O duplo, Fiódor Dostoiévski
Por Marcelo Jungle
Dostoiévski, 1876. Foto: N. Doss. |
O duplo sempre enfrentou dificuldades em ser aceito na obra dostoiévskiana.
Desde o seu lançamento (1846) sofreu a inevitável comparação com Gente pobre,
o primeiro e aclamado romance de Fiódor Dostoiévski, lançado em janeiro do
mesmo ano.
Coincidentemente, o livro trata exatamente disso, a
necessidade e a impossibilidade de ser aceito do protagonista Yákov Pietróvitch
Golyádkin, o que acaba por levá-lo à loucura. Interessante é que a narrativa
não trata desse movimento em direção à insanidade, mas tem início quando esta
já se revela definitivamente instalada. Desde o começo temos a nítida impressão
de que o sujeito não bate bem da cabeça e isso vai se confirmando sem muita
dificuldade já na primeira parte da novela. E talvez por isso a renitência em
ser compreendida, ou talvez, aceita, pois a loucura vista por dentro não revela
o ser humano em sua melhor versão. Normalmente os leitores se aborrecem com as
repetições vocabulares de Golyádkin e suas irritantes hesitações e movimentos
tolos em busca de afeição. Não encontraremos aqui grandes questões do homem e
do espírito, mas simplesmente a desintegração de um homem desinteressante, o
que realmente pode deixar de conquistar a muitos leitores que, ao abrir um
clássico da literatura, estão em busca de algo a acrescentar ou que interfira
em suas vidas. Aqui a interferência visível será o mal-estar e, em alguns casos
mais graves, mal-estar acompanhado de náuseas.
Explicitamente, o personagem é apresentado como uma figura “morrinhenta,
acanhada e bastante calva”, um “tipo insignificante que à primeira vista não
chamaria a atenção exclusiva de ninguém”¹. Todavia, num primeiro momento, ao
olhar-se no espelho, não é nada disso que Golyádkin vê, mas sim um outro, com o
qual goza de “plena satisfação”, demonstrando grande contentamento, pois aquele
seria um dia especial, no qual teria um cocheiro de libré numa carruagem, com
botas novas e uma roupa apropriada para o grandioso evento, um jantar de gala
na casa do conselheiro de Estado Beriendêiev (“outrora benfeitor do senhor
Golyádkin”), onde será comemorado o aniversário de sua filha única, Clara
Olsúfievna. A alusão ao espelho aí não é gratuita, pois se trata de objeto
dotado de intenso significado simbólico não só para a literatura, como ao
conhecimento em geral, inclusive em diversas religiões e mitologias. O espelho
(ou speculum, de onde vem especular) deve refletir a verdade e enxergar
algo diferente disso nos revela já uma distorção do existente e da falta de
sinceridade do personagem ou desconexão da realidade. “O rosto é o espelho da
alma”, diz a frase em português assim atribuída a Cícero. Dostoiévski parece
ter exatamente esta ideia em mente ao descrever esta cena inicial, onde o
senhor Golyádkin tem uma visão invertida de sua imagem, o que, aliás, é um
atributo físico relacionado aos espelhos.
Saindo neste estado logo cedo de casa, Golyadkin começa uma
epopeia até a hora do grande compromisso. Comporta-se como gente rica. Vai a
lojas chiques, vê o chefe passar a seu lado e fica desconcertado, encontra
conhecidos, desperta perplexidades e, mais do que estranho, faz uma visita
inesperada ao consultório de seu médico, o qual, tenta de todas as formas se
livrar do acidental paciente, inclusive lhe recomenda sair mais de casa e “não
ser inimigo da garrafa”. O que se segue nesse diálogo é uma verdadeira conversa
de doido, no melhor estilo gogoliano.
No jantar, Golyádkin é impedido de entrar, pelo simples fato
de não ter sido convidado. Acaba por entrar como penetra e comete várias
inconveniências, acabando por ser expulso. Terrivelmente humilhado passa a
perambular pelas ruas, desferindo violentos ataques contra si mesmo,
demonstrando um estado de espírito totalmente contrário ao da manhã daquele
mesmo dia. Queria agora “esconder-se de si mesmo”, “fugir de si mesmo” e “deixar-se
destruir completamente, não ser, virar pó”. É quando então se dá um encontro
com um estranho, o qual acaba por se revelar como o duplo, dando início à
segunda parte da novela. Mas mais do que isso, é o exato termo inicial da
autoexecução há pouco anunciada.
Tudo que vem depois é a repetição do mesmo enredo malogrado
da primeira parte, uma característica da duplicação literária. E a narração dá
uma pista para o enigma, ao descrever o encontro como uma nova imagem do
espelho: “O senhor Golyádkin reconhecera por completo seu amigo noturno. O
amigo noturno não era senão ele mesmo — o próprio senhor Golyádkin, outro
senhor Golyádkin, mas absolutamente igual a ele —, era, em suma, aquilo que se
chama o seu duplo, em todos os sentidos…”. No entanto, deliberadamente confunde
ao se referir como “outro” ao duplo. Trata-se, na verdade, do doloroso encontro
consigo mesmo, desenvolvido posteriormente pela psicanálise e que o gênio de
Dostoiévski antecipa.
Para Golyadkin, no entanto, o que exsurge é a oportunidade
de experimentar os prazeres de uma verdadeira amizade. Convida o duplo a sua
casa e com ele conversa animadamente. E chega a propor: “Sabes, Yacha?! —
continuou o senhor Golyádkin, com voz trêmula, debilitada —, instala-te em
minha casa por uns tempos ou para sempre. Seremos amigos íntimos. O que achas,
meu caro, hein? Não fiques perturbado nem te queixes dessa circunstância tão
estranha que há entre nós: queixa é pecado, meu caro; é a natureza! A mãe
natureza é generosa, eis a questão, mano Yacha! E eu digo: amar-te, amar-te
fraternalmente. Mas nós dois vamos usar de artimanhas, Yacha, e de nossa parte
fazer um trabalho de sapa e passar a perna neles”. O insucesso desta proposta é
imediato e o que se verá é o duplo se desdobrando no objetivo de anular
Golyádkin, tal qual o desejo por ele expressado antes do encontro e mais,
Golyádkin vai inserir o duplo no rol de seus inimigos, aqueles que o perseguem
e contra ele tramam o tempo todo. Tudo o mais irá convergir para este rumo e o
leitor será torturado pelas descrições de situações e circunstâncias muito
difíceis, sendo o próprio Golyádkin seu maior difamador, um acusador impiedoso
de si mesmo, ao ponto de criar um duplo que acione esse mecanismo sem direito a
divergências.
Chega a permitir ser destratado por seu insolente criado
Pietruchka, o qual comunica-o que irá embora para “procurar pessoas de bem…”,
pois as “pessoas de bem vivem honestamente… as pessoas de bem vivem sem farsa e
nunca aparecem duplicadas…”. É uma verdadeira condenação firmada por alguém
abaixo de sua classe social, que tem por base o pecado da duplicação. Cometendo
este pecado, comprovado está que Golyádkin não era uma boa pessoa ou uma pessoa
de bem, pois estas “nunca aparecem duplicadas, não ofendem a Deus nem pessoas
honestas…”, pois a duplicidade sempre teve má fama. Na consciência popular é
sinônimo de ter duas caras, pessoa falsa, mentirosa. Ao se submeter aos
insultos do criado, nosso herói dá continuidade ao seu plano autodestrutivo e
termina esta cena em mais reflexões solitárias destituídas de sentido.
Tudo indica que O duplo é um ensaio sobre a
irracionalidade, no qual o personagem mergulha cada vez mais como último
refúgio num mar de insanidade, o que virá a ser aprofundado e aprimorado na
obra futura de Dostoiévski. Como é corrente, a inquietude que a duplicidade
causa no ser humano e suas relações e destinos, permeia boa parte de seus
personagens atormentados. Embora pareça mal estruturado, não se pode dizer que este
é um livro inacabado ou mal-acabado. Pelo contrário, trata-se de uma obra
inúmeras vezes revisada pelo autor, que chegou a alterar boa parte da trama a
cada versão, pelo que se conclui que não pode a rigor ser tratada como uma obra
da fase prematura de Dostoiévski, anterior aos acontecimentos dramáticos que
marcariam sua vida logo em seguida.
Por outro lado, talvez essa seja a razão pela qual o romance
parece um tanto despersonalizado e sem sentido, uma vez que incorpora
singularidades temporais inatas à perpetração da linguagem expositiva de um estado
antinatural. Como já referido, a estranheza e mal-estar do leitor parecem
combinar bem com o estado de surto em que o personagem vive. E essa é
justamente a característica que deve ser ressaltada em defesa desta novela. O
gênio aqui é exteriorizado por essa capacidade de causar repulsa em lugar de
admiração, antipatia em lugar de afeição, pela demonstração de forma concreta
do que seja um estado de loucura em plena atividade na Rússia do século XIX.
Ao terminar este livro, tudo que não se quer é qualquer
espécie de cumplicidade com esse personagem. Ou personagens, se tomarmos o
senhor Golyádkin segundo como a duplicata em pleno desenvolvimento e alcançando
um espaço para além do seu criador. É justamente essa sensação de ojeriza mal
explicada, que confirma a eficiência e qualidade da obra, pois duplicado e
duplicata se revelam igualmente despidos de encantos. Nada é mais desolador do
que a cena em que Golyádkin, após enfrentar sob a neve e em pé, “molhado,
lamacento, úmido e abafado” duas horas de espera, encontra refúgio atrás de uma
pilha de lenha, a aguardar pelo aviso (que nunca virá) de Clara Olsúfievna,
para com ela fugir e se casarem. Nessa situação ele se conforta no anonimato: “Não,
agora não é o caso de escadas forradas de seda — pensou nosso herói —, e o
melhor é eu ficar por aqui, isolado e às escondidas... por exemplo, vou ficar
neste canto” — e escolheu um lugarzinho no pátio, bem diante das janelas, atrás
de uma pilha de lenha. É claro, pelo pátio passava muita gente estranha,
boleeiros, cocheiros; além disso estrondeavam rodas de carroças, bufavam
cavalos etc.; mas ainda assim o lugar era confortável. Não se sabe se iriam
notá-lo, se não iriam, o fato é que agora pelo menos havia a vantagem de que,
de certa forma, a coisa transcorria às escondidas e ninguém via o senhor
Golyádkin, enquanto ele podia ver todo mundo”.
De outra parte, uma das formas que o narrador lança mão para
apresentar a imagem de asco pelo duplo é quando o descreve como um ser
saltitante e sorridente em volta dos superiores, o que espontaneamente é uma
imagem muito irritante, de gente desprezível. Outra não menos desprezível é a
imagem de cabotino, um impostor degenerado disposto a qualquer artimanha para
obter prestígio e a atenção dos que rodeiam o senhor Golyádkin primeiro.
Seria de se esperar que uma reprodução viesse acompanhada de
alguma evolução, de algo a mais, como a consciência moral que se vê, por
exemplo, no duplo de William Wilson, de Edgar Allan Poe ou a prosperidade da
sombra de Hans Christian Andersen no conto “A sombra”, e ainda a liberdade sem
limites em O médico e o monstro e também em O retrato de Dorian Gray.
Aqui não há qualquer dessas insinuações, mas simplesmente um retrato fiel que o
outro mostra, a quase insuportável realidade de si mesmo. Através do espelho e
do confronto entre o ser e seu reflexo, o que emerge da mente de Dostoiévski é
apenas que a única possibilidade de o ser humano se despir completamente das
máscaras transcorre num cenário de loucura.
Notas
1 Todas as citações da obra são retiradas da tradução de
Paulo Bezerra, O duplo: poema petersburguense (São Paulo, Editora 34,
2013, 2ª edição). Você pode adquirir o livro aqui.
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