São os russos
Por David Toscana
A cavalaria vermelha. Kazimir Severinovich Malevich, 1932. |
Tenho em minha mesa dois livros
cujas histórias começam na Ucrânia: O exército de cavalaria, de Isaac
Bábel, e Kaputt, de Curzio Malaparte.
O livro de Bábel começa assim: “O comdiv
6 relatou que Novograd-Volynsk tinha sido tomada hoje, ao amanhecer. O Estado-Maior
saiu de Krapivno, e nosso comboio, uma barulhenta retaguarda, espalhou-se pela
estrada de pedra que vai de Brest a Varsóvia, construída sobre os ossos dos
camponeses por Nicolau I.”
Em seguida nos descreve o ambiente
fértil, que tem sido a bênção e a maldição da Ucrânia: “Campos de papoulas púrpura
floresciam à nossa volta, o vento do meio-dia brinca por entre o centeio
amarelado, e o virginal trigo sarraceno ergue-se no horizonte como a muralha de
um mosteiro longínquo. O plácido Volýnia serpenteia. O Volýnia afasta-se de nós
na bruma perolada das moitas de bétulas, infiltra-se através das colinas
floridas e, com seus braços cansados, enreda-se nas touceiras de lúpulo.”
Malaparte nos conta desde a
primeira página: “Comecei a escrever Kaputt no verão de 1941, no início
da guerra alemã contra a Rússia, na aldeia de Pestcianka, na Ucrânia”. Entre
múltiplas atrocidades, ele fala de uma usual selvageria realizada pelos
alemães. Convocavam os camponeses das aldeias ucranianas para fazerem um teste
de leitura. A maioria deles era analfabeta; depois sofriam e se angustiavam sem
conseguir decifrar o texto. Os poucos, liam com orgulho com a melhor pronúncia
e entonação de que eram capazes. Então os alemães desmontaram aqueles que
sabiam ler e os fuzilavam.
Os alemães também queriam saquear
o chamado “celeiro da Europa” e, quando já o haviam cercado, começaram a “queimar
as aldeias incapazes de abastecer os esquadrões de requisição com tantas
medidas de trigo ou farinha, tantas medidas de milho ou cevada, tantos cavalos
ou tantas cabeças de gado”.
Isso quando apenas alguns anos
antes, Stálin havia deixado morrer de fome entre cinco e dez milhões de
camponeses ucranianos, requisitando deles todas as colheitas, todos os
alimentos, todos os animais e até mesmo todas as sementes. O primeiro a relatar
este genocídio ao mundo foi o jornalista galês Gareth Jones, que logo seria
assassinado pelos serviços secretos soviéticos.
“O cavalo é agora uma questão de
vida ou morte”, escreveu Jones no início da rapina stalinista, “pois como
alguém pode arar sem um cavalo? Se não arar, como poderá plantar para a próxima
colheita? E se não semear para a próxima colheita, então a morte é a única
perspectiva no futuro.”
Um fazendeiro diz a Jones: “Antes,
tínhamos cavalos, vacas, porcos e galinhas. Agora estamos famintos. Antes alimentávamos
o mundo. Agora tiraram tudo de nós e não temos nada. Antes, eu o teria recebido
como meu convidado, oferecendo-lhe frango, ovos, leite e um excelente pão
branco. Agora não tenho nem pão. Eles estão nos matando.”
Decido tirar outros livros das
minhas estantes.
Em O Don Silencioso,
romance muito apreciado pelo regime soviético, Mikhail Sholokhov escreve com
toques que parecem ser o do jornalismo contemporâneo: “A expedição continuou
por vários dias em direção ao coração do distrito de Donetz”. Os vizinhos
russos caem sobre eles como agora com uma falsa proclamação de libertação e,
antes da fria recepção, o chefe militar dirige-lhes este discurso: “Os
ucranianos eram, três vezes amaldiçoados, e os ucranianos são. Oxalá explodam e
se transformem em pó! Que a cólera os leve, burgueses de barriga lustrosa!
Comedores de merda, é isso que eles são!"
Em A Guarda Branca, Bulgákov
relata outro episódio de desprezo por esses ucranianos. “Quando os alemães
saqueavam os camponeses, castigavam-nos com mão pesada e abriam fogo de
metralhadora contra eles, não só não se ergueu uma voz indignada em defesa
daqueles camponeses ucranianos, mas muitas vezes, junto às telas de seda dos
salões, mostravam os dentes como lobos e se ouvia dizer: — É o que merecem! É
assim que é necessário. Ainda é pouco!”
Stálin não apenas os matou de
fome, como também os deportou em massa. Orlando Figues escreve em Sussurros:
a vida privada na Rússia de Stálin sobre os “longos comboios de deportados que
arrastavam consigo seus últimos pertences, patéticas trouxas de roupa de cama e
vestimentas que carregavam a pé ou empurravam numa carroça”.
Ivan Búnin, indigno ganhador do
Nobel, destila alguns dos sentimentos dos russos em relação aos ucranianos,
quando faz uma de seus personagens dizer: “Eu, amigo, não sou um imbecil
ucraniano”, e fala de “uma distante cabana branca na sombra de um álamo; mas
ensinaram-lhe a desprezar aquela cabana, pois lá viviam ucranianos e sabe-se
que são tão estúpidos…”.
Pelas leituras a que estou
acostumado, a palavra Ucrânia sempre me levou a pensar em alguma tristeza.
Grande cúmplice deste Isaac Bábel, judeu nascido em Odessa. No final de um conto,
ele escreveu: “Na Odessa de outros tempos, a cidade estava ligada ao cemitério
por um caminho de tristeza indescritível.”
Nunca foi fácil ser ucraniano. Os
gregos antigos já disputavam esse território atraídos por sua riqueza de trigo
e outros cereais; ao longo das costas do Mar Negro que os helenos chamavam de
Mar Hospitaleiro. À Ucrânia sempre coube ser “o jardim ao lado” que os vizinhos
tanto invejam e cobiçam.
Agora é Putin.
Czesław Miłosz, em Mente cativa,
escreve que a Rússia é propensa a conquistar outros países apesar de ser “uma
nação que nunca soube governar nem mesmo sua casa, e que nunca conheceu o
sucesso ou a liberdade”. Sobretudo isso: nunca conheceu a liberdade e odeia que
a Ucrânia a conhece.
Mas não devo dizer que “agora é
Putin”. Não é necessário dizer que em outro tempo foi Stálin ou Hitler, nem é
necessário dizer que foram os czaristas ou bolcheviques ou mencheviques ou
nazistas. Devemos falar com justiça: foram os russos, foram os alemães.
Agora são os russos novamente;
mesmo os que querem colocar uma cara de vergonha.
* Este texto é a tradução livre de “Son los rusos”, publicado aqui, em Letras
Libres.
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