O silêncio das estrelas
Por Tiago D. Oliveira
Fiquei me perguntando sobre o que seria o
novo livro do Rodrigo Garcia Lopes, O enigma das ondas, e me deparei com um
grande leque de alcances. A sensação primeira foi a de adentrar em uma
biblioteca que se desenha no enquadramento de uma página, funda surpresa que
convoca para um mergulho onde a poesia polariza em pontos de partida e chegada
reinventando-se em toques múltiplos contemporâneos ou não – eis o lirismo de um
poeta que reage ao mundo, eis um mundo como barro nas mãos sobre o papel
provocando também reflexões.
Vejo seus versos como a imagem do leitor.
Leio suas palavras, que são leituras mundanas. Nós, dois leitores em busca de
entendimento – “uma outra imagem, móvel, vazia (apta a tomar não importa quais
contornos) que nunca é mais do que o lugar de seu efeito: lá onde se entrevê a
morte da linguagem”, afirmou um dia Roland Barthes – sendo a primeira margem a
dada pelo texto e a segunda, construída. Estamos os dois, lado a lado, unificados
pelo livro.
O enigma das ondas é o sétimo livro de
poemas de Rodrigo Garcia Lopes, que vem já maturando sua obra desde os anos 80,
criando uma poesia que se remonta a cada livro e assim consegue alcançar leitores e lugares dentro da literatura brasileira. Ele, que também traduziu
uma boa sequência de obras de grandes nomes da literatura mundial – Rimbaud,
Whitman, Apollinaire, Laura Riding, Sylvia Plath – lançou ainda livros de
entrevistas, romance, letras para um álbum musical e foi editor de uma
grande revista de circulação nacional que marcou uma época, a Coyote. Um pacote
de experiências que só contribuiu para que a sua poesia fosse crescendo a
partir do contato, das leituras e de toda experimentação possível, e assim
ficou como semifinalista do Prêmio Oceanos do ano de 2021, reafirmando o
caminho de O enigma das ondas.
Em diversos momentos a voz dos poemas
localiza o desconforto aflorado lento e potente – “ninguém disse que seria
fácil, que seria sopa” – e uma outra voz começa a comentar os versos dentro da
própria leitura – “este filme mudo chamado/ O Enigma do mundo" –, a voz da
consciência do mundo, o que só cresce a cada verso lido e a sensação de
desconforto aumenta, a imagem de uma saída se embaralha com as notícias de
jornal, tudo reforça as lacunas abertas pela poesia – “O que ninguém tinha
tentado:/ Chegar inteiro à linha de chegada” – para que a própria poesia apresente
seus preenchimentos – “Amar cada segundo ávido/ Sem nenhuma dúvida” –, para que
a poesia apresente a sua viável saída – “Só para dar um sentido/ à vida, este
mal-entendido” – e o desconforto se dilua em outro tempo a marcar. É o que pode
ser lido em “Canção de outono”.
Editado pela Iluminuras, os 91 poemas
estão divididos em 4 partes. A primeira, “Língua”, apresenta ao leitor uma
chance de pensar o ato de escrever, de fazer poesia, assim como outros aspectos
internos do universo literário, o que destaca o tom ácido em versos
metalinguísticos. Pensar a primeira parte do livro é uma prática interessante
tanto para o leitor iniciante quanto para o iniciado. Lendo “Janelas para o
mundo”, poema alegoria, conseguimos as imagens em potência exata:
O mundo passa
pela janela da palavra
para tocar a realidade
mas a realidade
de repente se fecha
na imagem de uma concha:
uma concha
é um mundo onde
coube uma palavra.
isto nos basta:
fechamos as palavras das janelas
e abrimos as janelas das palavras.
O mundo das palavras e o mundo
real, o que sobra são constatações que desnorteiam pela intensidade. O que fica
no fim é a viagem que o leitor faz com as palavras e consegue ser também parte
das engrenagens do poeta, a leitura.
A segunda parte, “pandemonium”, o peso
das questões políticas que acometem o país é sentido muito claramente, os
poemas são carregados de um olhar social que corta a realidade para costurar dores
atuais na folha de papel – “AFASIA FALÉSIA FALÊNCIA FALÁCIA”, o que lemos em
“Odisseia paulistana”. Ou em “Delação premiada” – “Falar é poder. Mas, e
calar?”. Também em “Sonhei tanto um dia ser/ um velho lobo do mar/ Mas só
conseguir virar/ o velho lobo do bar”, quando percebemos o traço característico
presente em todo o livro, o tom sarcástico, irônico.
A terceira parte, “loci”, carrega o olhar
reflexivo e pesa em certa melancolia nos versos. Se distingue em formas e
estilos, carrega o poeta para um lugar em que apresenta de maneira mais
completa uma poesia que herda o clássico, mas que também afirma seu tempo em
riquezas estéticas que embelezam o ofício de carpir a palavra.
A quarte parte, “mentis”, também é rica
em maturidade poética, um conjunto de poemas que demonstram que a forma ainda é
um dos aspectos que figuram como ponto de partida e chegada para o poeta. Ficam
as palavras, mas do que elas, ficam seus ecos ou formas de grafias em versos
que traduzem o tempo, toda e qualquer forma de gritá-lo no silêncio de uma
página em branco.
Guardo dessas páginas o sentido das
ondas, mas agora sem enigmas, ainda com algumas lacunas abertas, mas sem
enigmas que possam impedir o desvelar de um “Lar”:
Além, a linha de sombras
das montanhas,
o travelling branco e sibilante
das ondas.
Outono
e calmaria.
Sobre estas simples telhas
o silêncio das estrelas.
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