Seis poemas-canções de Zeca Afonso (Parte II)¹

Por Pedro Belo Clara
 

 
MENINO DO BAIRRO NEGRO2
(Baladas de Coimbra, 1963)
 
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar
 
Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz
 
Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Virá também
 
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
 
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
 
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar
 
Se até dá gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti
 
Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver
 
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
 
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção

 
MULHER DA ERVA3
(Cantigas do Maio, 1971)
 
Velha da terra morena
Pensa que é já lua cheia
Vela que a onda condena
Feita em pedaços na areia
 
Saia rota subindo a estrada
Inda a noite rompendo vem
A mulher pega na braçada
De erva fresca supremo bem
 
Canta a rola numa ramada
Pela estrada vai a mulher
Meu senhor, nesta caminhada
Nem m’alembra do amanhecer
 
Há quem viva sem dar por nada
Há quem morra sem tal saber
Velha ardida velha queimada
Vende a fruta se queres comer
 
À noitinha a mulher alcança
Quem lhe compra do seu manjar
Para dar à cabrinha mansa
Erva fresca da cor do mar
 
Na calçada uma mancha negra
Cobriu tudo e ali ficou
Anda, velha da saia preta
Flor que ao vento no chão tombou
 
No Inverno terás fartura
Da erva fora supremo bem
Canta rola tua amargura
Manhã moça nunca mais vem
 
 
A MORTE SAIU À RUA4
(Eu vou ser como a toupeira, 1972)
 
A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai
 
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu
 
Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina, à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou
 
Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação.
 
 
ERA UM REDONDO VOCÁBULO5
(Venham Mais Cinco, 1973)
 
Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar,
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Congregando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança,
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincando e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa
 
 
VENHAM MAIS CINCO6
(Venham Mais Cinco, 1973)
 
Venham mais cinco
Duma assentada
Que eu pago já
Do branco ou tinto
Se o velho estica
Eu fico por cá
 
Se tem má pinta
Dá-lhe um apito
E põe-no a andar
De espada à cinta
Já crê que é rei
D’aquém e D’além Mar
 
Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D’embalar a trouxa
E zarpar
 
A gente ajuda
Havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira
Deitar abaixo
O que eu levantei
 
A bucha é dura
Mais dura é a razão
Que a sustém
Só nesta rusga
Não há lugar
Pr’os filhos da mãe
 
Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D’embalar a trouxa
E zarpar
 
Bem me diziam
Bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra
Quem trepa
No coqueiro
É o rei
 
Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D’embalar a trouxa
E zarpar
 
 
TERESA TORGA7
(Com as Minhas Tamanquinhas, 1976)
 
No centro da Avenida
No cruzamento da rua
Às quatro em ponto perdida
Dançava uma mulher nua
 
A gente que via a cena
Correu para junto dela
No intuito de vesti-la
Mas surge António Capela
 
Que aproveitando a barbuda
Só pensa em fotografá-la
Mulher na democracia
Não é biombo de sala
 
Dizem que se chama Teresa
Seu nome é Teresa Torga
Muda o pick-up em Benfica
Atura a malta da borga
 
Aluga quartos de casa
Mas já foi primeira estrela
Agora é modelo à força
Que o diga António Capela
 
Teresa Torga, Teresa Torga
Vencida numa fornalha
Não há bandeira sem luta
Não há luta sem batalha


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Notas
 
1 Todos os textos apresentados estão, no que à sua forma diz respeito, de acordo com o exposto no site oficial da Associação José Afonso (aja.pt).
 
2 É um dos primeiros temas de Zeca que critica implicitamente o regime fascista e as condições deploráveis das classes menos favorecidas. Seria, conta-se, a canção preferida da mãe do autor, embora não fosse muito dada aos impulsos revolucionários do filho. O poema terá surgido em torno duma inscrição anónima que Zeca viu rabiscada numa certa parede duma certa cidade, e que continha pelo menos parte do refrão usado neste tema (provavelmente, “Onde não há pão não há sossego”). O bairro em causa, propriamente dito, não existe, foi inspirado num outro que Zeca Afonso visitou na cidade do Porto. Chamou-o então de “negro” por ser dessa cor as condições de vida dos seus pobres habitantes.
 
3 Zeca Afonso conheceu a mulher que serviu de inspiração a este tema no Alentejo, quando numa estrada com ela se cruzou. Teria a senhora mais de setenta anos de idade e como meio de sustento dedicava-se a vender erva para o gado, noite e dia sem cessar, por todo e qualquer caminho que houvesse. A digna profissão, porém, que não tardaria a desaparecer com a modernização da agricultura — daí que Zeca, no início do poema, se tenha referido à velha mulher como “vela que a onda condena”.
 
4 O poema foi escrito em memória do artista José Dias Coelho, militante do Partido Comunista Português, assassinado pela polícia do regime (PIDE) em dezembro de 1961, quando contava apenas trinta e oito anos de idade. A rua onde foi morto, em Lisboa, ostenta hoje em dia o seu nome. Apesar de Zeca referir-se ao artista como pintor, este é, na verdade, mais reconhecido pelos seus trabalhos de escultura. 
 
5 Um célebre tema que Zeca escreveu enquanto esteve preso no forte de Caxias, perto da cidade de Lisboa, entre abril e maio de 1973 — à semelhança de muitos outros que se incluíram neste álbum.
 
6 Este tema é um dos últimos grandes sucessos do autor ainda durante a vigência do regime fascista, sendo quase em simultâneo como que o derradeiro grito de todo um país cansado de mordaças e amarras. Zeca nunca soube dizer se o texto foi escrito ou não durante a sua estadia na prisão de Caxias — perdera simplesmente a memória de tal facto.
 
7 Zeca inspirou-se num evento real, como a leitura do poema já permite antever. Em maio de 1975, como que do nada, uma mulher, percorrendo uma avenida de Lisboa, começa a dançar, ao mesmo tempo que se vai despindo — até ficar completamente nua. Alguns populares correm em seu auxílio, tentando vesti-la, pelo menos tapá-la. Quis o destino que por ali passasse, à mesma hora, um repórter, de seu nome António Capela, que, atónito como muitos outros transeuntes, decide de pronto registar o momento. Ora o acto foi muito mal recebido pela população no local, que chegou a ameaçá-lo com agressões físicas caso não parasse de fotografar a pobre mulher. Consideravam, portanto, um aproveitamento repudiante dum evento infeliz, e não tardou muito para a ameaça se tornar coisa realizada. Só por sorte esse acto de baixa moralidade não resultou na perda irreversível das provas do insólito caso. O Zeca, no dia seguinte, leu a crónica num jornal local e de pronto encontrou inspiração para compor um novo tema, profundamente cáustico para com o comportamento do repórter. Mas quem seria a senhora no epicentro do sucedido, já que muitos dos locais não a souberam identificar? Diziam chamar-se Maria Teresa. Porém, essa “modelo à força” terá afirmado, no dia, o seguinte: “Não sou Maria. Não sou Teresa. Tenho muitos nomes”. Seria devaneio seu, contudo. Teresa era uma antiga actriz de teatro e fadista, de quarenta e um anos de idade à época, divorciada e por breves anos emigrante no Brasil. Sendo ela uma apreciadora de leituras, segundo uma vizinha sua, usava o nome Torga, precisamente em honra do célebre escritor transmontano. À data do sucedido, colocava discos numa boîte do bairro de Benfica. É certo que alguns viram no acontecimento um acto de liberdade pura, celebrado em campo aberto na cidade, sem pudor ou restrição. De facto, há poucos dias havia-se comemorado o primeiro aniversário da revolução de abril, e pensou-se que tudo poderia estar relacionado. Mas, na verdade, Teresa era uma paciente regular e em tratamento corrente num famoso hospital psiquiátrico da cidade — e assim tudo se explica sem grande sobra de dúvida. Em todo o caso, o tema de Zeca acabou por tornar-se num dos primeiros símbolos artísticos da luta feminina pela igualdade de direitos e oportunidades numa sociedade ainda demasiadamente patriarcal, desde logo pela urgência em respeitar a mulher como ser vivente e pensante, ao invés de publicitá-la como um mero objecto: “Mulher na democracia / Não é biombo de sala”.

Comentários

Nalita disse…
Relativamente ao ponto 2, não me consta que a canção preferida da mãe do José Afonso fosse "Menino do Bairro Negro", mas sim "Menino d'oiro".
Pedro Belo Clara disse…
Cara Nelita, boa tarde.
Agradeço o seu comentário.
Decerto terá razão, não o contesto, mas acontece que nos deparámos, durante a nossa investigação, com a seguinte afirmação, e seguimo-la: «Esta terá sido a canção preferida da mãe de Zeca Afonso, de acordo com Arménia Moutinho Rua».
Creio, e agora somente falo de cor, que num certo sítio do site da AJA encontrava-se, no separador desta canção, explicando origens e curiosidades, uma afirmação idêntica. Mas o site foi renovado recentemente, já não consegui encontrar o lugar exacto.
Repare-se, no entanto, que não declarámos com certeza tal preferência, usámos ao invés a palavra "conta-se", o que sempre deixa espaço para alguma dúvida.
Porém, dado ser uma questão dúbia, não vemos problema em retirar a nossa afirmação, se necessário.
Grato pela atenção.
Cumprimentos,
Pedro Belo.

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