Caminhos do Bildungsroman: artes e formação segundo Goethe e Rosa
Por Guilherme de Almeida Gesso
Ilustração de Poty Lazzarotto para Sagarana, de João Guimarães Rosa, 1970. |
O gênero do Bildungsroman
(Romance de Formação), criado por Goethe e seus Anos de Aprendizado de
Wilhelm Meister (1796), implica a luta de um herói para formar-se, isto é, para
enriquecer o espírito, agudizar a sensibilidade, compreender o mundo, alcançar
seus objetivos, e vislumbrar, enfim, noções como totalidade e harmonia a
despeito das barreiras que se lhe oponham. Tal percurso, que supõe personagens
perfectíveis, encontrou inúmeras renovações ao longo da História literária,
cada uma simultaneamente vassala do achado de Goethe e ligada a dados
específicos de seu entorno. O estudo comparativo das obras que seguem essa
linhagem deve considerar, assim, não apenas os enunciados originais da límpida
fonte goetheana, mas os contextos que rearranjam as aporias refratárias ao bem
formar-se.
Lauta de obras-primas, a referida
tradição consegue acolher em seu bojo herdeiros à primeira vista muito díspares,
herdeiros cuja originalidade de estilo parece afastar filiações, soando ao
leitor incauto como totalmente libertos de influências. É este o caso de Grande
Sertão: Veredas (1956), o maior romance brasileiro do século XX, notável
fábrica de linguagens que equilibra épicas pugnas com os mais tocantes momentos
líricos. Após desanuviada a complicada feitura da trama cheia de idas e voltas,
cristaliza-se a trajetória formativa do narrador Riobaldo, um Wilhelm Meister
sertanejo para quem torna-se o exame de si a principal atividade, passadas as
grandes batalhas, em tempos de “range rede” (p. 26).
O presente artigo propõe, com
efeito, aproximar Guimarães Rosa das diretrizes gerais do Bildungsroman,
levando em conta o inserir-se do universo das artes na Formação erigida pelos Anos
de Aprendizado de Wilhelm Meister e por Grande Sertão: Veredas.
Enfatizarei primeiro as semelhanças, depois as diferenças, de modo a nuançar as
etapas formativas. É que em ambos os casos, a revelação estética alça-se ao nível
de epifania, a partir da qual se transforma o estar-no-mundo dos heróis. Mas em
cada um, cabe à arte papel distinto, adequado à cosmovisão e à poética do
romancista.
Arte e Bildung
Numa conversa entre Wilhelm e seu
amor Mariane, narrada no primeiro capítulo, o jovem idealista, cultivador da
alta cultura e dos bens do espírito, descreve da seguinte maneira seu encontro
inaugural com o teatro de marionetes: “aqueles foram os primeiros momentos
felizes que desfrutei na nova casa vazia; ainda os trago na memória; ainda me
recordo da estranha impressão que senti” (p. 30). Que maravilhamento, que
descoberta a do pequeno menino que, em face dum palco nunca antes visto,
depara-se com o cenário do templo, o vermelho rubro da decoração e o drama de
Saul, adaptado do Samuel bíblico! Na série de eventos que compõem a
formação de Wilhelm, talvez seja esse o primeiro ponto de virada a determinar
para sempre sua jornada ulterior.
O iniciar-se no mundo do teatro
pela via das marionetes (vivido, cabe notar, pelo próprio Goethe), acaba
resultando, já na juventude, em dedicação total à arte dramática. Wilhelm crê
na possibilidade de unificação nacional através do trabalho conjunto de atores
e diretores, além de ver no teatro o único remédio contra os limites burgueses
de horizonte, que seus pais e colegas desejam impor-lhe à revelia. Conforme
testemunha carta ao seu amigo Werner, ele “inclina-se à poesia”, sente
“necessidade de cultivar o espírito e o gosto”, para que “tome por bom e belo o
que é verdadeiramente bom e belo”. E conclui: “só no teatro posso encontrar
tudo isso” (p. 286). Tanto fim em si mesma quanto ponte para o aperfeiçoamento,
a arte aparece portanto em chave positiva, como valor autêntico capaz de
sobreviver à racionalidade instrumental.
Uma sublevação interior semelhante
à da infância ocorre no livro III, quando, graças aos conselhos de Jarno,
Wilhelm conhece a obra de Shakespeare. Influenciado pela querela que na
Alemanha contrapunha o classicismo francês e as peças do bardo, “monstros
estranhos” aparentemente imperfeitos do ponto de vista formal, o ator ignorara
até ali esse universo de beleza que num átimo se descortina. Enclausurado em
seu quarto e absorto na leitura, agitam-no uma miríade de sensações inéditas,
de fato reveladoras. “Nesse estado de ânimo”, explica o narrador, “arrebatou-o
a torrente daquele grande gênio, conduzindo-o a um mar sem fim, no qual
rapidamente se esqueceu de tudo e se perdeu” (p. 184).
Se o teatro pavimenta etapas
fundamentais da formação de Wilhelm, o mesmo se pode dizer acerca da
importância da poesia para Riobaldo. Morando ainda na fazenda São Gregório,
posse de seu padrinho/ pai Selorico Mendes, o então jovem escuta a “toada toda
estranha” (p. 135) da canção de Siruiz. No mesmo cenário, encontra jagunços que
lhe projetam aos olhos paradigmas altivos de comportamento, marcados por
nobreza e virilidade. Trata-se, como salienta Davi Arrigucci Jr. (1994, p. 7-29),
de mais uma mistura num mundo recheado delas — a fusão entre letras e armas,
poesia e “jagunçagem”. Por um lado, o complexo bélico do romance remete à
tradição épica, anterior às angústias próprias do individualismo burguês; por
outro, o conteúdo latente da balada, carregado de poder premonitório, mira a
subjetividade específica de Riobaldo, o problema da formação e, portanto, os
temas típicos do Bildungsroman. Os versos de Siruiz, nesse sentido,
alicerçam a premissa formativa de Grande Sertão: Veredas, abrindo espaço
para o autocentrar-se do narrador, de modo que o esforço hermenêutico para deslindá-los
não se diferencia da tentativa de significar a própria vida.
“Aquilo molhou minha ideia” (p.
137), ele declara sobre a canção. Sob este impacto, torna-se artífice de versos
e nomeia Siruiz seu cavalo. Ademais, aparece a palavra “Siruiz” inscrita no
texto vinte e seis vezes, embora referências diretas ou indiretas à relevância
do episódio difundam-se pela obra inteira, segundo um ritmo obsessivo de
retorno.
Coincidentemente, o ator e o
jagunço qualificam como “estranhas” suas epifanias estéticas de que resultam modificações
profundas na consciência. Se para o Sócrates de Teeteto a filosofia
nasce do espanto, vê-se que a Bildung de ambos os personagens avança por
essa sorte de desassossego propulsora dum salto qualitativo, após o qual tudo
muda. Eis o caráter não definitivo e imperfeito de toda formação digna do nome;
“pois tudo aquilo que se mostra acabado, concluído, não pode absolutamente
reter nossa atenção” (GOETHE, 2006, p. 87).
Transcendência e retorno a si
Uma viagem à Itália, a ciência das
limitações do mero diletantismo artístico e a Revolução Francesa mudaram
radicalmente os planos de Goethe quanto ao seu Meister (BARRENTO, 2018,
p. 94). Sabe-se que a proposta primeva, intitulada A Missão Teatral de
Wilhelm Meister, reduzia-se aos limites do palco, sem abrir espaço, como nas
reformulações do romance, para toda a infraestrutura política que começa a
ganhar forma a partir do Livro VII, quando são revelados os planos da Sociedade
da Torre, confraria que cultiva o Progresso.
Até o quinto livro, Wilhelm
embrenha-se cada vez mais no gosto pela atuação, conhecendo figuras-chave para
o avanço de sua carreira, sejam ambulantes mambembes de qualidade duvidosa,
sejam intérpretes de grande porte, como Serlo e Aurelie. O cume dessa jornada
ocorre na montagem de Hamlet, ápice que carrega em seu bojo as sementes do
abandono do teatro, já que Wilhelm percebe dever-se seu êxito à homologia
psicológica entre si e o príncipe dinamarquês.
O interlúdio que são “As
confissões de uma bela alma” prepara terreno para a faceta política dos Anos
de Aprendizado. Nesta, o herói transcende o particularismo que marcara sua
trilha, e passa a conceber o coletivo, o universal. Percebe-se membro da
sociedade, ao passo que antes a considerava exterior, imóvel e contrária a seus
desígnios. Georg Lukács (2006, p. 582-584), nesse sentido, comenta que a
passagem da primeira para a segunda versão recoloca o problema do aprendizado,
ao fazer com que o teatro seja apenas um momento do todo, uma etapa transitória,
e não mais uma missão bastante por si mesma. Há, logo, um salto tanto no
conteúdo quanto na forma; amplia-se o escopo da formação, agora englobada pelos
influxos históricos.
Em Grande Sertão: Veredas, ao
contrário, o poder sugestivo da Canção de Siruiz permanece presente graças a
sua beleza poética e a seu tom oracular, cujo significado recôndito só se alcança
no fim da vida. Sua lógica no texto é o avesso do mecanismo de disseminação e
recolha da poesia barroca, pois os versos concisos antecipam os mais longínquos
desdobramentos da existência do protagonista, iluminando-a e sendo por ela
iluminados. Também se pode traçar, feito faz Murilo Marcondes de Moura (2008), contatos
entre a narrativa e o gênero do prosimetrum, sobretudo a Vita Nuova
de Dante, na qual um sonho, a princípio misterioso, projeta premonitoriamente a
morte de Beatriz.
Mas se cada trecho da balada ecoa o
percurso de Riobaldo; se sua estrutura remete aos momentos vários da vida que
lhe coube, como o amor por Diadorim, os remansos do Urucuia ou a morte de Joca
Ramiro — então não se pode falar de superação da poesia por outro complexo
formativo. Aqui, o mundo das letras não é um simples momento, mas todos os
momentos reunidos pela força centrípeta dos versos. Enquanto percebe Wilhelm os
limites da carreira teatral, Riobaldo nota, assombrado, a onipotência délfica
da poesia, descobrindo (anagnorisis profunda) um sentido implícito nas
palavras.
Sendo assim, o papel da arte no
caminho de nossos heróis se diferencia porque na narrativa alemã ele se
enquadra num esquema etapista, coerente com o racionalismo de Goethe em seu
período clássico. Como, não obstante, a obra roseana considera ser a formação uma
travessia rumo ao infinito, sem um ordenamento tão rigoroso, nada mais natural
que os versos de Siruiz espraiem-se por todo canto, do começo ao fim,
refletindo uma ubiquidade mística.
Concluo argumentando que os dois
casos em escrutínio são momentos da Bildung tal qual descrita por
Hans-Georg Gadamer. O primeiro deles, o de Wilhelm, envolve o transcender dos
estreitos horizontes do particular, porquanto a “consciência que trabalha
eleva-se acima do imediatismo de sua existência rumo à universalidade”
(GADAMER, 2013, p. 48). Por sua parte, o de Riobaldo mostra que a formação, se
envolve necessariamente o alheamento de si rumo a uma perspectiva mais ampla, não
deixa de incluir um movimento de retorno a si. Tanto é assim que a Canção de
Siruiz lhe insufla o gosto pela arte poética, melhorando sua sapiência, mas
também esclarece a trilha de seu próprio destino.
A
formação é, pois, a mobilidade do espírito, do “eu”, em direção ao mundo, bem
como o reutilizar dos dados apreendidos no mundo como sustento do “eu”. É nessa
dinâmica de retroalimentação que reside todo aprendizado realmente sucedido.
Bibliografia
ARRIGUCCI JR., Davi. “O mundo
misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa”. Novos Estudos CEBRAP,
n. 40, 1994, p. 7-29.
BARRENTO, João. “Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister”. In: Goethe, o eterno amador. Lisboa:
Bertrand Editora, 2018.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e
Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Rio de
Janeiro: Editora Vozes, 2013.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Os
Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Editora 34, 2006.
LUKÁCS, Georg. “Posfácio”. In:
GOETHE, Johann Wolfgang von. Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister.
São Paulo, Editora 34, 2006.
MOURA, Murilo Marcondes.
“Riobaldo, Siruiz e a moça virgem”. 2008 (Seminário). Transcrição disponível aqui.
ROSA, Guimarães. Grande Sertão:
Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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