A pulga de aço, de Nikolai Leskov
Por Christopher Domínguez
Michael
Nikolai S. Leskov é um artista
eminentemente visual e suas composições se impõem seguindo um registro que vai
de Pirosmani, o pintor de ícones que foi seu contemporâneo, a Chagall, imagens
que se estendem pelo cinema soviético, esse outro épico que veio substituir o
romance russo durante o século passado. Uma vez que se lê Leskov, parece
difícil acreditar que quaisquer cenas de Mikhail Lin’kov ou Giorgi Shengelaia
poderiam ter sido filmadas sem sua influência. Lady Macbeth do distrito de
Mtzensk, a novela de Leskov que se tornaria a ópera de Dmitri Shostakovich
em 1934, se desenrola brutalmente à nossa frente: Catierina Lovovna estrangula
seu marido, um rico comerciante, e esconde o corpo no porão com a ajuda de seu
amante. Imediatamente depois, ela envenena o sogro porque ele os surpreende em
flagrante, afoga seu filho adotivo para permanecer herdeira da propriedade e,
condenada a trabalhos forçados junto com seu cúmplice, se joga no rio
arrastando sua rival quando ela percebe que ele a trai. Tudo isso acontece sem
uma palavra a mais, sem melodrama e sem filosofia, porque a obra de Leskov (Gorókjovo,
Oriol, 1831 — São Petersburgo, 1895) é assim: seca, rude, objetiva. É natural
que Vladimir Nabokov não tenha gostado dela (que a condena como de segunda
categoria na boca de Fyodor, o protagonista de O dom) e que, por outro
lado, Thomas Mann dedicou um tempo valioso a Leskov antes da sesta, em
Princeton, justamente quando planejava encerrar sua obra desvendando o mistério
do simples. É possível ver, em O eleito, a influência de Leskov.
Em qualquer literatura que não a
russa, Leskov seria apenas um bom escritor tradicional e até um moralizador um
tanto limitado (como prova, paradoxalmente, a história conhecida como A pulga
de aço, de 1881), mas, tendo sido contemporâneo de grandes gênios, suas
limitações o exaltam: a sobriedade de um narrador que não tem muito a dizer
sobre o futuro da humanidade. Ninguém está mais alheio à pretensa natureza
dialógica da literatura russa do que ele, o que se pode dizer que não se aplica
a Tolstói (seu amigo e professor) ou a Dostoiévski, seu crítico: ele não estava
interessado na épica ou na psicologia e aspirava retratar o grande arco da vida
popular (e sobretudo camponesa), especializando-se na Igreja Ortodoxa, em seus
clérigos e nos velhos crentes, cujas vidas passou a dominar com ampla erudição.
Leskov também foi o único escritor russo de seu tempo que lutou contra o
antissemitismo. Apesar do viés evangélico que seu trabalho assumiu quando ficou
sob a influência de Tolstói e da simpatia que dedicaria ao protestantismo,
Leskov permaneceu um escritor independente que não gostava tanto de liberais
quanto de conservadores.
Já foi dito que Leskov era um
Tchekhov sem gênio. A comparação é abusiva e imprecisa. Em Leskov, sem dúvida,
o refinamento e a ternura tchekhoviana estão ausentes, mas, chegando ao limite
do conto de fadas, aparecem em suas histórias servos ciumentos que são ogros,
como aquele que arranca as janelas dos inquilinos delinquentes para que seja o
frio que os desaloje. Isso é Leskov em O pavão (1868).
Thomas Mann morreu sem cumprir seu
desejo de ler a obra completa de Leskov, se contentando com as traduções alemãs
que apareceram no início da década de 1930 (que foram as que chegaram às mãos
de Walter Benjamin, outro grande revelador de Leskov). Depois de ler A pulga
de aço e reler LLady Macbeth do distrito de Mtzensk e outros contos e novelas
já traduzidos no francês como Vontade de ferro e Mania, l'insulare, novelas dedicadas aos alemães
étnicos da Rússia, não sei se Leskov é um dos autores que devem ser
acompanhados até o final. Talvez tenha sido bom que Mann tenha ficado com o
desejo de esgotá-lo, porque contra Leskov é conveniente preservar-se de um
entusiasmo extremo. Tem as virtudes do escritor popular que vende as maravilhas
do imediatismo e da cor, mas muitas vezes, como se queixava Tolstói, é
supérfluo e nos submete àquela impaciência difícil de esconder, aquela causada
pelo folclore.
Copio alguns parágrafos que o
crítico Pietro Citati dedicados a Leskov em O mal absoluto. No coração do
romance do século XIX (2006, tradução livre), pois expressa perfeitamente
seu charme duradouro:
“Quem abre os contos de Nikolai
Leskov se vê percorrendo os infinitos caminhos do mundo, como em Dom Quixote e
nos romances de Fielding. Impulsionados por não sei que paixão, senhores e
camponeses, mercadores e monges, ladrões, ciganos, tártaros e vagabundos
atravessam as planícies da Rússia como um rio turbulento, inquieto e incontrolável.
Pequenos grupos de peregrinos chegam a pé aos mosteiros e às cidades sagradas
[…] Quem pode conhecer nessas pobres estalagens cheias de fumaça no meio da tórrida
estepe ou nas margens do Cáspio a distante Europa? Alguma palavra inglesa ou
francesa chega aqui zombeteiramente deformada, como a língua de outro planeta.
Ninguém jamais viu Londres, Paris e as cidades alemãs e austríacas, ninguém
jamais leu Guerra e paz ou Crime e castigo, ninguém jamais pensou
nas questões que dividem os círculos intelectuais em Moscou e São Petersburgo
[...] Leskov se debruça com piedade sobre isso, a Rússia arcaica e vital que
está morrendo; com devoção e, ao mesmo tempo, com toques de humor irônico conta
aquilo que não podemos chamar outra coisa senão a Santa Rússia.”
Esta nota poderia terminar neste
ponto, com o convite para ler outro monstro sagrado do século XIX, se não fosse
porque, como Tolstói previu, o tempo de Leskov, o futuro, ainda estava por vir.
À sua morte, Liev Nikolaévitch invejou Leskov, coisas de escritores, a clareza
de seu testamento legal, que expressava uma resolução e controle sobre seu translado
(incluindo o cuidado de seu cadáver) que seria impossível para o gigante imitar
(e ele já o farejava). Esse futuro para Leskov começou com a admiração de Vitor
Chklovski (em A arte como procedimento) e dos formalistas que na década
de 1920 aplaudiram sua heterodoxia linguística, às vezes trilíngue em russo,
ucraniano e polonês, e o ungiram como mestre da skaz, uma técnica narrativa
baseada na predominância do oral, rica em trocadilhos e neologismos e de que A
pulga de aço é um exemplo. Dostoiévski, por outro lado, não via nenhum
mérito no esforço de Leskov de escrever como “as pessoas falavam”.
A fama do agente de viagens cujo
talento literário foi descoberto pela sonoridade de seus relatos de negócios
chegou às bibliografias dos autoproclamados pós-modernos. Leskov, um escritor
provinciano ou cosmopolita que contornou o império russo, aparecerá, inesperada
e surpreendentemente, como o tema de “O narrador” (1936), um dos ensaios mais
famosos de Walter Benjamin, que provavelmente é o mais famoso “modernista” do século
XX, o mais citado, o mais útil. Sem entrar na discussão bizantina sobre se
Benjamin postulava um sistema (ou mesmo uma teologia) ou era o observador
poético de uma realidade fragmentada, fica claro que Leskov ocupa um lugar
central em sua imaginação crítica junto com vários ingênuos menores (Hebel,
Nodier) que serviu de contrapeso à balança onde estavam seus modernos duros: Baudelaire,
Proust, Walser, Brecht. E Leskov nos leva ao Kafka benjaminiano, uma bolinha
que vai e vem na balança dos antigos e dos modernos.
Leskov é o primitivo que guarda um
tesouro perdido, o contador de histórias que Benjamin entende como a nêmesis do
romancista, aquele que guarda no peito uma arte em extinção (as célebres
palavras da tribo) falaciosamente contraposto ao romance burguês e seus amigos
fatais, a informação jornalística e as notícias instantâneas, concebidas como vizinhas
da negação pequeno-burguesa da história como proeza da revolução. Leskov é,
para Benjamin, a última luz que se vê, ao olhar para trás, do mundo do pecado
original do qual a modernidade nos distancia, segundo a conhecida linha de
Baudelaire. Afinal, é natural que Leskov, um conhecedor dos cismas da ortodoxia
russa, tenha ficado na mente, considerada teológica, do mais moderno e
esclarecido Benjamin.
Ao usar Leskov como condutor,
Benjamin demonstra, em “O narrador”, a fragilidade de suas profecias. A
notícia, no século XXI, não vem de longe nem de perto e desliza por um
espaço-tempo contínuo que, como a televisão e a internet, ainda era
inimaginável para Benjamin. É provável que o narrador tenha deixado de tomar o
que narra da experiência, fazendo a transição da epopeia, obra supostamente coletiva,
para o romance, criação resoluta do solitário, mas não é menos verdade que as
formas tradicionais de narração que Benjamin acreditava ver exemplificadas em
Leskov (e em particular em A pulga de aço, sua obra-prima em sua
opinião) continuaram a ser reproduzidas. Além de serem consideradas formas
degradadas, as sagas cinematográficas e literárias negaram a morte do épico
temido por Benjamin. Os colegas de Benjamin nos Estados Unidos e no período
pós-guerra não aceitaram prontamente que a narrativa havia sido democratizada,
universalizada e, se preferir, barbarizada pela triunfante cultura de massa
burguesa.
Benjamin viu no velho Leskov o
encontro entre a tradição oral e a literatura popular e ainda sublinhou outra
coisa, mais duradoura, que o remeteu ao tempo de Heródoto. A pulga de aço,
que conta a bem-humorada imitação russa de um ingênuo inglês apresentado ao
czar, é, mais do que uma lenda tropológica, uma artesania, e foi aí que
Benjamin captou o segredo de Leskov, a natureza artesanal da velha arte de contar
histórias, em que “a marca do narrador é aderida à narração como as do oleiro à
superfície de sua panela de barro.” É comovente (e Benjamin genuinamente comove
como poucas mentes) que um conto de Leskov tenha se tornado o brinquedo
preferido, a máquina invisível perfeita, para o definitivo colecionador de
brinquedos. A pulga de aço é uma das peças arqueológicas mais perfeitas
e curiosas da literatura ocidental.
* Este texto é a tradução livre de
“La pulga de acero, de Nikolai Leskov”, publicado aqui, em Letras Libres.
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