Um país esfrangalhado
Por Ana Clara Batista de
Almeida
Às portas de 2022, ano que promete
ser muito perturbador para todos os brasileiros, a editora Aglaia publica Poço
sem fundo, do escritor mineiro Adriano de Paula Rabelo. Trata-se de um
acerto de contas com a ruína brasileira depois do golpe parlamentar de 2016,
dos crimes de um até então obscuro juiz federal e uma súcia de procuradores do
Ministério Público, das eleições de 2018 e das ações da barbárie que chegou ao
poder com as armas da mentira, da violência e da obscuridade.
O título do livro é uma metáfora sobre
o Brasil dos tempos infames que vivemos, quando nada está tão ruim que não
possa ser piorado, quando mergulhamos a cada dia um pouco mais fundo depois de
havermos rompido todos os marcos civilizatórios, quando tantos de nossos
patrícios estão adoecendo de Brasil, sufocados que estão pela brutalidade do
nosso cotidiano.
Misturando prosa e verso, às vezes
saltando de uma para o outro dentro do mesmo texto, Rabelo busca sempre a
densidade expressiva que consiste em dizer o máximo com o mínimo de palavras.
Mas, um dos aspectos interessantes do livro é a forma como explora a
intertextualidade, presente nos títulos dados às três partes em que ele se
divide e em diversos textos que o compõem.
Para intitular as três partes, o
autor pinçou no Hino Nacional (“Deitado eternamente”), no Hino da Proclamação
da República (“Os mais torpes labéus”) e no Hino da Independência do Brasil
(“Não temais ímpias falanges”) passagens infladas de preciosismo vocabular e
ufanismo pedantesco. Num tempo em que alguns símbolos nacionais foram reapropriados
por grupos políticos de extrema direita que, utilizando-os e deles abusando, se
batem com violência e grosseria em nome das pautas mais retrógradas, o autor
realiza a suprema ironia de expor, utilizando o triunfalismo dos hinos
nacionais em chave invertida, toda a pequenez, a perversidade e a estupidez que
tomaram conta da nação.
Em “Deitado eternamente”, os
textos giram em torno de interpretações clássicas do Brasil, sendo facilmente
reconhecível seu diálogo com obras como Raízes do Brasil, Casa-grande
& senzala, Retrato do Brasil e Formação econômica do Brasil.
Dialoga também com o que as culturas popular e de massas têm expressado sobre o
tema, como no brilhante texto inicial, intitulado “Do exílio aqui mesmo”, que
faz contraponto com poemas muito populares de autores como Gonçalves Dias e Carlos
Drummond de Andrade, bem como canções de compositores como Ari Barroso e
Dorival Caymmi, para exprimir a realidade patética do Brasil atual, que passa
muito longe da possibilidade de qualquer exaltação.
Em “Os mais torpes labéus”, a
parte mais satírica da obra, o autor fustiga uma série de personagens
inacreditáveis que se alçaram a lugares de destaque no centro do poder e mesmo
da cultura brasileira nos últimos anos. Os títulos de alguns textos desta seção
não deixam muitas dúvidas sobre suas identidades: “17 de abril de 2016”,
“Desgraçado”, “O astrólogo”, “Sextilhas do pastor”, “Juiz jeca”, “Zero-zeros”,
“Filósofos brasileiros”.
Já a terceira parte, “Não temais
ímpias falanges”, abre o foco sobre classes e grupos atuantes em nossa
sociedade, bem como tipos representativos dos preconceitos e da vulgaridade que
saíram do armário da nação em torno do ano de 2018 e que permanecem entre nós,
orgulhosos de sua estultice. Ainda uma vez, os títulos de alguns textos por si já
dizem muito: “Apenas ricos”, “A classe mediana”, “Mastim”, “Cabeças de papel”,
“Agropop”, “O tio de domingo”, “Macho demais” e “Bolhas”.
Merece destaque o último texto do
livro, “Nosso quinhão”, que reflete sobre os erros e negligências das forças
democráticas e progressistas que também contribuíram para o estado de coisas
que enfrentamos. Uma reorganização dessas forças passa certamente pelo
reconhecimento de suas faltas, a fim de que elas não sejam repetidas nas lutas
de hoje e de amanhã.
Adriano de Paula Rabelo encerra o
texto de apresentação de seu livro comparando o que estamos vivendo ao que foi
a guerra do Peloponeso para a Grécia clássica, o terremoto de Lisboa para
Portugal do século XVIII e a bomba de Hiroshima para o Japão de 1945, ou seja,
uma catástrofe que nos obriga a nos reinventar como nação e como civilização,
sob pena da desintegração disso que chamamos de Brasil.
A partir dessas ruínas, é grande a
tarefa na qual a nossa e as próximas gerações precisam se engajar. E até
varrermos para a lata de lixo da história os “torpes labéus” que hoje se
encontram no poder, temos a missão de lutar e resistir. É o que faz o autor em
seus textos furiosos e indignados, melancólicos algumas vezes, mas que não
deixam de destilar um humor cáustico e ferino. Poço sem fundo é, no fim
das contas, uma expressão de amor autêntico pelo Brasil.
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