Saul Bellow em Boston

Por Jeffrey Mehlman
 
Saul Bellow. Foto: Giovanni Giovannetti


 
Para o mundo ele era a encarnação de Chicago, uma sensibilidade filosófica cuja linguagem preferida era a indiferença urbana e das ruas. Seu amigo Allan Bloom afirmava que ele era para Chicago o que Balzac era para Paris. E, em certo sentido, Chicago era para ele o oposto de Paris. Havia viajado para a capital francesa em 1948 na esperança de escrever o que era conhecido em seu ambiente pela sigla “G.N.A.”: o “grande romance americano”. E ele mais ou menos fez com As aventuras de Augie March. Mas nas margens do Sena, a inspiração lhe veio como uma aparição que viera visitá-lo do Meio Oeste estadunidense. De repente, ele percebeu que a voz de seu amigo esquecido Chucky, de Chicago, um “charlatão que não parava de anunciar que tinha algum super plano”, seria a voz de seu romance. E a voz não parava. “Tudo o que eu tinha que fazer era ficar recolhendo-a a baldes.”
 
Por mais nativo de Chicago que parecesse, não havia nascido aí, mas em um subúrbio de Montreal, de onde ainda se lembrava das provocações antissemitas de sua primeira infância: “maudit juif”, como gostava de entoar com um forte sotaque quebequense. Nem morreu em Chicago. Passou seus últimos doze anos, durante os quais cheguei a conhecê-lo, em Boston, onde lecionou, enquanto pôde, na universidade onde fomos colegas. Lembro-me de perguntar a ele, em nosso primeiro jantar, por que ele ficou em Chicago por tantos anos. Sua resposta foi puro Bellow: “Achei que, quando uma ideia chegasse a Chicago, ela estaria tão desgastada que se poderia ver através dela.” Ele era tão espirituoso que suas piadas eram irresistíveis. Seu mundo era um mundo de trapaceiros e ele tinha o espírito de alguém determinado a não ser enganado. Onde outros viam virtude, ele percebeu algum ‘trapaceio’ e isso passava para algumas de suas ideias mais inesquecíveis e isso se infiltrava em algumas de suas frases mais inesquecíveis: “sua folha de figueira — diz um de seus personagens para resumir os encantos de seu amante — se tornou uma etiqueta de preço”.
 
Quanto ao motivo de ter saído de Chicago, a resposta foi um pouco mais amarga: já estava farto de passar pelas casas de velhos amigos que haviam morrido. E assim, entrado nos setenta anos, levantara voo para a Nova Inglaterra e traíra sua jovem esposa (a quinta), que logo se tornaria a heroína de seu último romance, Ravelstein. E talvez por era Boston e não Chicago, chegamos a falar quase sempre sobre a França, como se Boston proporcionasse alguma medida de extraterritorialidade quando comparada a Chicago, a cidade cuja especificidade, desde a sua epifania às margens do Sena, seria uma espécie de anti-Paris.
 
Era irônico que ele tivesse vindo para a Universidade de Boston, já que essa instituição havia se tornado recentemente a sede da Partisan Review, a publicação inicialmente de esquerda do modernismo literário que o havia acolhido inicialmente, mas da que, depois de uma crítica negativa sobre Herzog, fizera com que ele se distanciasse. Vale a pena recordar seu veredito sobre o oportunismo da publicação, cujo descida em Boston aconteceu um ano depois a do próprio Bellow: “Querem cozinhar suas comidas sobre a “chama dura como uma gema” de Pater, e o que fazem é acender suas cigarrilhas com ela”.
 
Ele tinha suas reservas, como seu biógrafo James Atlas nos lembra, sobre a vida universitária. Como professor, nos dizem, ele vivia olhando o relógio para ir embora. Ou como disse a um de seus alunos em outra universidade: “Pense em mim como um barbeiro amigo. Vou colocar a espuma de barbear, mas precisará se barbear sozinho.” Sem dúvida, ele sentia que, no fundo, “a coisa do professor”, como ele a chamava, era “uma maravilhosa trapaça”. No entanto, a paixão desse “dostoiévskiano de Chicago Dostoiévski”, como ele se chamava, por realizações genuínas da imaginação era palpável.
 
A idade, é claro, exacerbou seu ceticismo. Philip Roth descreveu memoravelmente a qualidade tchekhoviana de sua festa de 75 anos em Vermont, onde Bellow tinha uma casa de campo. “As pessoas se levantavam, começavam a chorar e se sentavam.” O romancista chegou a Boston anos depois desse evento extraordinário, e é difícil imaginar que entusiasmos poderiam ter sobrevivido. Tive um vislumbre de sua própria amarga sabedoria depois de lhe dar um livro meu, publicado recentemente e por coincidência em Chicago, sobre os roteiros de rádio de Walter Benjamin para crianças. Ele respondeu-me generosamente com uma carta, cujos comentários memoráveis ​​incluíam este: “Devo admitir que minha paciência com a aula de cultura de Weimar de Benjamin sempre foi limitada. Eu me culpo por isso. Não sendo um acadêmico, não estou inclinado a seguir as complexidades esotéricas e intrincadas das ideias que desenvolve. E com o passar dos anos também penso cada vez pior das sutilezas analíticas de Freud. Minha atitude parece ser, agora que penso nisso, que embora tenhamos que aceitar certas ideias ou noções, não temos realmente que viver de acordo com elas. Por mais importantes que sejam, deixo-as passar por mim.” A sabedoria a que chegara talvez encontrasse sua formulação mais sucinta em um verso de Jerusalem and Back: “Muita inteligência pode ser investida na ignorância quando a necessidade de ilusão é profunda”. Há preceitos mais mesquinhos pelos quais viver.
 
Eu estava mais visceralmente interessado em um trabalho sobre o antissemitismo da vida intelectual francesa durante os anos entre guerras. Uma segunda carta me informava: “O caso que mais me causou dor foi o de Paul Morand, cujo livro sobre a vida noturna me deslumbrou há 40 anos”. Sim, se pode sentir a afinidade entre a prosa influenciada pelo jazz de Morand e a de Bellow, e se pode sentir a angústia do estadunidense com a sátira antijudaica particularmente viciosa de France-la-doulce, que termina com um inescrupuloso magnata judeu do cinema que, levantando suta taça pouco antes da Segunda Guerra Mundial, brinda a França, “o campo de concentração de Deus”.
 
No dia seguinte à morte do romancista, porém, é melhor não esquecer sua sagacidade contagiosa? Há alguns anos, a Sorbonne decidiu conceder-lhe um doutor honoris causa. Acertos foram feitos e depois Bellow parou de responder às cartas que lhe eram enviadas. Como um dos organizadores era meu amigo, recebi um telefonema angustiado pedindo para saber o que estava acontecendo. Lembro-me da dificuldade que tive para conseguir o número de telefone de sua casa de campo em Vermont, e depois a mensagem bem-humorada na secretária eletrônica: “Como diabos você me encontrou? Honestamente, estou surpreso que tenha conseguido.” O efeito da mensagem foi abrir uma desconhecida veia bellowiana em minha própria voz. Quando ele finalmente me atendeu, o que eu disse foi: “Saul, e então, os rapazes da Sorbonne estão ficando um pouco ansiosos. Já compraram o arminho e você nem responde?” Ele deve ter gostado do truque, porque sua réplica foi a própria perfeição: “Eles vão pagar a minha passagem?” “Bom, certamente.” “Espere, vou perguntar à patroa”.
 
Não era a primeira vez que seus médicos o proibiam de viajar. Cerca de um ano antes, recebi um telefonema dizendo que seus médicos o haviam desencorajado de viajar a Oxford para dar uma palestra. E, disse ele, como sempre me parecera um “espírito aventureiro”, queria saber se eu estava interessado em viajar no seu lugar. Bem, posso não ter sido o primeiro a receber sua ligação na ocasião, mas aparentemente fui o primeiro a aceitar sua oferta. E foi assim que viajei para Oxford, onde, para meu horror, descobri que meu público já havia pago uma quantia considerável pelo prazer de ouvir o ganhador do Prêmio Nobel. Enquanto me dirigia para a sala de conferências, ocorreu-me que o romance mais recente de Bellow, The Actual, era sobre um astuto judeu de Chicago, de noventa anos, que arma para enviar um homem mais jovem que o substituísse em uma missão com todos os tipos de consequências inesperadas. Será que meu público e eu já seríamos os personagens da ficção de Bellow? Compartilhei minha ideia com um de meus anfitriões, o distinto historiador de Oxford Keith Thomas, que riu e comentou que agora eu tinha um começo ideal para minha palestra. Tentei dissuadi-lo, mas, percebendo o evidente torpor na plateia após uma apresentação particularmente tediosa de um ilustre escritor que me precedera no pódio, optei por iniciar minha fala como sugerido. A reação foi um silêncio absoluto. Decidi que mais tarde, no jantar, perguntaria a Keith Thomas se o silêncio significava que apenas mencionar a palavra “judeu” no augusto recinto de Oxford congelaria qualquer chance de riso. Era uma pergunta ousada, e presumi que o historiador me daria uma resposta negativa. Mas, na verdade, não foi assim. “É muito provável.”
 
Lembro-me do estilo característico de Bellow, essa “mistura de bravata intelectual erguida com judaísmo de rua espirituoso e atrevido”, como disse um crítico, e refleti que talvez o público de Oxford que se sentia desconfortável com a palavra “judeu” não merecia ouvir o professor. E não porque ele usava sua identidade como um distintivo. Ao sugerir que ele estava em um triunvirato com Philip Roth e Bernard Malamud, Bellow invocou uma famosa sociedade que vendia ternos prontos, dizendo que não queria fazer parte do “Hart, Schaffner e Marx das letras americanas”. O efeito geral daquele dia em Oxford, que pode ou não ter sido pré-arranjado por Bellow, foi fazer com que eu me sentisse profunda e exuberantemente estadunidense. Foi uma experiência que ele tinha transmitindo para seus compatriotas desde as linhas turbulentas que iniciam a Augie March. Aqui, perto do rio Charles, ele faz muita falta.

* Este texto é a tradução livre de “Bellow in Boston”, publicado em Adventures in the French Trade. Fragments Toward a Life (Stanford University Press, 2010).

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