experiência, imerso no espaço-tempo, um corpo em situação”.
Suas publicações, sabemos, estão impressas, além das cartas em diários, poesia
e narrativa.
Seu analista descreve numa das cartas a necessidade da
argentina em transformar sua vida através da página escrita. Ela mesma diz nos Diários:
“Possibilidades de viver? Sim, há uma. É uma folha em branco, é ater-se sobre o
papel, é sair fora de mim mesma e viajar em uma folha em branco.”
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Carta n.º 10
27 de dezembro de 1960
Querido León Ostrov:
Faz bastante tempo que desejo lhe escrever e não sei que
impaciência me detém na metade das cartas, que exasperação ante a pobreza de
minha linguagem. Enfim, envio-lhe algumas poucas linhas para que saiba que
estou, que vivo, e que se não escrevo é porque não posso.
Minha vida aqui vem e vai, é a correnteza de sempre, esperança
e desesperança. Interesse por morrer e por viver. Às vezes existe ordem, às
vezes me devora o caos. Acredito que atualmente é o segundo. Talvez lhe escreva
por isso.
Meu trabalho no escritório vai bem. Faço bem as coisas. Com uma
absoluta inconsciência. Mas é isso, o que parece, a razão de meu êxito. Penso no
mais distante enquanto minhas mãos e algo que não sei o que é se fundem com a tarefa.
E estou distante, e não obstante as coisas acontecem. Me assombro de não conseguir
transformar isso num inferno, quero dizer minha relação com os que me rodeiam. Sou
calada e cortês (três gentille) e minha única preocupação é Eichelbaum (quem você conhece, acredito) e quem odeio muito em segredo. Este ódio me exaspera
como todas as manifestações afetivas que não compreendo. Com toda humildade psicanalítica,
me permiti descobrir — por sonhos e associações — que o identifico
profundamente com meu pai. Além disso, inventei de me apaixonar platonicamente
por uma jornalista argentina que prepara com ele um programa de rádio. Este amor
é o que faltava para me levar à atualidade o problema sempre ardente que tenho
com minha mãe. Acrescentemos que a jornalista é lésbica assumida e que E. se
encontra com ela em todos os lugares, menos no escritório (“me impede de vê-la”).
Tudo isso funde-se nas duas sombras de costume, nos dois seres da infância, na sensação
de orfandade e na dor de sempre. Só que agora me vejo e me descubro. Quer dizer,
durante o dia compreendo o patológico deste amor (faz já três meses que deliro por
ela) mas na noite é a vingança, e quando mais “curada” me sinto, por obra e
graça de meu esforço e inteligência, se produzem sonhos tristes com hospitais
nos quais ela e eu estamos com minha família. Enfim, estes dois seres, E. e a
jornalista — que não sei por que silencio seu nome se você deve conhecê-la — me
são próximos e presentes quase todo o dia e toda noite. Minha vida, então, é
uma conjuração de sombras. Vejo outra gente, trato de sair, me obrigo a ir ao
cinema, ao teatro, a ler, a escrever. Além disso, desde a semana passada tenho
um amante. Um amante que me faz feliz. Isso é tão assustador, justamente agora
que me sentia no centro exato da homossexualidade, vem alguém (um jovem poeta
muito semelhante — pela poesia e pela maneira de fazer amor — com Enrique
Molina) com quem alcanço uma realização física absoluta, absurdamente perfeita.
E fico assombrada, como é possível, digo a mim mesmo, está tão enferma e ser
tão neurótica e se isso for pouco, permitir-se esta exaltação do corpo, esta
plenitude sexual, esta aventura profunda. Tudo isso rodeado de temores pelas
consequências (como sempre) e além de um estranho desconcerto porque eu não amo
este jovem poeta e me é, em suma, indiferente, mas quando vem é como uma droga,
algo mais forte que tudo. E, no dia seguinte, vem a culpa, um sentimento bíblico
do peso do corpo, do sexo e me enche a memória de pombas enquanto necessito de
anjos e flores: poemas. O resto está na dúvida: não sei se desisto ou se permaneço.
Ainda não me disseram que me aceitam definitivamente mas suspeito que assim
será, e depois de tudo, que importa voltar ou não, melhor dizendo, importa não voltar,
importa minha solidão em meu quartinho — que cheguei a desejar — minha
liberdade de movimento e esta ausência de olhos alheios em minhas atitudes. Se não
fosse por minha paixão (que me leva muitas noites a errar pelas ruas e buscá-la:
em cada rosto, em cada árvore, nos cães, nas folhas mortas, nas sombras; e a
tristeza definitiva de voltar depois de não haver encontrado e o que encontrar
se o que se busca não existe?) minha vida seria tranquila e possivelmente
feliz, mas esta nova irrealidade em que me consumi, este amar absurdo
(acontecendo, como sempre nestes casos, que nem recordo seu rosto verdadeiro). Enfim,
muito medo e mesmo assim estou maravilhada, fascinada pelo estranho e o inextricável
de tudo o que sou, de todas as que sou e as que me fazem e desfazem. (“Sofrem
mas vivem. O sofrimento é verdadeiro”). Mas gostaria de falar com você sobre
tudo isso. Mas, perdão por tanto conflito, por esse lançar-me assim por via
aérea, sofrendo a perpetuidade, erguida na torre Eiffel como um inquebrantável “hommenage
a Freud”. Abraços para você, para Aglae e para Andrea,
Alejandra
Comentários
estou lendo ele devagarinho - e adorando!
depois eu retorno aqui, para prosseguir com a leitura.
um abraço, pessoal.
e obrigada por esse blog!