Belfast, de Kenneth Branagh
Por Solange Peirão
Belfast, o filme, abre-se com uma
bonita vista área panorâmica da cidade moderna. Depois, a câmera passeia,
mostrando em visão frontal alguns dos mais expressivos monumentos locais, do
antigo Belfast City Hall e Belfast Castle, ao arrojado Museu do Titanic. E o
mural de rostos severos dos trabalhadores, do início do século XX, anuncia a
passagem dessa apresentação colorida da cidade para a narrativa principal da história,
em preto e branco, que começa a ser contada em 1969.
O filme de Kenneth Branagh é um
dos indicados ao Oscar de melhor filme em 2022. Trata-se desse reputado ator shakespeariano,
que aqui assina o roteiro e a direção.
De certa forma, é um filme memorialista,
visto que Kenneth Branagh passou a infância em Belfast, sua cidade natal, antes
da emigração posterior da família para a Inglaterra. E ali vivenciou, em parte, os conflitos do
período entre 1968 e as décadas seguintes, historicamente conhecido como The
Troubles.
A violência, que se abateu sobre a
Irlanda do Norte, envolveu a população majoritariamente protestante e a minoria
católica. O reduto da população maior de católicos acabou por se estabelecer, no
passado, ao sul da ilha, constituindo a República da Irlanda, após a
independência da Grã-Bretanha. E, na Irlanda do Norte, com a presença dos dois grupos
religiosos, a dimensão política permeou com mais intensidade a questão
religiosa. Solidificar os laços com a Grã-Bretanha, como defendiam os
protestantes, ou buscar a integração com a República católica vizinha?
É nos primeiros anos turbulentos
do conflito que o filme se situa. Pelo olhar do protagonista Buddy (Jude Hill),
uma criança sorridente, e o mais novo membro de uma família de protestantes.
Logo de início, a questão
religiosa marca presença, de maneira cativante. Um culto religioso ao que o
pequeno Buddy assiste, de olhos arregalados, ouvindo o discurso tenebroso de um
pastor, sobre os caminhos que levam à perdição infernal ou à salvação celestial,
sem deixar de alfinetar os católicos, mais propensos, é claro, ao primeiro
destino. As noites do garoto, como era de se esperar, vão ser povoadas por
pesadelos sombrios. Em cenas posteriores, o verdadeiro alcance desse discurso,
como contraponto, fica explícito: o pequeno Buddy demonstra a “superioridade”
dos católicos, porque possuem o sacramento da confissão, ou seja, é possível
pecar e confessar, pecar e confessar... indefinidamente. Assim, as misérias
doutrinais, especialmente as voltadas para crianças, ficam expostas, de ambos
os lados.
Mas o foco no rosto apavorado do
garoto, diante do discurso do pastor, vem apontar para o que estaria, na sequência,
no centro da narrativa de todo o filme: o mundo imaginário das crianças que, no
geral, gostam mesmo é das fantasias, e de preferência das bem tenebrosas. E como lidar com essa dimensão, quando se
está diante de um quadro real de barricadas e enfrentamentos violentos, bem ali,
na calçada da sua rua?
Daqui, passamos para outro ponto
que o filme trata de maneira exemplar: as relações de vizinhança. Sim, porque protestantes
e católicos convivem no mesmo quarteirão em harmonia, até a chegada do primeiro
ataque de revoltosos, e que poderia incluir um ou outro vizinho próximo. Aos olhos apavorados de Buddy são alienígenas
barbarizando no “meu espaço sagrado de brincadeiras”, e de lazer das famílias.
Há alguns momentos, marcadores desses
conflitos, do tipo “como odiar o próximo, meu vizinho, quase meu parente em
dias normais”, que merecem registro.
No cotidiano familiar de Buddy, na
televisão que parece estar sempre ligada, o garoto entrevê, da escada, tanto os
episódios semanais de Star Trek, quanto a chegada do homem à Lua.
Há, aqui, um jogo bonito entre palavra e imagem. A palavra “espaço”, que naquele
momento nos remeteria à rua na frente da casa, onde as coisas, com ebulição,
estão acontecendo, é usada, ao invés disso, para introduzir a imagem do espaço
sideral, que está justamente agora sendo mostrado ao mundo, com os astronautas flutuando
na Lua.
E como não amar a cena em que
vizinhos, nos fins de semana, carregam seus sofás e suas vitrolas para cantarem
e dançarem juntos? Ainda falando dos espaços externos, é interessante a
contraposição da cena clássica dos faroestes que a TV mostra, com os cowboys
alinhados, entrando nas ruas dos vilarejos desertos, e a vigília dos homens
armados, também nas ruas, na noite de Belfast. Ali, bem aonde, algumas horas antes, as
famílias confraternizavam, dançavam, e as crianças brincavam de “bandido e
mocinho”, fazendo, das tampas das lixeiras, seus escudos. Tampas que, na hora
H, vão servir à mãe de Buddy como escudo real, durante um ataque.
Há outros aspectos mais que valem
a pena. A inserção das citações de filmes clássicos da época, o que seria de se
esperar de um ator/diretor da monta de Kenneth Branagh, e que provavelmente tinha,
nas idas ao cinema, um hábito familiar esperado e amado.
Outro destaque fica por conta da
delicadeza e naturalidade dos avós nos diálogos e nas aproximações amorosas. O
que não seria, convenhamos, algo difícil para essa dupla de atores, Ciarán
Hinds e Judi Dench. Por fim, as cenas musicais com uma bela trilha sonora, encabeçada
por Van Morrison, que se insinuam na narrativa também com naturalidade louvável.
Belfast, um bom filme. Se merece
um Oscar é outro assunto. Mas depois de 2019, que reuniu Parasita, Era
uma vez em Hollywood, Dor e Glória, todos no mesmo ano, fica
difícil falar de excelência dos indicados desse ano.
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