Um leitor (quase dialético) de Sagarana

Por Felipe de Moraes

Antonio Candido na zona rural de Bofete (SP), em janeiro de 1948, durante trabalho de campo para pesquisa que levaria a Os parceiros do Rio Bonito


 
Uma “crítica integradora”
 
“a arte [...] tem uma funcionalidade imediata social, é uma profissão e uma força interessada na vida.”
— Mário de Andrade, “O Movimento Modernista”
 
Roberto Schwarz disse em mais de uma ocasião que a obra ensaística de Antonio Candido deve estar ao lado das obras Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. (1999, p. 12). A princípio, essa vizinhança poderia soar estranha, pois ela estabelece uma proximidade entre um estudioso da literatura e autores que produziram obras de caráter intrinsecamente sociológico e histórico no esforço de uma interpretação do Brasil que levasse em conta seus aspectos sociais e econômicos. O estranhamento provocado pela fala de Schwarz desaparece, no entanto, quando a obra de Antonio Candido é lida com atenção, a ponto de se poder notar nela uma tensão rica, em sentido crítico, que “procuram estabelecer a parte que devem ter na crítica literária as considerações externas, de condicionamento social e psicológico, e as internas, de composição artística.” (1999, p. 10)
 
É pensando nesse aspecto dialético e tensionado da obra ensaística de Candido, que gostaria de comentar nesse breve ensaio um texto seu publicado em 1946 — uma resenha feita ao calor da hora do primeiro livro de Guimarães Rosa, Sagarana. O intuito é mostrar como alguns dos aspectos, que serão desenvolvidos posteriormente em Literatura e sociedade, como a noção de “redução estrutural” e dos condicionantes externos à obra que se transformam em internos, a dialética entre o particular e o universal, já estão esboçados nessa breve recepção do livro de Rosa. Antes, contudo, gostaria de tecer alguns comentários mais gerais acerca do “método” de Candido e a modo como ele concebe aquilo que ele denomina de uma “crítica integradora”.
 
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A ideia de uma crítica literária que leve em conta os aspectos sociológicos como um dos fatores integrantes da forma literária aparece formulada pela primeira vez na tese que Antonio Candido defende em 1945 — Método crítico de Sílvio Romero. Na tese, Candido revê os pressupostos do crítico fluminense do século XIX, criticando sua visão positivista, que via a obra literária como um reflexo imediato dos complexos sociais e psicológicos dos autores.
 
Para Candido, o caminho era outro: a crítica séria deveria integrar as esferas externa e interna do texto literário (ele ainda não falava em dialética a essa altura), de tal modo que a análise não busque exclusivamente na obra um valor de verdade que seja historicamente determinado, nem caia numa apreciação meramente estética. Em outras palavras, as bases científicas do crítico, sua visão dos condicionantes sociais, devem se coadunar com a dimensão estético-formal. Como observa Leopoldo Waizbort, “a crítica literária, não pode ser nem estética, nem sociológica, mas uma integração a conjugar ambas, figurando no estudo da obra literária.” (2007, p. 106)
 
Esse “acerto de contas” com Sílvio Romero ganhará sua formulação mais precisa vinte anos depois, com a publicação de Literatura e sociedade, sobretudo no conjunto de ensaios que formam a primeira parte do livro — “Crítica e Sociologia”, “A literatura e a vida social” e “Estímulos da criação literária”. São todos estudos que pretendem, nas palavras do próprio Candido no prefácio à terceira edição, “averiguar como a realidade social se transforma em componente de uma estrutura literária, a ponto de ela poder ser estudada em si mesma; e como só o conhecimento desta estrutura permite compreender a função que a obra exerce.” (2019, p. 9)
 
Ou seja, há um duplo movimento que o ato da crítica deve executar — um de fora para dentro, buscando localizar na obra os dados da experiência histórica, os extratos sociais representados, os costumes; o outro, de dentro para fora, na medida em que o material do mundo já se encontra trabalhado pelo escritor, que selecionou e lhe deu coerência, podendo iluminar a realidade empírica; desse modo, a “função” da obra se entrevê.
 
Candido depura essa concepção crítica ao longo de sua trajetória intelectual. A sua formação em Ciências Sociais lhe forneceu um “ponto de vista” valioso para a análise literária, pois formalizou um conhecimento através de bases mais científicas, bases essas que se fortaleciam cada vez mais com a implementação do estudo universitário no Brasil. Além disso, seu ensaísmo foi forjado no espaço da revista Clima, onde era o responsável pela coluna de literatura. A formação em sociologia, o ambiente acadêmico e formal que se fortalecia no Brasil a partir do final dos anos 1930, a atividade como crítico de rodapé, forneceram ao autor de Formação da Literatura Brasileira uma percepção singular da análise literária, pois lhe permitiu “estabelecer as mediações analíticas necessárias para correlacionar literatura e sociedade.” (PONTES, 1998, p. 178)
 
No calor da hora
 
Como o próprio Antonio Candido disse muitas vezes, o crítico de rodapé era uma profissão de alto risco. Lidando com o desconhecido, ele tinha que fornecer um juízo de valor para uma obra até então completamente desconhecida. Assim foi com autores como Clarice Lispector, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e muitos outros. A resenha que passarei a comentar também foi feita no calor da hora.


Primeira edição de Sagarana, de João Guimarães Rosa.


 
Sagarana foi lançado em 1946 e catapultou Guimarães Rosa para a posição de destaque na narrativa brasileira moderna. Candido recebeu o livro no mesmo ano e escreveu a resenha para o rodapé do Diário de São Paulo. O texto é curto e certeiro, e aponta algumas particularidades da ficção roseana que Antonio Candido retomaria, em chave mais complexa, num ensaio denominado “Homem dos avessos”, publicado em 1964, no volume Tese e antítese.
 
A resenha, no entanto, apresenta algumas características interessantes. Candido a escreve num momento em que é assistente de Sociologia na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Ou seja, o seu vínculo institucional acaba por marcar a sua produção ensaística, reforçando esse caminho duplo entre a sociologia e a literatura. A tensão entre a apreciação sociológica e a avaliação do caráter formal é ressaltada nessa breve resenha sobre o primeiro livro de contos de Guimarães Rosa.
 
Gostaria de comentar com mais vagar os dois parágrafos iniciais da resenha de Antonio Candido; eles são exemplares para mostrar como o jovem sociólogo ainda estava para resolver o método dialético que tanto caracterizou seus textos de madureza. Eis o trecho:
 
“O grande êxito de Sagarana, do sr. João Guimarães Rosa, não deixa de se prender às relações do público ledor com o problema do regionalismo e do nacionalismo literário. Há cerca de trinta anos, quando a literatura regionalista veio para a ribalta, gloriosa, avassaladora, passávamos um momento de extremo federalismo. Na intelligentsia, portanto, o patriotismo se afirmou como reação de unidade nacional. A Pátria, com pê sempre maiúsculo, latejou descompassadamente, e os escritores regionais eram procurados como afirmação nativista. Foi o tempo em que todo jovem promotor ou delegado, despachado para as cidadezinhas do interior, voltava com um volume de contos ou uma novela sertaneja, quase sempre lembrança das cenas, fatos e pessoas cujo pitoresco lhe assentava a sensibilidade, litorânea de nascimento ou educação.
 
A reviravolta econômica nos grandes Estados, subsequente à crise de 1929, alterou os termos da equação política, e a descentralização federalista, depois de alguns protestos nem sempre platônicos, foi cedendo passo à nova fase centralizadora, exigida quase pelo desenvolvimento da indústria. Processo cuja aberração foi o Estado Novo, assim como a Constituição castilhista tinha a aberração do processo anterior.” (2002, p. 183-184)
 
É uma abertura que impressiona (no bom sentido) o leitor que espera uma resenha em moldes mais “tradicionais” e puramente estéticos. Nesse sentido, é uma abertura que mostra com perfeição aquilo que Roberto Schwarz denominou de “socializar o juízo de gosto” (1999, p. 10); isto é, Candido historiciza o contexto produção imediatamente anterior ao aparecimento da obra de Guimarães Rosa, assinalando um rompimento com a corrente regionalista que vinha se desenvolvendo e o livro de contos de um autor desconhecido que agora tem em mãos. Um panorama histórico e social é descortinado pelo crítico e fornece uma espécie de arrimo para os comentários posteriores sobre os contos de Rosa. No limite, o que se pode notar nesse começo é que o sociólogo tem mais força que o crítico literário.
 
Recém proclamada a República, o Brasil tateava na busca de uma expressão que definisse os contornos de sua identidade nacional. Como resposta a isso, cada região respondia ressaltando no nível cultural o pitoresco que lhe era característico. Daí o espírito federalista que tomava as regiões do país e definia a sua produção literária em larga medida — uma literatura nordestina, que exibia os dramas da seca e da fome; uma literatura gaúcha, que falava dos vaqueiros e estanceiros, e das disputas que se travavam nas fronteiras do Sul do país. Portanto, a literatura que surgia apresentava traços fortemente nativistas e com forte cor local como resposta a uma concepção de unidade homogeneizadora de nação.
 
Candido prossegue no comentário dizendo que se por um lado é possível notar uma certa continuidade, nos contos roseanos, da “literatura da terra”, por outro o autor mineiro se desprende desse “sabor regional” para construir uma um espaço que “transcende o regional” (2002, p. 185).¹ O é ressaltado na fatura de Sagarana é o artifício com o qual Rosa elabora a paisagem, os tipos humanos, os animais e as plantas. Como nota Candido ainda, essa Minas criada pelo autor é mais uma região da arte do que algo localizável no mapa.
 
Essa superação do regionalismo se dá, em Rosa, através vigor simbólico que as narrativas possuem. O que Candido sublinha é a capacidade que tem o autor para contar histórias (ou estórias, se quisermos), retomando o filão arcaico do contador oral, com uma matéria rústica e quase mítica, mas dando a essa matéria uma forma de moderna, de vanguarda:
 
“Já se vê por aí que o sr. Guimarães Rosa retorna, em grande estilo, à concepção do contista-contador, para o qual a verdade está na narração e na descrição, para o qual as facadas, os casos de amor, os estouros de boiada e os crepúsculos têm valor eterno, acima de qual outro. Por outro lado, como ficou sugerido, a região, deixando de ser, para ele, simples localização da história, com função de pitoresco e anedótico, passa a verdadeira personagem (se assim me posso exprimir), tanta é a persistência e a profundidade com quem vêm invocados a sua flora, a sua fauna, o seu relevo.” (2002, p. 188)
 
A resenha termina com Candido louvando a fatura geral de Sagarana (ainda que alertando para alguns contos que caem num certo “pendor verboso”) e apontando uma última peculiaridade dos contos de Rosa — eles “criam uma vivência poderosamente nossa e ao mesmo tempo universal, que valoriza e eleva a nossa arte”. (2002, p. 189) Em outras palavras, um movimento que, estando entre o particular e o universal, dá o tom às narrativas do livro. O leitor atento perceberá que essa frase reaparecerá, condensada quase na forma de um provérbio, no ensaio “O homem dos avessos”, quando Candido formula que “o Sertão é o Mundo” (2017, p. 130).
 
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No meu breve comentário à resenha de Antonio Candido busquei ressaltar o que me pareceu uma tensão, ainda não resolvida em termos dialéticos, entre a visão sociológica e a formal no estudo da obra literária. Escrito nos anos 40, esse texto já apresenta algumas das linhas teóricas que o crítico expandiria mais tarde em dois outros textos sobre a obra de Guimarães Rosa.
               
O ensaísmo de Candido consegue conciliar um impasse que se arrastou por muito tempo na crítica literária brasileira, que via a impossibilidade da junção entre literatura e sociedade. O crítico mostra ser possível uma análise formal, ou estética, sem que essa se “dessocialize” (1999, p. 12) para ficarmos mais uma vez com a expressão aguda de Roberto Schwarz. Para Candido, a literatura era vista num contexto maior, como expressão simbólica de uma sociedade, e, portanto, como manifestação de direito humano. Uma análise que excluísse o social em detrimento do formal, ou vice-versa, não seria crítica o suficiente para enfrentar o contexto complexo do Brasil, que se sustém na base de uma modernização conservadora. E como o próprio Candido gostava de lembrar — a literatura é o homem.
 
Notas
 
1 É interessante perceber que o conceito cunhado por Antonio Candido décadas mais tarde para dar conta da especificidade da mimese roseana, que ele denominou de “surregionalismo”, já se encontra em outros termos nessa resenha.


Bibliografia
 
ARANTES, Paulo. “Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo”. In: Sentido da formação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p.7-66.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 13 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2019.
CANDIDO, Antonio. “O homem dos avessos”. In: Tese e antítese. 6 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2017.
CANDIDO, Antonio. “Sagarana”. In. Textos de Intervenção (introdução e notas de Vinícius Dantas). São Paulo: Editora 34/Duas Cidades, 2002, p.183-189.
PONTES, Heloisa. Destinos Mistos – os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-1968). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SCHWARZ, Roberto. Sequências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
WAIZBORT, Leopoldo. A passagem do três ao um. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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