A Semana de Arte Moderna de 1922. Revisitações
Por Pedro Fernandes
Anita Malfatti. A ventania, 1915/1917, óleo sobre tela, 51x61cm |
Entre os dias 13 e 17 de fevereiro
de 1922 um grupo de artistas de São Paulo e do Rio de Janeiro protagonizou uma
sessão de festivais interessada em inventariar as possibilidades de uma arte
capaz de fazer frente aos modelos ainda vigentes. A Semana de Arte Moderna,
como ficou registrada, foi pensada e organizada num relâmpago. Um dos primeiros
registros com a notícia sobre o evento aparece na edição do Correio Paulistano
de 29 de janeiro do mesmo ano, destacando que o acontecimento era “iniciativa
do escritor Graça Aranha”. O autor nordestino que havia publicado o que se tornaria
seu principal romance uma década antes, Canaã, aparece como a figura mais
respeitada entre os do seu meio — “Antigo diplomata, cargo em que prestou não
pequena soma de serviços ao nosso país, membro da Academia Brasileira de
Letras, cavalheiro em que se encontram admiravelmente fundidas uma belíssima
inteligência e uma esmeradíssima educação” (A Gazeta, 9 de fev. de 1922).
Ele se encontrava na capital paulista para tratar de diligências
amoroso-econômicas com a família Prado depois do seu retorno definitivo ao
Brasil.
Na mesma ocasião, Graça Aranha se
inteira de Oswald de Andrade, outro recém-chegado da Europa, com quem
compartilha a opinião sobre o atraso na cultura brasileira. Os dois foram
apresentados por Di Cavalcanti numa roda que incluiu Menotti del Picchia,
Guilherme de Almeida, Mário de Andrade e Rubens Borba de Morais. O grupo pensava
realizar no salão da livraria O Livro, de Jacinto Silva, baseado na amostra Fantoches
da meia-noite, de Cavalcanti, uma exposição de quadros de vanguarda. Mais
adiante, essas personagens, agora por intermédio de Aranha, reúnem-se em torno
de Paulo Prado e daqui se organiza um comitê tendo o capitalista à frente para tratar
do levantamento financeiro para a realização do evento. Mas, não na livraria e
sim no imponente Teatro Municipal e não uma amostra mas vários eventos envolvendo todas
as expressões artísticas. Os custos para empreitada, levanta Raul Bopp em
“Pontos de vista sobre a Semana de Arte Moderna”, saiu, apenas o aluguel do espaço,
por 847 mil-réis.
Se este encontro no Teatro
Municipal de São Paulo não teve grande importância na sua época — as polêmicas
mais interessantes se passavam nos jornais desde o ano anterior e agora as
notícias ficaram centradas em maior parte na imprensa da capital, na vista de
recusa que a gente provinciana deitou num primeiro momento para a arte então
exposta ou algumas crônicas dos próprios mentores —, o mesmo não é possível dizer
dos seus desdobramentos que se iniciam ainda no mesmo ano e continuam
repercutir passado o primeiro centenário. A dissidência do grupo é o que logo
ganha melhor contorno e em parte o debate se ateve no trabalho de constituir
alguma linha que norteasse a ideia de uma vanguarda brasileira e não uma réplica
do futurismo, como passam a ser chamados pela imprensa os da Semana — um
qualificativo que cedo adquire um valor pejorativo para designar os praticantes de
qualquer arte degenerada. Não vingaram agremiações, em algum tempo mesmo algumas
panelinhas ficaram apenas com capitão em via de mão contrária, Mário de Andrade
e Oswald de Andrade. Mas, essas múltiplas linhas assinalariam não um mas muitos
modernismos no Brasil; apenas do berço da Semana, sublinhe-se, saíram de
imediato o Movimento Pau-Brasil, o Movimento Verde-Amarelo e o Movimento
Antropofágico que não foram, como querem uns, puramente estridências.
Depois do apoio econômico aventado,
o grupo de 22, conforme se lê nos registros de imprensa como o citado no início
desta matéria, pensam vários festivais entre 11 e 18 de fevereiro e capaz de
demonstrar o que “há em nosso meio em escultura, pintura, arquitetura, música e
literatura sob o ponto de vista rigorosamente atual.” Isto é, na ocasião, o moderno
da semana tem uma valia temporal; seria um demonstrativo sobre a efervescência
criativa em curso, viva, em oposição a certo academicismo ou modelo centrado
num passadismo. De alguma maneira, a iniciativa angaria o interesse de setor
financeiro em torno de Paulo Prado; Il Picolo assinala que, além do
empresário, contribuem com capital Alfredo Pujo, Oscar Rodrigues Alves, Numa de
Oliveira, Alberto Penteado, René Thiollier (então administrador do Teatro
Municipal), Antônio Prado Júnior, José Carlos Macedo Soares, Martinho Prado,
Armando Penteado e Edgard Conceição.
Dos planos para a prática, esse
trânsito é possível ser reconstituído pela imprensa da época que listou com alguma
frequência, motivando uma expectativa no público, os nomes que participariam da
Semana que, devido das circunstâncias, findou sendo três dias com mais
entusiasmo, um número menor de artistas, pouca novidade e pequenas amostras das
artes preteridas, parte delas já alguma vez demonstrada antes. Anita Malfatti, por
exemplo, grande protagonista da ocasião, fizera duas individuais em São Paulo e uma em Santos, incluindo a exposição de 1917 que provocaria Monteiro Lobato ao insulto contra a arte e a pintora;
e Di Cavalcanti, um ano antes, fizera a citada mostra em O Livro. Mas, o que se passou nos
dias de fevereiro?
No saguão do Teatro Municipal
figurava cerca de uma centena de trabalhos em pintura, escultura e arquitetura
de Anita Malfatti, Di Cavalcanti (autor da arte das capas do programa da semana
e da exposição), Yan de Almeida Prado, Ferrignac, Zina Aita, Martins Ribeiro,
John Graz, Vicente do Rêgo Monteiro, (pintura), Victor Brecheret, Haaberg
(escultura), Antônio Garcia Moya e George Przyrembel (arquitetura). Essa
exposição permaneceu aberta mesmo durante o dia enquanto durou as noitadas dos
festivais. Na primeira noite, se ouviu duas conferências: Graça Aranha revisita
as ideias do seu recém-lançado livro A estética da vida em “A emoção
estética da arte moderna”; e Ronald de Carvalho, discorre sobre a “A pintura e
escultura moderna no Brasil”.
Toda a presença carioca no evento
— Martins Ribeiro, Zina Aita, Ronald de Carvalho, Heitor Villa-Lobos e outros
músicos — se desenvolve por intermédio de Aranha. Completa-se, assim, que sua
importância para a consolidação do evento preenche todas as frentes. É não
somente o figurão aceito na opinião pública como, na visão
tradicional predominante, o mais decente entre os franqueadores da
balbúrdia. Mesmo o propósito do que seria a arte e o artista moderno estava
melhor formulado por ele que pelo restante dos jovens; sua conferência aponta
as diretrizes inexistentes entre os demais: o artista moderno, diz, deve estar “em
íntima correlação com a vida moderna na sua expressão mais real e desabusada”. Mais
adiante é dele também as formulações de uma nacionalidade para a integração da
cultura brasileira ao universal, um núcleo que os modernistas ora se
aproximarão, interessados que estavam em formular uma arte desapegada
dos modelos europeizantes, ora buscarão se distanciar devido ao curso negativo
que os nacionalismos começam a assumir, mas isso numa ocasião muito tardia da
década em que agora estamos situados.
Na segunda noite, realizada dia 15
de fevereiro, os ânimos estiveram mais animados. Tudo porque espera-se Oswald
de Andrade repetir algo da sua iconoclastia aparecida nos jornais; ele sempre
foi peça-chave dos acontecimentos por certa postura escrachada que se expande
cada vez mais que flerta com uma postura anárquica. Ainda no primeiro dia da
Semana, A Gazeta reproduz os impropérios do escritor contra a música de
Carlos Gomes, descrita como “horrível”; “A cantarolice do Guarani e do Schiavo
é inexpressiva, postiça, nefanda.” A noite seguiu-se com conferência de Menotti
del Picchia analisando trabalhos de poetas do grupo, apresentação que foi
intercalada com leituras de poesia dele próprio, de Guilherme de Almeida,
Álvaro Moreyra, Oswald, Mário de Andrade, Luís Aranha, Agenor Barbosa,
Rodrigues de Almeida, Afonso Schmidt, Sérgio Milliet e Ronald de Carvalho que
lê o poema “Os sapos”, enviado por Manuel Bandeira, um da caravana carioca que
não pode comparecer ao evento. Essa noite foi a do festival de vaias, “silvos,
gritarias e apupos”, como registra Anita Malfatti em “A chegada da arte moderna
no Brasil”.
Os ânimos que se manterão agitados
no resto da noite só encontram alguma calmaria com a “dança da senhorinha
Yvonne Daumerie”, a palestra surpresa oferecida por Mário de Andrade no
intervalo, nas escadarias do saguão do teatro, a conferência de Renato Almeida
sobre o tema “Perennis Poesia” e a apresentação de peças de Heitor Villa-Lobos,
personagem perene desde a primeira noite da Semana.
É dele, no último dia, 17, o
concerto que encerra o evento, mas Villa-Lobos participa dirigindo trechos de
recitais interpolados às apresentações orais, apresentando passagens de sua
própria obra e mostrando-se ao público mesmo nas tardes de ensaios abertos no Municipal.
Se nos dias anteriores, a Semana foi tomada pela grita do auditório, na última
ocasião, com teatro quase esvaziado, tudo correu sem grandes surpresas. Apenas
nota-se a ignorância do público para as peças do descrito “jovem e talentoso
musicista”; O Estado de São Paulo, que assim se refere a Villa-Lobos, diz
no dia seguinte: “As peças executadas impressionaram bastante o auditório, embora
seja difícil, numa primeira audição, apreciar todas as qualidades do
compositor.”
Quer dizer, os grandes protagonistas da Semana foram as artes plásticas e das
três noites a música. Fique à parte os desenvolvimentos em torno dessas artes e
observemos a literatura — o que perdurou na atenção dos jornais por ocasião da
Semana. O que de moderno aparecia nos versos do então Guilherme de Almeida,
Ronald de Carvalho e mesmo na prosa de Oswald de Andrade — na ocasião ele leu
passagens do livro que sairia em outubro daquele ano, Os condenados —,
em grande parte, se gestou para a ocasião. Curiosamente, Mário de Andrade, que
só publicara Há uma gota de sangue em cada poema, um livro feito com “os
restos do fin-de-siècle”, para nos valer dos termos utilizados por Di Cavalcanti
sobre o período atravessado pela cultura brasileira de então, é o mais avant-garde,
ainda que só entre em contato com as vanguardas europeias indiretamente, pelo
convívio com os demais viajados do grupo. E é dele o visionário “As
infibraturas do Ipiranga”, composto um ano antes da Semana e reunido naquele
ano em Pauliceia desvairada, o primeiro fruto do que mais adiante se tornaria
o movimento agora reconhecido.
O anseio de modernismo muito se
devia ora a um descompasso entre a arte praticada e o bulício da cidade ora ao
papel das vanguardas europeias que deu sua mesma natureza aos modernistas. Mas,
na prática — exceto por Mário de Andrade, quem, repetimos, logo melhor captou
dos ensejos da época, fosse porque os pressentisse, fosse porque se informava das
modificações culturais na Europa —, as obras que se encaixariam nesse coletivo ainda
estavam por nascer e é mesmo possível reparar, a cem anos de distância, que
muito dos seus interesses e formas são produtos das suas próprias negações, sobretudo
as dos modelos europeizantes aos quais foram imediatamente associados. Claro,
não são todos futuristas, mas suas criações estão na espuma das vagas do
vanguardismo. Quanto aos traços de brasilidade, esses formam algumas das preocupações
entre os nossos literatos desde antes do evento e sobretudo entre os que foram
reduzidos pelo ufanismo dos modernistas ao limbo da historiografia da Semana.
Ou seja, o interessante nesse evento não está no que aconteceu nessas três
noites, está na sua transformação em acontecimento; é isso que permite a
formação de um campo discursivo inesgotável, ou para melhor dizer, o que nos interessa
na Semana é o seu processo de mistificação.
Mas tudo isso só é possível,
passando em revista ora a extensa bibliografia sobre a Semana de Arte Moderna, ora
lendo os modernistas em relação com seus antecedentes e com as influências que
negaram ou buscaram se desviar — incluindo-se a matriz da antropofagia — e que
resultam claras nas obras produzidas. Todo o tratamento criativo de um Oswald
de Andrade, por exemplo, é fácil de se detectar nas expressões das vanguardas
europeias: a urbanidade, a flânerie, a efemeridade, a fragmentação do
tecido textual e outras inventividades.
Depois desse trabalho, de
preferência sem a viseira dos partidários ou revisionistas do evento, a custosa
aprendizagem que conseguiremos é descobrir que as diretrizes anunciadas no
correr de toda década posterior ao ano que foi transformado em divisor de águas
da nossa cultura — o que é também questionável depois do progresso nas
pesquisas desenvolvidas em cada estado brasileiro nos últimos anos graças ao
descentramento e interiorização das atividades acadêmicas no país — se
consolidam com a devida e assentada expressividade que nos coloca entre as
principais literaturas no mundo apenas nas obras que começam a aparecer a
partir dos anos 1930. Mas, não foi, como julgam uns, a década anterior, uma
década perdida. É simplista demais chamarmos assim qualquer tempo de ebulição
criativa.
Enquanto Oswald de Andrade
permaneceu obcecado com o culto da sua iconoclastia, depois da serena e
progressiva fase do grupo dos cinco que só durou meio ano (ele, Anita, Mário, Menotti
e Tarsila, recém-chegada da Europa), algo que se confunde com uma revolta pelo declínio
de seu aparato burguês e o isolamento de trincheira em parte autoimposto, Mário
de Andrade se dedicou a estabelecer simultaneamente uma compreensão sobre os
limites da nossa inapreensível cultura e em se fazer a figura nuclear do mais
tarde mal-ajambrado frankenstein do modernismo.
De todos os participantes, Mário
foi um agregador cioso do seu ofício; toda sua produção ensaística, aliás, talvez seja a primeira porta que o leitor deva abrir para esse mundo. Poderá parecer contraditório, mas sua
posição — não atestada na sua obra, é claro — é apolínea. Todos buscam se confessar
ou se consultar com ele, quem assume certa função de memória crítico-teórica e mesmo
de oráculo. E seu interesse em atender a todos é uma humildade rara; faz-se
homem-polvo para responder rios de cartas com missivistas das várias estirpes e
recantos do Brasil, ora querendo entender dos ecos dos seus interesses ora reduzindo
os interesses alheios aos de própria ordem com o complexo, incipiente e singelo
conceito de regionalismo para descrever as tentativas fora do seu bairro. O infinito
baú de correspondências do autor de Pauliceia desvairada cuidadosamente
preservado concentra além dos frutíferos diálogos, os caminhos de irrigação das
ideias modernistas e testemunham a gênese de uma teorética dos seus impasses.
Embora sempre aconteça o
contrário, nunca devemos temer os que alardeiam mas desconfiar sempre dos que
labutam parcimoniosa e silenciosamente. É possível se rir e mesmo ignorar os
fogos de festim do complexo Oswald; desfazer o tecido das tramas de Mário de
Andrade, nem tanto. Uma prova disso pode ser dada a partir da sua recepção via
Câmara Cascudo da obra de Jorge Fernandes. O poeta potiguar que aparece nas
revistas Klaxon e Antropofagia é autor de uma única obra, o Livro
de poemas de Jorge Fernandes, cuja primeira edição saída em 1927 emula os
caracteres do Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, do
mesmo ano. Aqui já estamos perto do fim da década da Semana e numa época quando
Mário descobre a complexidade das irrupções modernistas manifestadas em lugares
diversos do Brasil ainda alheios ao que se passara em São Paulo. O Futurismo que
se espraia ao redor do mundo desde a publicação da primeira versão do seu
manifesto na Gazzetta dell’Emilia, entrou em nossas terras primeiro pelo
Nordeste ainda no mesmo ano de 1909.
A posição centralizadora assumida
por Mário de Andrade pode ser lida como uma alternativa de protetor do ovo de
colombo. É dele, inclusive, o debate por defenestrar o termo futurista como designativo para arte em curso no Brasil e é da sua consciência visionária a formação de uma compreensão acerca
do valor da Semana para o papel da centralidade de uma vanguarda brasileiríssima,
uma percepção que apenas soará como tal também para outra figura, essa do modernismo
tardio, Pagu. É dele o esforço de enraizar o movimento no tecido da nossa
cultura. O restante dos companheiros de 1922, se ainda permaneciam interessados
na autenticidade de suas obras, tinham o legado do que se passara naqueles dias
de fevereiro como uma nebulosa. Mário não. A construção de uma memória e das múltiplas
diretrizes desse episódio são tomados como missão em que ele próprio — e nem
tanto São Paulo — é o núcleo emancipador e irradiador do modernismo no
país.
Na coluna que mantém no Diário
Nacional, Mário de Andrade escreve uma resenha sobre o livro de Jorge
Fernandes, objeto que acompanhou boa parte desde a feitura dos primeiros poemas
e sua opinião em nada é das melhores; descreve-o “muito irregular” apesar de
“absolutamente notável”, que o melhor do poeta “é feito assim só de
cintilações” e sobre o traço linguístico afirma que Jorge “prefere registrar
diretamente a dicção nordestina em vez de procurar pra ela uma universalização
possível de se normalizar”, o que, para ele “é regional demais”.
É muito verdade o que diz, incluindo
a “irregularidade audaciosa” para repetir seus termos e é possível que tudo se
deva mais às limitações intelectuais que propriamente a um provincianismo regional.
Jorge Fernandes se viu, aconselhado por Cascudo e pelo próprio Mário, encantado
com o toque de Midas do poeta modernista, capaz de assimilar todo o bulício da
novidade e dispor em poesia sem a artesania aristocrática do eruditismo da feitura
formal e estrutural. Isto é, tomado do mesmo encanto que motivara Oswald no encontro com o verso livre na Europa ou com Mário entregue ao desvario da Pauliceia. Mas a obra do poeta potiguar não começa com Mário, tampouco com a Semana
de 22. Esses dois elementos funcionam como ponte de acesso a quem se fazia
mecenas intelectual do modernismo. De toda maneira, a qualificação do uso
vocabular como resultada de uma dicção “regional demais” é facilmente questionável
quando colocamos este Livro de poemas ao lado de Macunaíma ou
mesmo de Pauliceia desvairada.
Ora, esses dois trabalhos, sempre
lidos como o retorno mais positivo das estridências da Semana, não foram tratados
como regional, nem urbanista seu desvario. E logo poderíamos mesmo
qualificar de apropriação regionalista um romance que refigura em tom
alucinatório uma narrativa da tradição oral dos povos originários, remodelando por dentro a
qualidade impraticável no romantismo de um José Alencar, o cearense que vestiu
até a alma dos seus indígenas das tintas de aristocracia europeia praticando uma terrível desfiguração num claro recurso de sobreposição da cultura do colonizador. Ao acentuar negativamente
o trabalho de Jorge Fernandes pelas mesmas qualidades que podem ser tomadas
como suas, a prática de Mário veste-se de um marcante narcisismo e contradiz, portanto, as
diretrizes com as quais busca cerzir como marcas indeléveis do modernismo, sua
dialética com a tradição, por exemplo. Esse tratamento é apenas uma pequena amostra
de como é possível se fazer relevante reconhecendo o alheio mas nele incutindo
o mel que lhe é próprio como aspecto de rebaixamento do outro.
Agora, não é possível cobrar tudo a
Mário de Andrade, mesmo que ele tenha buscado se fazer como quem primeiro respingaria todas as cobranças. Mas nem ele e nem os demais
participantes da Semana de 1922 devem ser tomados dessa maneira. Nunca esqueçamos
que somos limitados pelas condicionantes do contexto em vigor, além, é claro,
de incapazes de exercer a onipresença. Distanciados cem anos de uma época e de
um acontecimento é sempre possível estabelecer os julgamentos e as cobranças que quisermos, ainda
que inválidos porque muitas sempre são descabidas. Tampouco o exemplo de umbiguismo do principal
modernista é levantado aqui como coisa negativa, redução da sua figura e do seu
papel para o rumo de uma pequena parte da nossa literatura. Fazemos numa
tentativa de demonstrar como nossos próprios vícios — no anseio de eternidade,
para redizer o verso de Carlos Drummond de Andrade — contaminam nosso olho e deixamos
de ver o alheio como partícipe para distorcê-lo como o estranho num universo engendrado
pelo nosso ponto de vista.
Esse talvez seja o principal nó górdio
não da Semana mas nascido com ela que precisará de outros cem anos para se
desfazer. Neste primeiro centenário, ao menos conseguimos colocar em evidência
os impasses do seu protagonismo sobre a cultura no Brasil. Sabemos que não é
verdadeira a ideia segundo a qual o que se seguiu a partir de então dependeu
exclusivamente da reunião dos jovens intelectuais financiados pelo baronato do
café, assim como sabemos que esse encontro não foi um evento elitista apenas
porque nele estava um herdeiro da elite econômica paulista. Agora, começamos a
saber ainda que o vento das vanguardas europeias — sim, voltamos a elas — se fazia
soprar em parte diversa do país e acabaria por limpar a penumbra das nossas
letras como começava a demonstrar muito antes as artes plásticas e mesmo as inquietações
literárias. A Semana, obviamente, agitou essa correnteza e aqui está toda sua
importância. Mas, repetimos, o vento desviado para o curso do modernismo naturalmente
produzia suas influências antes ou concomitante a São Paulo e teria produzido o
novo curso das nossas artes mesmo que não tivesse existido uma Semana de Arte
Moderna. Foi assim antes, é assim até hoje. É sabendo disso que ressaltamos a necessidade de discutir sua mistificação e não, como se quer, é a sua desmistificação. É isso
que deu a forma ao acontecimento como agora o conhecemos; é isso que nos
possibilita perceber que estamos muitíssimos distantes de esgotar suas irradiações.
Nota
Este texto é parte de um conjunto de inquietações em contínuo desenvolvimento e
começado num curso realizado na Universidade Federal de Ouro Preto no segundo
semestre de 2021; outra parte é a leitura sobre Macunaíma também mostrada
aqui. Mas este rascunho dedico ao Victor da Rosa, como o trabalho por fazer no
referido curso.
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