As Índias Galantes, de Philippe Béziat
Por Solange Peirão
As Índias Galantes é um
documentário de Philippe Béziat que registra o processo de criação do
espetáculo adaptado da obra Les Indes Galantes, uma ópera-balé de
Jean-Philippe Rameau, com libreto de Louis Fuzelier, e que estreou em Paris em
1735.
Essa nova montagem foi
revolucionária. Como esclarece o diretor Clément Cogitore, se o texto original
trata dos embates entre colonizadores europeus e os povos originários de todos
os cantos do mundo, a proposta da nova versão foi fazer, da cidade, o mundo, e
das diversas culturas urbanas que nela convivem, a sua matéria.
O espetáculo esteve em cartaz no
braço da Ópera Nacional de Paris, situado na Place de la Bastille, entre
setembro e outubro de 2019.
A ópera
Em síntese, a ópera pode ser
expressa pelas peripécias, de toda ordem, que envolvem colonizadores europeus e
os povos de além-mar, tanto à ocidente como à oriente, aqueles que
genericamente foram classificados como as Índias.
Mares desconhecidos e tenebrosos,
natureza “exótica”, palpitante, em estreita harmonia com os povos que a habitam
e conhecem seus segredos. Idílios e disputas amorosas, entre os forasteiros e
os da terra, provocando sentimentos ambíguos de atração, repulsa e culpa. Tudo
isso é tema que a bela música de Rameau embala.
A tônica principal é a passagem do
clichê do selvagem sanguinário para o bom selvagem, ideia que Jean Jacques Rousseau
introduziu, para tratar do indígena como população pura, não contaminada pela
civilização. Evidentemente, a História se encarregou de desmascarar os
verdadeiros interesses de dominação dos colonizadores, por trás dessa visão
idílica.
A nova leitura da ópera
Se as Índias agora se cruzam no
espaço geográfico da cidade, e se estamos a falar do nosso tempo, é natural que
as expressões culturais urbanas deem o tom. É nessa direção que vai o roteiro
do espetáculo. Ou seja, tratar da juventude e dos frequentadores habituais das
ruas, suas trajetórias de vida pessoal e de suas comunidades de origem, seus
sonhos, frustações e ameaças. Esses atores da vida real são os novos
personagens da história que Clément Cogitore conta, e que a coreógrafa Bintou Dembélé
coloca em cena, por meio de uma linguagem corporal diversa: hip hop, krump,
voguimg, popping, jumpstyle. Esse cadinho de “dancers” é
originário de diversos países, literalmente de todos os continentes. Com isso,
dá para sentir, inclusive, o alcance real dos movimentos migratórios das
últimas décadas, sendo Paris um dos polos de atração.
Contrapontos
O que o documentário desvenda, no
processo de criação do espetáculo, durante os ensaios, e que o torna rico,
belo, uma aula intensa sobre a sociedade e a cultura urbana em que estamos
mergulhados? Vejamos algumas reflexões.
O diretor sobre o roteiro:
“O libreto mostra estereótipos.
Personagens reduzidos unicamente a sua comunidade: selvagens, incas, turcos. Um
estereótipo é só um personagem com quem passamos pouco tempo, cuja história
conhecemos. É algo que não quero evitar, mas transcender, para que o personagem
nos revele algo mais (…). Eu gostaria que o espetáculo expressasse as tensões
entre os corpos e os grupos. Corpos manipulados, vestidos, governados, nos
quais sentimos uma tensão que cresce até explodir. Quero que pareça que foi a
juventude que tomou a Bastilha.”
A coreógrafa sobre o roteiro:
“Para mim, que vim do hip hop e do
underground, que abordo as cenas a partir da margem, mostramos nessa peça as
formas de dominação contemporânea. Tento dizer aos dançarinos que não se
esqueçam disso. Porque nas nossas danças, que são culturas que nos definem,
vocês vão representar estereótipos, e a ideia de Clément é atravessar esses
estereótipos, para desconstrui-los. Essa foi minha abordagem. O lema do hip
hop é ‘desviar’.”
Dançarinos sobre a questão da
identidade:
“Minha família é vietnamita e
indiana. Bintou diz que nosso corpo tem mil anos de história. É verdade, é tudo
que herdamos.”
“Você se torna você mesmo quando
desconstrói sua identidade herdada, para descobrir o que, dentro de nós, nos
anima, nos dá vida.”
“Eu aprendi flexing na rua,
não em um estúdio de dança. Eu aprendi como deslizar, no concreto. Você pode
assistir ao krump, ao flexing, e ver que isso vem de um gueto.
Muitos dançarinos aqui aprendem sobre o estilo de rua, mas eles não vêm da rua.
Então, é diferente compreender um estilo ou pertencer a ele.”
“Quando interpretamos o malandro,
é só uma imagem. Eu nasci em Mirail, perto de Toulouse. Mesmo com imagens
conhecidas, ainda é ficção. Aí me reconheço, sem me reconhecer. Sinto-me um
intérprete.”
“Eu danço krump. É a
autoexpressão. A ópera é pura autoexpressão. Cantores líricos tem essa
expressão. Eles se entregam, eles precisam ser habitados pelo que cantam, para
que seja real. E tudo que eles cantam, eu exprimo na dança. O objetivo da
expressão artística é contar alguma coisa. E todos têm algo a contar, inclusive
os corpos.”
O documentário
Há muito ainda a falar. Melhor
assistir ao documentário. Como não se encantar com a câmera estática,
focalizando rostos e corpos que falam? Não só dos dançarinos, mas da orquestra
e do coro, conduzidos, com competência, pelo maestro Leonardo García Alarcón.
Que magnífica a interação de todos esses atores, descobrindo, entre si, uma
outra potência artística, até então mal conhecida!
A câmera passeia em movimento para
dar conta das cenas de interpretação da peça propriamente dita, ou para mostrar
a grandiosa montagem que assimila, com beleza, a tecnologia, e que contrapõe,
também, belos figurinos, em uma mescla do antigo e do moderno.
No destaque para a música, temos
razão para uma emoção especial. O ápice do espetáculo é a cena final, com o
libreto mais conhecido e bonito, o “Forêts Paisibles” (Florestas Tranquilas). E
quem o introduz, no documentário, é uma dançarina brasileira, descendente de
tupis-guaranis. Ela delicadamente aciona a gravação dos tambores sincronizados
das danças indígenas, que escuta todas as manhãs, para ritualizar o seu
despertar.
Antes dela, o maestro fala de uma
curiosidade interessante: uma publicação do século XVIII registra uma
representação de uma troupe italiana sobre indígenas da Louisiana, e que
se iniciava com a batida de tambores. Entre os assistentes estava Rameau, que
justamente utiliza esses repiques para iniciar o libreto. Aliás, há uma gravação, disponível na internet, sobre uma apresentação divertida da
Philharmonie de Paris, e que é bem interessante para apreciarmos essa abertura.
A repercussão
No mais, impossível não registrar
a repercussão do espetáculo na imprensa. Teve de tudo. Os que amaram, tal qual
as plateias que o ovacionaram, e os que escreveram algo do tipo: por que pagar
200 euros para ver dançarinos no palco, se na rua ninguém dá nenhum centavo a
eles? E então, compreendemos melhor as palavras do diretor da Ópera Bastille
para o grupo, depois da estreia: “Acho que Leonardo, Clément e Bintou aceitaram
o desafio de apresentar a primeira ópera barroca com uma produção que
certamente abalará a crítica, pois não há muitos códigos por onde navegar; deve
estar complicado para eles, agora em casa, tentando escrever…”
Isso me remete a uma situação
similar, nos meus tempos de magistério. Quando alguém queria censurar, em sua
aula, alguma questão de fundo, do tipo “luta de classes”, evocava que seu
procedimento metodológico estava inadequado. Sim, porque não se trata, lá,
preferencialmente, de códigos estéticos que os jornalistas desconhecem. Estamos
a falar, isso sim, de uma classe social que adentra o espaço de uma cultura
branca e dominante, para falar de suas formas de luta e resistência.
Curiosamente o filme termina com a
cena da bela Praça da Bastilha, com seu monumento à frente da Ópera, evocativo
da Revolução de 1830, que pôs fim ao período da Restauração, na França. A
Coluna de Julho, encimada pelo Gênio da Liberdade, é oportuna para relembrarmos
as palavras do diretor do espetáculo, quando afirmou que gostaria que a
juventude tomasse a Bastilha. Ele provavelmente se referia ao prédio da Ópera
Bastille, e não ao poder, como está presente, em nosso imaginário, quando
pensamos na tomada primeira da Bastilha, durante a Revolução Francesa. Ou será
que não?
* Solange Peirão é historiadora e
diretora da Solar
Pesquisas de História. Cinéfila.
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