Diomedes, de Lourenço Mutarelli
Por Joaquim Serra
“Sabe por que as pessoas riem de
mim?”, diz um dos personagens de Diomedes, o palhaço Chupetin, enquanto o
detetive ri descontroladamente. Riem porque “por trás destas vestes existe um
miserável que precisa humilhar-se a tal grau para poder ganhar a vida”. O riso
trágico é o traço fundamental de Diomedes, quadrinho de 1999, de
Lourenço Mutarelli. Na primeira parte da “Trilogia do Acidente”, um misterioso
Hermes pede para que o detetive Diomedes encontre Enigmo, um ilusionista
desaparecido há vinte anos. O motivo é um apelo pessoal; trazer de volta um
momento de prazer da infância, quando Hermes viu o mago do ilusionismo em ação.
Diomedes aceita a proposta que o
ajudaria a sair da lama financeira. Policial aposentado e tendo que trabalhar
para suportar as contas que não param de chegar, Diomedes é um pícaro
contemporâneo; nunca resolveu um caso — nem o caso extraconjugal da companheira
com um conhecido seu —, mas exibe um Olho de Hórus na porta do escritório de
detetive. Enquanto engana seus clientes com alguns artifícios da técnica
acumulada pelos anos, é duplamente enganado por eles. Uma das colunas defeituosas
que tem para sustentar a vida que leva certamente é a das amizades. Diomedes
pode não ser o cara, mas conhece muitos que podem se passar por ele.
O mundo de Diomedes é sujo,
não apenas pelo traço preenchido por hachuras e sombras densas, mas por seus
personagens sombrios, muitos deles canhestros, desalinhados, perdidos. A
primeira pista de Diomedes o leva a um circo de horrores, cena importante para
o desdobramento da trama e igualmente importante para o universo de Mutarelli. Na
antessala de um circo maldito, Diomedes conhece um palhaço depressivo, o já
citado Chupetin, com laivos existencialistas, que o convida a descer mais um
degrau do inferno. O próximo encontro movido pela busca por Enigmo é com o
trapezista Lorenzo, um tipo viciado em dardos tranquilizantes. Lorenzo revela
algo além sobre Enigmo, que, por fim, não é apenas um mago das ilusões estilo
David Copperfield, mas alguém que distorce a realidade psíquica, capaz de
alterar os sentidos e assim revelar um novo mundo, um deus que se preciso ressuscita
e anda entre os homens.
A primeira parte de Diomedes,
“O dobro de cinco”, termina de modo inesperado, mudando a trama de forma quase
acidental. Mais acidental ainda é a presença de Diomedes em cada uma das
sequências, isto é: aquele que deveria estar um passo a frente do diabo, como
diz o mestre do romance picaresco clássico (do qual falamos aqui), está
mais para um Édipo ao contrário, tipicamente brasileiro. Não à toa, na segunda
parte da história, vemos a modernidade refletida nos seus olhos, e as pontas
soltas da vida levam Diomedes a conhecer outros personagens, que vão usá-lo
como isca para prender um criminoso.
Acontece que Diomedes não é um
pícaro como os outros, apesar de manter alguns traços. Tem a esperteza dos
anos, isso está na terceira parte, no modo como ele quer resolver um imbróglio
e a motivação financeira que move tal resolução. Mas esse pícaro trágico, um pobre-diabo
com pretensões impossíveis, talvez pela própria magia envolvida nas peripécias
que viveu em busca de Enigmo, talvez tenha se alterado com ela, ecoando as
vozes existencialistas que percorreram toda a sua jornada.
Chama atenção também o número de
referências no quadrinho de Mutarelli. Desde o clássico Tintim, passando por
uma galeria de super-heróis, até o moderno Pikachu, este, ironicamente,
importantíssimo para o desfecho de uma perseguição. Não apenas pelas
referências, Diomedes está até o pescoço inserido numa tradição que
repensa a forma de narrar. A ficção e a história se confundem sobretudo na
terceira parte, quando a história de Portugal — claramente uma homenagem de
Murarelli — está envolvida numa trama de mistério.
Diomedes é a expressão de uma
época que se estende, da falência dos poderes, das teorias da conspiração que
estão cada vez mais disseminadas entre as pessoas comuns; mas é também elevado a
grau único de criação e aventura. Seu protagonista é um Sherlock Holmes nascido
e criado para o público brasileiro, por isso plenamente reconhecível em
qualquer lugar.
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Diomedes: A trilogia do acidente
Lourenço Mutarelli
Companhia das Letras, 2012
432p.
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