Reflexos da História: dualismo e polifonia na literatura judaica moderna
Por Guilherme de Almeida Gesso
Don Copeland. |
1. O mundo
polarizado
Toda a organização
de O Homenzinho (1864), estreia literária de Mêndele Môikher Sfórim,
baseia-se no conflito entre os valores atrasados do shtetl russo,
oriundos de formas medievais de sociabilidade, e as inovações iluministas que
vinham sendo engendradas no seio da Europa Ocidental, sobretudo na França e na
Alemanha. A bipolaridade Oeste-Leste, descrita por historiadores como Steven
Ascheim, na verdade pautava boa parte dos debates internos à comunidade judaica
internacional, indecisa quanto a assimilar ou rejeitar as produções ideológicas
em nascimento. O objetivo de Mêndele ao escrever seu livro debutante não
poderia ser mais claro: colocar em cena os termos deste conflito para então
apresentar um posicionamento político reformista, cujo pressuposto era a
necessidade imperativa de superar a paralisia mental e a pobreza material das
comunidades dos Ostjuden. Conforme se vê pelo desenvolvimento da trama,
tal superação se dá pelo poder emancipador da leitura e do estudo. Desse modo,
Mêndele não apenas tematiza o problema como esboça sua solução, fechando
perfeitamente um argumento pedagógico no interior do livro.
É curiosa a maneira
como tudo isso se dá. Nota-se em primeiro lugar que o personagem a aparecer
primeiro, e que no fim das contas dispara as possibilidades de existência da
narrativa, é um vendedor ambulante de livros, também chamado Mêndele. Além do
nome, compartilha com o autor o amor pela leitura. O jogo de espelhos indica de
pronto que o discurso geral da narrativa, seu sentido último, coincide, pelo
menos em parte, com a visão daquele que a escreve. Nessa semelhança entre
narrador e personagem, está em jogo a projeção do escritor empírico no universo
ficcional, confusão de fronteiras que confere ao relato maior verossimilhança.
Mas o escopo de O
Homenzinho não se resume ao ponto de vista deste primeiro narrador. Quando ele
chega à aldeia de Glupsk, fica claro serem todas suas andanças e reflexões o
mero prelúdio para o verdadeiro cerne do livro, isto é, a biografia que Itzkhok
Avrom, habitante da região, escreveu antes da morte. A troca entre uma e outra
voz se insere na tradição da narrativa em moldura, caracterizada justamente
pelo aparecimento de um documento específico — carta, livro, diário, entre
outros — que conta uma história ou revela um segredo, cortando assim a fala
daquele que se apresentara como narrador central.
A partir desse
ponto, acompanhamos a trajetória sôfrega de Avrom, processo paulatino de
rebaixamento moral. Quando jovem, Avrom entra em choque com um mundo violento,
no qual é muito difícil superar o círculo vicioso de pobreza. Enquanto estuda
com o professor de Talmud, nada aprende, só recebe reproches e agressões;
ingressando na vida do trabalho, passa a prestar serviços na loja de
armarinhos, depois no alfaiate e no sapateiro, até que assessora um cantor. Em
todos os casos, no entanto, é explorado até o limite do suportável, de modo que
o romance segue uma estrutura repetitiva capaz de ressaltar a ausência de
horizontes dessa vida. Se há uma luz no fim do túnel, ela é representada por um
certo Gutman, judeu alemão influenciado pelas ideias da Emancipação, afeito às
artes e avesso às mesquinharias sociais. Gutman é totalmente estranho ao
contexto do romance, parece simbolizar tudo quanto o autor considera valoroso, por
opor-se à baixeza das elites e à ignorância dos mais pobres. Tal contraste será
ainda mais acentuado com a entrada em cena de Isser Varguer, encarnação do
aproveitador venal, figura que vai se tornar o grande mentor de Avrom,
ensinando-lhe os piores hábitos, maculando seus costumes. Trata-se do antípoda
do mentor tantas vezes exibido nos Bildungsroman, sendo seu efeito o mais
torpe recrudescimento do espírito.
A lógica que pauta o
romance, portanto, é a da oposição esquemática entre valores positivos e
negativos. No lado positivo, estão personagens concretos, como Gutman, e conceitos
abstratos, como a Arte, a Educação, o Esclarecimento. Já na banda podre, desfilam
toda sorte de figuras autoritárias e corruptas, responsáveis por manter-se intocada
a opressão. O postulado ao mesmo tempo simples e cristalino desses problemas
serve, evidentemente, a um propósito político que antecede inclusive as
pretensões estéticas da obra. Dito de outro modo, é possível afirmar que O
Homenzinho carece da sofisticação formal encontrada nos grandes livros,
estabelecendo como prioridade a força discursiva, o efeito prático de
conscientizar os leitores. Não à toa escolheu Mêndele escrever na língua
iídiche, por meio da qual poderia acessar as classes populares da comunidade
judaica e transmitir sua mensagem. É pelo exagero nos traços da dicotomia, pela
impossibilidade de conciliação de contrários, pela arquitetura ética unidirecional
que o escritor consegue denunciar uma realidade incômoda e propor uma saída. A
urgência da denúncia demandava a simplificação do discurso. O argumento segue vereda
reta, evitando as bifurcações.
2. O mundo embaraçado
O Homenzinho propõe
ao público uma experiência de indignação contra o descalabro social que tolhe a
dignidade do povo judeu. Para garantir o efeito, precisa exacerbar os
contrários com o fito de anunciar cheio de ímpeto as soluções políticas capitais.
Radicalmente diferente é o universo de O Caminho para a Liberdade
(1908), um dos momentos de apogeu tanto da obra de Arthur Schnitzler quanto de
toda a literatura judaica moderna. Neste grande afresco da vida vienense do fin-de-siècle,
costura-se uma complexa cadeia de relações sociais e debates políticos,
levando-se em conta a riqueza sutil de suas tensões. Schnitzler faz um retrato
poderoso de um círculo de aristocratas e burgueses nas suas andanças pela
cidade, de seus encontros noturnos nos salões das famílias importantes, ao
mesmo tempo em que capta, como um sismógrafo da História, o antissemitismo
crescente que desembocaria nas grandes tragédias do século XX.
O protagonista Georg
von Wergenthin é o típico flâneur, um aristocrata jovem e belo que
dissipa a vida gozando o ócio e hesita emoldurar-se no receituário burguês da valorização
do trabalho. Pelo filtro de sua psicologia, registram-se todos os feixes do
romance. Um dos aspectos mais modernos do livro, portanto, é a soberania da
interioridade sobre a exterioridade, até porque do ponto de vista dramático
pouco acontece ao longo da trama, importando mais os movimentos anímicos, as
dúvidas, angústias, mudanças de opinião, enfim, a matéria-prima constituinte daquilo
que costumamos chamar de alma humana. Por outro lado, se tudo passa pela
mediação dessa personalidade específica, Schnitzler de maneira alguma busca um
mecanismo simplório de identificação, pois muitas vezes Georg é egoísta,
sobranceiro e antipático, já se podendo notar, a partir de tal prisma de
defeitos, que O Caminho para a Liberdade tensiona os maniqueísmos e
agudiza os conflitos internos.
Mas a lei de
complicação moral não se restringe às maquinações do jovem irresponsável, ela
também se estende ao grande palco do debate público, em especial no que
concerne à questão judaica. Vimos que no Homenzinho tal debate se
reduzia à luta entre modernidade e atraso, com valores muito bem definidos a
cada um dos polos. Contrariamente, o romance vienense guarda uma inquieta
neutralidade que não “fecha a conta”, subsumindo a voz do autor e favorecendo a
desses personagens dotados de vida própria, dispostos a defender com ardor e
paixão seus respectivos pontos de vista.
A multiplicidade de
vertentes é melhor percebida quando se analisam as declarações de certos
personagens a propósito da questão judaica, que tanto polariza o livro. Tomemos
a título de exemplo figuras feito Heinrich Bermann, Oskar Ehrenberg e Therese
Golowski (dentre outras que poderiam ser citadas com proveito). Cada uma
representa posição específica, sem contudo resolver o autor suas
incompatibilidades pela adoção de uma versão paternalista. Heinrich Bermann é o
típico judeu assimilado aos valores da Europa liberal; identifica-se antes com
a cultura alemã que com suas raízes étnicas, embora nunca consiga de fato se
desvencilhar de preocupações a respeito do destino da comunidade judaica no
mundo. Muito diferente é o comportamento de Oskar Ehrenberg, que recusa e se
envergonha de suas origens, adotando uma identidade cristã e implicando-se num
conflito violento com o pai apegado às raízes e sionista, sugestivamente
chamado Salomon. Por sua parte, Therese Golowski adota o caminho da
radicalização política ao misturar a luta contra o antissemitismo com a pauta
mais ampla da revolução do proletariado.
Ora, o convívio
tenso e inconcluso destas e de outras teses permite ao romance conservar um
notável senso de complexidade, às custas, é claro, da ênfase de tom que pudemos
encontrar em Mêndele. No mundo de O Caminho para a Liberdade a hesitação
é tal que possibilitou aos antissemitas contemporâneos usarem a obra como arma,
através da instrumentalização de trechos deslocados do contexto¹. Note-se que o
protagonista Georg tem vários amigos judeus mas nunca se declara crítico ao
antissemitismo, e parece não se incomodar, por exemplo, com a militância
racista, ligada ao Partido Cristão Social, do irmão de sua amada, Josef Rosner.
Tampouco é possível saber qual seria exatamente a visão de Arthur Schnitzler
sobre todo esse contexto complicado em que a assimilação judaica pela Europa
liberal começa a claudicar. Aposta no sionismo ou o recusa? Adota ou rejeita a
vertente mais socialista? Ao se projetar como voz narrativa, escolhe não reduzir
as coisas a termos fáceis, nem impor uma cosmovisão qualquer aos leitores. A
focalização interna de um personagem principal anódino e egoísta associada à
multipolaridade dos discursos mantêm o circuito sempre aberto, o que respeita a
dificuldade real do debate público vienense.
No libelo de Mêndele
contra o atraso e favorável ao progresso, constatamos a sobreposição entre
autor e narrador, bem como a identidade quase total entre a mensagem do romance
e os posicionamentos políticos de quem o formula. Arthur Schnitzler segue trilha
oposta, desconstruindo a dicotomia em favor da multipolaridade e apagando a voz
autoral num oceano de vozes emancipadas do jugo de um discurso único. Este
procedimento, que tecnicamente chamamos polifônico, se sintoniza com uma
mudança concreta da relação dos judeus com a Europa. No contexto de Mêndele
(meados do século XIX), havia grande esperança de assimilação pacífica entre as
partes — supostamente bastaria aos judeus aceitarem os valores do universalismo
burguês, enquadrando-se nos hábitos gerais dos povos “avançados”. Era uma
questão de adaptar-se à vanguarda europeia, de superar os grilhões atávicos da
ignorância, de educar-se. Schnitzler pôde todavia perceber que o processo não seria
tão fácil, pois foi o discurso heroico do iluminismo revertido no renascimento
das energias antissemitas. Nesse sentido, não cabia mais o esquema passado versus
modernidade: o mundo se embaraçava. O que antes parecia simples querela binária
agora se transfigura num angustiante labirinto de múltiplas respostas. Nenhuma
delas definitiva ou garantidora de sucesso.
Nota:
1 Essa curiosa
informação aparece no posfácio do tradutor, Marcelo Backes, à edição
especificada na bibliografia (p. 525)
Bibliografia:
ASCHEIM, Steven. Brothers
and Strangers: The East European Jews in German and German Jewish
Consciousness, 1800-1923. The University of Wisconsin Press, 1982.
SCHNITZLER, Arthur. O
Caminho para a Liberdade. Organização e Tradução de Marcelo Backes. São
Paulo, Record, 2011.
SFÓRIM, Mêndele
Môikher. O Homenzinho. Tradução de Genha Midgal. São Paulo, Humanitas,
2012.
Comentários