Em torno da “poesia do pensamento”, de George Steiner

Por Maria Vaz
 
“O uníssono da poesia, da música e da metafísica continua a assombrar a filosofia como um espectro fraterno. Quando o fim se aproxima, Sócrates vira-se para Esopo e o canto. Hobbes traduz Homero em verso. O severo Hegel escreve um poema profundamente sentido a Hölderlin.”
 
George Steiner, A poesia do pensamento¹.

George Steiner. Foto: Greg Funnell.


 
Vivemos em sociedades complexas pertencentes a um macro espaço que é o mundo globalizado. Podemos dizer que apesar de o pensamento possuir uma história milenar, essas sociedades complexas ainda se deixam seduzir pela aparência além do conteúdo e pelos juízos formulados em menos de vinte segundos.
 
Na vida quotidiana deste tempo de velocidade e movimento que pede praticidade para o verdadeiro multitasking que é exigido aos millenials, eventualmente ficará mais fácil arrumar os conceitos em caixinhas.
 
Hoje escrevo-vos sobre uma dessas caixinhas para a desconstruir de modo construtivo. Falo mais propriamente sobre uma concreticidade abstrata — a poesia.
 
Simplificando estas afirmações, a clareza surge quando vos questiono: em que caixa colocariam a poesia? E os seus amantes? Ficará essa pequena caixa irreconciliavelmente longe do hemisfério cerebral esquerdo, o tal responsável pelo raciocínio lógico?
 
Sem a formalidade da análise quantitativa e o peso de eventuais inquéritos tratados em SPSS verificamos reiteradamente a ideia de que a maioria da população (de uma ou outra das tais sociedades complexas) acha que a poesia é algo não real, subjetivo, nefelibata ou com falta de sentido prático.
 
Andei uns anos a questionar-me sobre como poderia mostrar o outro lado da questão, bem como qual seria a demonstração possível de que o desenvolvimento de qualidades do hemisfério cerebral direito não exclui, só de per si, a possibilidade de alguém ter o hemisfério esquerdo igualmente desenvolvido, de modo a ter discernimento, clareza e raciocínio lógico. Essa questão amortizou-se num belo dia nublado em que resolvi adquirir A poesia do pensamento, de George Steiner². Pensarão: porquê?
 
Muito longe do mundo das falácias ad hominem, a resposta equilibrada encontra-se na filosofia — esse pequeno bichinho que nos torna eternos aprendizes em torno da ideia de buscar conhecimento.
 
Steiner admite, de facto, que temos uma tendência para dar um sentido irrefletidamente amplo e difuso à ideia de pensamento, enquanto nos adverte da sua multiplicidade capaz de gerar raciocínios lógicos em matemáticos, sonetos em Shakespeare ou fugas em Bach. E diz-nos isso aludindo a Espinosa e à defensabilidade de que as coisas excelentes são “difíceis e raras”, enquanto transcorre na defesa da metáfora — essa ligação entre dois mundos —, entre a fenomenologia do espírito de Hegel e a construção poética da música de Edith Piaf.
 
Parece evidente que o pensamento se materializa na criatividade que lhes dá forma e que, desse modo, se torna uma forma de partilha do nosso mundo interior com os outros e isso pressupõe os conhecimentos de uma estrutura, linguística ou não, capaz de passar uma mensagem.
 
Talvez por esse motivo, Steiner comece esta obra de que vos falo a exaltar a universalidade da música e a sua capacidade de fazer surgir a dança ou, até, de inspirar movimentos, ideologias e indivíduos na sua singularidade. Na minha opinião, uma das frases com mais sentido de Nietzsche encontra-se na afirmação de que viver sem música seria um erro.
 
Steiner demonstra-nos, de forma clara, que existem estreitas ligações entre a matemática e a música — um conhecimento que se tornou notório desde a obra de Pitágoras.
 
Depois aborda a própria matemática como uma forma de linguagem universal, que se pode subdividir em muitas outras linguagens verificáveis ou falsificáveis, mas em que, curiosamente, podem existir pequenas notas do estilo pessoal de quem as desenvolve, ainda que os seus feitos perdurem além da lembrança de quem o gerou.
Mas aprender ou expandir uma língua é como “abrir uma janela rasgada sobre a existência”. E o conhecimento disso, inevitavelmente, faz com que se não o fizermos nos limitemos.
 
Até a poesia se limita numa linguagem ou pelo conhecimento linguístico do auditório a que chega. Temos esta particularidade que a dificulta, o que não acontece com a matemática nem com a música, que é universal na tal estrutura que vai além do idioma da melodia da letra. Assim, do mesmo modo que a poesia é limitada pela linguagem, também o é a filosofia que, de modo geral (e excluindo a lógica formal) é muito mais literária do que técnica.
 
Da cultura helénica do ócio nasceram belas filosofias e Steiner brinca com a realidade: nem Parménides nem Platão tinham necessidade de ganhar a vida, o que lhes dava liberdade para pensar além do estabelecido e comunicar o seu pensamento. Diria eu: seriam Parménides e Platão reconhecidos por nós se jamais tivessem saído das suas cavernas cheias de sombras que os amedrontassem de comunicar os seus pensamentos?
 
A grande maioria dos filósofos procurou a sua verdade além da sobrevivência pessoal e isso, só de per si, removeu grande parte do medo dos seus caminhos. Talvez isso, às vezes, necessite de uma certa dose de introspeção ou como outrora atribuíram a Newton um impulso ou uma espécie de “viagem através dos estranhos mares do pensamento solitário”. Não obstante, e apenas por aparente paradoxo, a filosofia também é íntima do diálogo, como constatamos em Platão, Aristóteles, Galileu, Hume ou Valéry.
 
Acredita-se que as filosofias pré-socráticas circulavam de forma oral, talvez até cantada, numa bela ponte que podemos estabelecer entre aquelas e o fomento da sabedoria e culturas populares. E Steiner mostra como a poesia pode ter sido uma das formas originárias de debate sobre a natureza humana, o mundo natural, a moral ou até da política no seu sentido mais amplo.
 
Como vimos, a poesia vai muito além das loucuras de amor de Shakespeare, dos heterónimos de Pessoa ou da rebeldia da Geração Beat.
 
Elogia Lucrécio, mas exalta Dante — essa voz subtil e concisa “de uma potência poética superior”, que junta o herdado da história na heterogeneidade das suas origens onde os conhecimentos se juntam. Passa por Vítor Hugo, Kafka, Homero, Flaubert, Goethe e Cervantes mas reitera que nenhuma das suas personagens é tão real como Sócrates.
 
Curiosamente, nos seus recuos à cultura helénica encontra a política como uma forma de arte e vai a Freud buscar o critério que aqui aplica para afirmar que a política se traduz na sensibilidade refletida nas condições práticas da ordem social, “de uma maturidade institucional mais rica e mais adulta”.
 
Poucas pessoas além de Steiner diriam isto e passariam a falar sobre o banquete de Platão e das suas personagens, numa criatividade em que o ensaio permite cruzar com o neoplatonismo de Hölderlin enquanto decora a cena com uma tela de Caravaggio.
 
Quando damos conta estamos na República de Platão, já passámos por Heidegger e voltamos aos diálogos do banquete. Toca nas questões metafísicas levantadas por Leibniz e Voltaire e pouco depois cai nos diálogos empíricos de Hume e das influências de Zenão, Descartes e Nietzsche em Valéry. Exalta o senhor Teste de Valéry como uma “parábola da ontologia” e um ente capaz de “pensar o pensamento”.
 
Demora-se em Valéry pela sua riqueza filosófica e reforça a ideia de que, ao longo do século XX, a filosofia — pelas suas características anti-autoritárias — se tenha voltado de novo, na sua maioria, para a oralidade.
 
Depois mergulha em Hegel e Derrida, passa por Kojève e toca em Lukács (ainda com tempo para fazer uma pequena alusão à economia política, com Adam Smith e os fisiocratas), enquanto continua a narrativa com Gadamer, Adorno, Kierkegaard, Husserl ou Walter Benjamin.
 
Em Rilke não elabora “cartas a um jovem poeta”, mas ao longo da obra, pela questão linguística, vai muitas vezes parar a Wittgenstein.
 
Já nos alongámos demasiado, porque chegaríamos a Celan. Mas voltemos ao que nos propusemos — tirar a poesia da caixinha.
Como podemos observar, a poesia teve sempre a filosofia como companheira de viagem, quer fosse a dos livros ou parte da que caminhou no tempo através da oralidade e que chega até nós com frases simples repetidas com o eco simples da sabedoria popular sem que isso seja sinónimo de populismo.
 
Como refere Steiner, depois de Bergson “o filósofo é simultaneamente escritor” e a simbiose da poesia é do pensamento, numa fusão do “ser” em que toda a indagação epistemológica se dá “a caminho da linguagem”. Então paramos nesta questão da linguagem, mais uma vez, como o que nos limita ou expande.
 
Existiriam os pensamentos de Sartre, Marleu-Ponty, Gadamer, Levinas, Derrida, Lacan ou Deleuze sem a obra de Heidegger?
 
Steiner afirma que em Heidegger ler é reescrever e “traduzir é recriar”, porque consegue desenterrar a “potencial emergência do sentido no interior da própria linguagem”. É por este motivo que Steiner também afirma que o poder da linguagem excede sempre o uso humano e que o leitor tenta compreender o interior da palavra para a tornar inteligível.
 
Como podemos constatar, nada disto é possível sem a subjetividade do filosofo que interpreta a estrutura objetiva, v.g., a própria linguagem. E o que é a poesia senão um voo da subjetividade pensada além da própria estrutura?
 
Talvez não concordemos com Heidegger quando defende que para atingir o “solilóquio da alma” de Platão teríamos de perceber de grego antigo ou de alemão, porque nos parece demasiado elitista e para poucos. Todavia, isto faz-nos pensar precisamente no ponto a queria chegar: a poesia pressupõe conhecimentos e estruturas e esse conteúdo muitas vezes é invisível à primeira vista ou conversa. Ao contrário dos tais vinte segundos da aparência política. E talvez pudéssemos encontrar o respaldo disto tudo no empirismo a partir de Hume.

Notas
 
1 Steiner, George. A poesia do pensamento. Lisboa: Relógio D’água, 2012, p. 33.
 
2 Steiner nasceu em Paris em 1929. Licenciou-se em Chicago e tirou o mestrado em Harvard. Doutorou-se em Oxford. Escreveu para The Economist. Deu aulas em Genebra e foi membro do Churchill College, em Cambridge. Foi professor de literatura em Oxford e de poesia em Harvard. Escreveu para o New Yorker e para o The Guardian. Recebeu vários prémios.
 

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