Brasília 5.5, de Tatiana Nascimento — corte e montagem

 
 
Por Wagner Silva Gomes
 
 
BRASÍLIA 5.5
 
sujo demais
novo demais
escuro demais
feridas demais na
 
pele quase ultimato
 
um corpo a mais
no vagão errado
no século errado
no continente errado
 
presença quase desacato
 
incomoda demais a polícia
as pessoas de bem
o ar metropolitan chic a
                                 pressa
 
                                       do
 
                                    trem

 


 
“Brasília 5.5” é um poema da escritora Tatiana Nascimento, do livro Lundu (2016), que remete ao tempo psicológico da figura dos candangos, trabalhadores que construíram Brasília de 1956 a 1960 no contexto do governo de Juscelino Kubitschek, presidente que prometeu para a construção da capital federal o avanço temporal de 50 anos em 5 de governo (daí o título 5.5, de 50+5 = 55; e 5 + 0 (vazio temporal) em simetria com o outro 5 (dois tempos simétricos); e o zero que, em 5.5, ganha através do ponto — o zero diminuído — um preenchimento de cor).
 
Os três primeiros versos, paralelos, formados por adjetivos diferentes (sujo, novo e escuro) e o mesmo advérbio (demais) caracterizam a tonalidade da pele dos migrantes pretos e mestiços intensificando-a como qualidade do operariado, que é recente no local e que é afrodescendente. A repetição da vogal /ô/ no final dos adjetivos reproduz o eco e a sua extensão, emitida pela sonoridade das vogais do ditongo em /demais/, antecipando a ambiência no “vagão” (terceira estrofe).
 
Os versos começados em minúscula colaboram para o ritmo do que virá. No entanto, a mudança no ritmo métrico de quatro sílabas nos dois primeiros versos para cinco nos dois seguintes é acompanhada pela variação das primeiras palavras dos versos de adjetivo para substantivo, dando foco à substância de qualidade inalterada (“as feridas”), que acolhem o eco dos /ôs/ e da extensão sonora dos ditongos com a presença da assonância sibilante em /S/ da terminação das palavras do último verso da estrofe (feridas demais). Aqui, a intensidade do penúltimo verso unida ao som sibilante do último sintetiza uma escuridão gritante, um apagão em que o trem continua (constatado pelo som) mas não se sabe o que está acontecendo, destacado também pelo espaço vago do enjambement entre estrofes (“feridas demais na/ pele quase um ultimato”). É como se a montagem do primeiro cinema dos irmãos Lumiére em A chegada de um trem na estação (1895) tivesse uma duração maior de escuridão e som de trem (efeito encontrado em filmes contemporâneos).  
 
Nesse tempo estão os corpos negros que receberam do colonizador o ultimato do trabalho, tempo de escravidão (1535-1888). O tempo de Gregório de Matos a observar “Triste Bahia” e dizer: “A ti tocou-te uma máquina mercante/ Quem tua larga barra tem entrado/ A mim vem me trocando e tem trocado/ Tanto negócio e tanto negociante”. Mas a luz volta a distinguir as imagens após o vácuo do apagão do último verso citado. Sem a lógica da escravização (ou trabalha ou morre) o continente certo, para o homem de cor, era o africano, mas com tal lógica o negro americano está “no continente errado”.
 
Assim, no apagão da “pele quase ultimato” alguma transformação acontece. Se o “vagão”, o “século” e o “continente” estão errados, se, lembrando o Torquato Neto do poema “Go Back”, “aquele trem já passou”, o corpo negro não, “e se passou/ passou daqui pra melhor, foi!”, ao continuar intensificando a sua presença, o que incomoda a polícia e os racistas que o querem excluir do tempo contemporâneo, como num corte cinematográfico, e colocá-lo no passado escravocrata (na montagem “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, como canta o grupo O Rappa). Mas em Brasília a cor escura é a da maioria, é “demais”, e os negros só querem “saber do que pode dar certo” como cidadãos, protagonistas de suas histórias, de suas montagens, agora em vagões limpos, com corpos limpos, em um século que não é mais de escravidão, sem “tempo a perder”.
 

Comentários

Anônimo disse…
gostei demais de ver um texto sobre a poesia da Tatiana!
tá uma maravilha, obrigada :)
Satisfação! Ela é ótima. Que poeta!

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