Ataque dos cães, de Jane Campion
Por Pedro Fernandes
O filme que estreou no Brasil em
novembro de 2021 é outra produção valiosa para um currículo que conta com o
primoroso O piano. Muitos elementos são recuperados em Ataque dos
cães. Além do contexto, início do século XIX, e da atmosfera, o drama
psicológico de uma mãe com a filha quando as duas se veem no interior de um
ajuntamento familiar estrangeiro sob o mando de um homem que se recusa
transportar o objeto de maior afeição da arranjada noiva é o traço mais visível.
No filme de agora, algumas das
questões levantadas em 1993 ganham novos contornos. A narrativa encontra
ambiência no espaço rural, onde melhor pode acentuar os limites de uma
sociedade centrada no mando do macho. O que aí se perscruta é como essa cultura
se faz naturalmente e forma um sistema complexo de opressões no qual todos
estão implicados da pior maneira possível, mas seu peso se converte num ainda
mais terrível para os que não se encaixam definitivamente nos seus limites.
Assim, logo descobrimos que Jane
Campion, apesar de datar e mapear os acontecimentos da trama, não faz um filme preso
a esses marcadores, não os individualiza. Dedicada a olhar o sistema pelo seu
interior, como se a câmera pudesse capturar os volteios da consciência das
personagens, o drama de Ataque dos cães é o rural estadunidense e o de
qualquer outra parte do mundo. É possível que esteja nisso o mérito dessa
película e o maior desafio para os atores que precisam se destacar não pelo
traço caricatural ou pela ação e sim pela atuação — coisa rara no nosso tempo,
diríamos.
No pequeno conjunto de personagens,
destaca-se Phil Burbank (Benedict Cumberbatch), quem aparentemente assume a
centralidade da narrativa, embora a melhor maneira de ver Ataque dos cães
seja dilatando o núcleo do seu campo de costume para uma região um pouco mais
periférica. Nesse sentido, Rose (Kirsten Dunst) é deve ser o primeiro elemento
catalizador das nossas atenções. Isso porque as implicações entre as figuras
dessa narrativa são muito estreitas: a obstinada tarefa de Phil em corroer a
consciência de quem lhe é a usurpadora que esvaziou duplo lugar, o do irmão e o
de Bronco Henry, a memória em comum entre ele e esses dois, só adquire o valor
dramático que experienciamos pela maneira como observamos seus efeitos sobre
Rose.
Phil é a personagem destacada da
narrativa pela próxima sondagem das várias camadas que o definem: o refinado
homem de letras que só entrevemos pelas pontas soltas de algum diálogo e depois
por algumas delicadezas capturadas pela câmera nos instantes de sua intimidade ou
na feminilidade de Peter (Kodi Smit-McPhee), o filho da cunhada hospedeira com
quem estabelece um perigoso envolvimento, sua última cartada para dobrar a
psicologia de Rose; o vaqueiro que se torna, depois de uma transcendência
vivida nos tempos da adolescência, num princípio de lenda viva pela couraça que
veste depois disso; e o homem envolto num complexo sexual cuja identidade soterrada
por esse homem bruto se manifesta por dois desvios — a aversão ao
feminino e a afeição incestuosa pelo irmão George (Jesse Plemons).
O conflito de identidade sexual — em
traço naturalista, se pensarmos na implicância homem e meio, como aliás é para
Phil quando ele se refere à silenciosa, lenta e áspera vida no campo como sua
determinante —, é elemento evidente que afeta todas as relações. Mesmo o
visível império do macho como notamos num corte sutil e significativo em que o testemunho
sobre a consciência em desfazimento de Rose e a vida doméstica das duas
empregadas na casa dos Burbank são logo desviados para um momento de lazer em
que os peões da fazenda se refestelam coletivamente nus em banhos de rio e de
sol, mesmo esse domínio é produto de uma sexualidade calafetada.
Obviamente que não é possível
reduzir tudo nessa narrativa ao conflito de sexualidade porque as implicações
psicológicas se apresentam de ordem diversa. Mesmo que este elemento seja o
latente em Ataque dos cães, é possível pensar em como o enredo investe
ainda, para citar um exemplo, em certo veio da tradição e dele interessa-se
pela força da narrativa de imaginação popular. Isso se percebe através de duas
pequenas circunstâncias da narrativa: a presença do indígena, que mesmo
domesticado na cultura do branco é por ele defenestrado; e, derivada, total ou
em parte, a contação da história de mistério e horror pela velha empregada na
casa dos Burbank.
As circunstâncias enumeradas sintetizam-se
na invisível presença de Bronco Henry. Quem foi, ao que indica, o maior vaqueiro
na propriedade dos Burbank aparece continuamente na narrativa por alguns
elementos, como a sela de montaria feita memorial e pelas contínuas histórias
contadas por Phil, sobretudo o episódio aqui designado como transcendental
porque culminou na sua transformação definitiva. Bronco é um fantasma, um
espírito encarnado em Phil e com o qual este não sabe lidar ao certo pela
reverência da tradição. Apenas Peter, sensível para conhecer melhor o interior dos
outros, é quem introduz a suspeita sobre a presença indelével do fantasma. Talvez
porque, no final, ele próprio possa significar o ponto interrompido dessa
estirpe.
Mas nada aqui permite conclusões
definitivas. O mistério nuclear da narrativa não está na sua superfície, mas
nos subtendidos. Jane Campion conta com a nossa argúcia para o dubitativo.
Assim é que podemos sempre perguntar: a consciência degenerada de Rose é apenas
produto da masculinidade abusiva do cunhado ou, ela própria, guarda o desejo do
qual Phil a acusa ou mesmo guarda a curiosidade amorosa pelo vaqueiro? Possivelmente
envolto no drama da mãe, quem se sacrifica ao entrar para a família dos Burbank
para oferecer outra condição ao jovem, qual o papel de Peter nesse imbróglio — ele
é mesmo o ponto final no fantasma de Bronco Henry, o possibilitador de um felizes
para sempre ou se tornará, como suspeitamos antes, ele próprio a sua continuidade?
Ora, algum caminho é dado mais
pelo título original — The Power of the Dog. Através dele, deslocamos ainda
mais o eixo da narrativa para sua margem, visto que, é em Peter que repousa
toda a arquitetura do drama. Ele detém a capacidade de desfazer o nó górdio de
um sistema que vitima a todos, mesmo aqueles acusados peremptoriamente como o
carnegão a ser expurgado do tecido social. O jovem afeminado e motivo de chacota no
círculo dos vaqueiros de Burbank é, qual sua mãe, duplamente forte, porque
dispõe da sagacidade. E sabemos, mais que a força, foi este o poder que nos
trouxe até aqui.
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