A mão de Deus, de Paolo Sorrentino
Por Pedro Fernandes
Até agora o ponto central da obra
de Paolo Sorrentino é o premiado La grande bellezza, filme que o revela pelo
reconhecimento unânime nos principais festivais. O curioso é que tão cedo, o
diretor italiano tenha recorrido ao substrato da memória individual para a
composição de È stata la mano di Dio. Não existe regras para a adesão de
um criador ao autobiográfico, é claro. O que existe com alguma recorrência é que
esse interesse se apresenta no zênite de uma obra. No caso desse trabalho, a
guinada para o pessoal se constitui uma resposta muito própria a uma matriz narrativa
que parece começar com This Must Be the Place: a do criador
multiplamente reconhecido que atravessa uma crise que pode incluir a vida presa
numa espiral de acontecimentos desagradáveis.
No filme de 2021, Sorrentino aposta
numa virada. Quer não mais investigar a crise criativa, mas os meandros que poderá
levar seu protagonista ao ponto máximo de sua criação. Contado pelo ponto de
vista de um adolescente, a narrativa de A mão de Deus, tal como traduzido
no Brasil, acompanha o ambiente familiar de Fabietto com todas suas peculiaridades.
A entrada nesse universo do jovem não é para revelar uma possível condição
problemática em relação ao seu lugar, mas oferecer uma variedade de acontecimentos
— alguns no sentido do causo — que fermentam seu terreno imaginativo.
Paolo Sorrentino vai a uma fonte
inesgotável para a criação ficcional; o emaranhado de situações familiares
coloridas com a marca inamovível de Federico Fellini também nos remete para
algo muito anterior ao cinema, como as novelas de Boccaccio. O frescor do anedotário
que se introduz por entre o acontecido, transmudando sua propriedade, isto é,
corrompendo os limites entre o factual e o inventado, é o melhor da narrativa.
Observe-se, por exemplo, o caso da
tia Patrizia, a personagem que nesse complexo caricatural da família, é reduzida
ao modelo da mulher desviada porque fatal e lasciva. Destinada ao sanatório, um
recurso que ela própria encontra para se penitenciar da extensa lista de culpas
que lhe é atribuída ou escapar do destino de sofrer nas mãos de um marido
ciumento e violento, o filme abre com uma circunstância que a envolve e depois
se revela emblemática para o funcionamento da narrativa.
Culpando-se por não conseguir engravidar,
Patrizia é seduzida por um figurão a uma irrisória simpatia: o simples encontro
com um pequeno monge resolveria um problema que pode muito bem não ser dela mas
do marido, hipótese que se sustenta com o rosário de homens imprestáveis na
extensa família de mulheres. O que se encena é o plano literal desse
acontecimento, mas o filme não se descuida de tratar o episódio pelo seu valor dúbio.
É que Patrizia, além de agraciada com a possibilidade de engravidar, ainda
recebe dinheiro por isso.
Ora, de todo ajuntamento familiar,
Fabietto, que nutre um desejo pela tia só vencido pelo prazer de ver Maradona
jogar, é único capaz de levar a sério a explicação de Patrizia para o
acontecido. O que poderia parecer apenas um recurso da ingenuidade do adolescente
para a vida adulta — e a leitura não se encontra descartada — é também uma sensibilidade
para compreender que entre o vivido e o inventado existe uma dimensão cara à
própria ordem da existência, embora nem sempre reparemos nela ainda que dela
continuamente nos beneficiemos. A mão de Deus está repleta dessas
situações e o filme talvez seja mesmo uma síntese do que chamamos de
inexplicável.
O episódio trágico que constitui o
ponto nodal dessa narrativa é exemplo valioso. Esse título também opera por uma
via de mão dupla — numa via o acontecido, noutra, o inventado: ora remete-nos
para a presença indelével de Diego Maradona no Napoli entre 1984 e 1991; ora
para o golpe do destino que salva o jovem Federico do que se passa com seus
pais. Nos dois casos, os termos revestem-se de uma complexidade: a mão da
vitória é a da vergonha, a que salva também mata.
No primeiro caso, o filme recupera
exatamente o período de quando o jogador argentino ajudou ao clube da cidade de
Nápoles a conquistar o primeiro título do Campeonato Italiano de Futebol contra
o Juventus em 1986-1987 e, mais tarde, num episódio que se revestiu de valor
para a própria história da complexa união do país, na Copa do Mundo de 1990,
Maradona pede aos napolitanos que torçam pela Argentina na semifinal no estádio
de San Paolo, uma vez que estes eram tratados como estrangeiros dentro do
próprio país.
Esses acontecimentos funcionam
como fio que alinhava o desenvolvimento da narrativa, por vezes assume presença
na sua superfície e é, pela paixão do protagonista pelo jogador argentino, o divisor
de águas no seu destino. É esse o pequeno nó que começa a desatar no aberto
final do filme. Forçado pelo acaso a encarar a maturidade da vida, a partir
daqui, a história se modifica até alcançar a substituição do interesse de
Fabietto por cursar filosofia — não sem antes flertar com um destino para o
crime, contexto inescapável aos de Nápoles —, para fazer cinema.
A mão de Deus se
constitui assim por três movimentos: primeiro o marcado pela exuberância do ambiente
familiar; depois, a sombra do trágico, descida que contrasta significativamente
com a linha anterior, aparentemente amarrada a curso sem grandes novidades; e,
por fim, numa pequena lição, que às vezes se confunde com o tom do metacinema
mas é um breve ensaio sobre o despertar da consciência para a criação. Quer
dizer, Sorrentino costura três arranjos muito distintos que sem o criterioso
cuidado de integrá-los resultaria no horrível Frankenstein.
São muitas também as pequenas
possibilidades de intersecção administradas em equilibradas doses ao longo do
filme — a começar pela atenção dedicada ao que é irrisório no âmbito dos
acontecimentos familiares; esse não é um ponto de vista comum quando na maioria
das vezes atravessamos essas situações sem quaisquer impressões como se fossem
o que deveria ser. Ao acentuá-las — e só nos damos conta depois de tudo — o
cineasta demonstra o aparecimento do interesse cinematográfico de Fabietto.
E, porque nos referimos sobre o
caso de Patrizia, voltemos a ele apenas para mais um exemplo sobre a tarefa de
alinhavo dos três movimentos de A mão de Deus e conclusão destas notas. Fabietto
angaria uma aproximação diferente com a tia, como dissemos. Mas, é na viagem
decisiva que o leva para Roma, que o protagonista se encontra visualmente
interceptado pela explicação incomum de Patrizia sobre a traição ou não na sua perturbada
consciência pela maternidade. Na primeira estação, ele avista pela janela um
menino monge. Dessa vez, temos acesso ao rosto da personagem que acena solitária
para o trem. Obviamente que esse acontecimento em nada esclarece o primeiro —
talvez expanda ainda mais sua complexidade.
O fato é que Fabietto acreditara
na história de Patrizia; depois se descobre implicado na mesma rede dos acontecimentos
sem explicação objetiva. Então, nada impede que seu olho capture essa dimensão
entre a clareza do fato e a nebulosidade do imaginado. Parece mesmo que essa
sensibilidade combinada com as nossas próprias paixões é o melhor de viver; não
é a linha definitiva e tampouco nossa salvação, mas pior que isso é permanecer
submetido à superficialidade do mundo. Eis a melhor das descobertas que fazemos
com este filme de Paolo Sorrentino que, tomara, não transforme sua arte de
contar histórias com imagens numa especulação narcisista. A mão de Deus
é perfeitamente acessível sem a redução que quiseram impor (que aliás impõem
para tudo nos dias correntes) de autobiografia. Fabietto é ele próprio e todo
aquele que é tocado pela experiência de se destacar da realidade como o princípio
e fim literal — inclusive Sorrentino.
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