O centenário de Ulysses
Por Andreu Jaume
O próprio James Joyce disse em
mais de uma ocasião que havia escrito seu trabalho para manter os especialistas
entretidos por trezentos anos. Agora que Ulysses, publicado pela
primeira vez em 1922, tem um século, podemos confirmar que esta profecia
continua a se realizar, ainda que residualmente, na indústria dos estudos
acadêmicos, mas ao mesmo tempo devemos reconhecer que a misteriosa aura que
acompanha o romance desde seu surgimento acabou prejudicando sua posteridade,
transformando-o em uma obra que todos conhecem e poucos leem. Por outro lado,
ninguém ignora que neste aniversário daquele annus mirabilis da
literatura europeia, o que até pouco tempo chamávamos de “cânone ocidental” tem
sofrido um descrédito que seria inimaginável para a geração de Joyce, T.S. Eliot
ou Ezra Pound . O modernism constituiu uma repulsiva estética muito
virulenta, mas, longe de contestar o cânone, preocupou-se sobretudo em esticar
a tradição, sacudi-la de seus alicerces e integrá-la ao seu presente como se
estivesse formando uma ordem simultânea, para usar uma expressão memorável de
Eliot. Nesse sentido, Ulysses continua a oferecer resistência à
domesticação da literatura e à submissão a novos dogmas.
A jornada de Leopold Bloom e
Stephen Dedalus é um trânsito da escuridão para a luz que opera em esferas
muito diversas e sincronizadas. Mas, inicialmente, é preciso lembrar que Ulysses,
como foi Dom Quixote, é uma grande comédia à beira do abismo. O próprio
Joyce certa vez reconheceu a Samuel Beckett que talvez tivesse se equivocado em
seus esforços para sistematizar o romance com todos aqueles esquemas
explicativos que geralmente o acompanham como um apêndice e que muitas vezes
desencorajam o leitor em vez de guiá-lo. Mais do que um tomo hermético e
vanguardista, Ulysses é uma obra viva e cheia de humor, por vezes
hilariante, irreverente, transgressora, excessiva, também por vezes pesada e
até insuportável, mas no final luminosa e afirmativa. Percorrê-la continua
sendo uma experiência insubstituível e cheia de surpresas para o leitor do
nosso tempo.
Para quê, muitos se perguntam,
essa complexidade formal é tão ostensiva e gratuita? A pergunta nos interroga
de maneira particularmente angustiante em nosso tempo. Cem anos depois dessa
revolução artística, a literatura ocidental parece sofrer uma crise de amnésia
e fraqueza, como se tudo aquilo nunca tivesse acontecido. Obras como Ulysses,
porém, nos lembram que o romance, como repositório do gênero narrativo, um dia
acusou uma incapacidade de continuar contando, de testemunhar a experiência do
homem com alegria e engenhosidade. O fenômeno começou a ser observado no final
do século XIX. O romance, que aspirava a deslocar o épico e a história, começou
a dar sinais de cansaço e incapacidade de abarcar o mundo. Flaubert já dera um
sintoma dessa exaustão. Sua última obra, Bouvard e Pécuchet (1881), nada
mais é do que a dramatização satírica do colapso do conhecimento, o último ato
da ilusão burguesa de dominação. O estilo tardio de Henry James também é
afetado por essa paralisia. Em seus últimos romances, nada acontece a não ser
aquele stream of consciousness — a expressão é do próprio James — de
seus personagens paralisados diante de si mesmos e de suas decisões morais. O
ensaio e a especulação foram gradualmente assumindo o que antes era o enredo.
Para dizer como Walter Benjamin, o desaparecimento gradual da arte clássica de
contar histórias significa também a extinção da sabedoria, como uma épica da verdade.
O romance — e especialmente o romance do século XX — iria se postular a partir
de então como uma epopeia do conhecimento. Até Borges, com suas parábolas
ensaísticas, ilustra esse problema.
A crise de representação literária
que se observa em Ulysses pode ser comparada às convulsões que se
manifestam em outras artes paralelas como a música ou a pintura. A reação
contra a melodia e a tonalidade ou o desaparecimento da perspectiva e a
irrupção do abstrato são sintomas de que o homem ocidental não conseguia mais
se ver de acordo com os padrões estabelecidos há milênios pela mimese. O centro
de referência foi deslocado ou destruído, em parte devido ao esgotamento
religioso e aos avanços científicos, transformando para sempre nossa relação
com a morte, com o horizonte escatológico e, assim, desestruturando a escala
humana. Embora Joyce não pertencesse a nenhum movimento de vanguarda nem
seguisse nenhum ditado programático em sua obra, Ulysses foi
imediatamente reconhecido como a expressão de um novo tempo. Ezra Pound, que
atuou como promotor do modernism, chegou a dizer que a era cristã havia
terminado em 31 de outubro de 1921, quando Joyce escreveu as últimas palavras
de seu romance. E por alguns anos, o próprio Pound finalizou suas cartas com a
legenda post scriptum Ulixi, ou seja, “depois da escrita de Ulysses”.
A nova era, porém, seria a do totalitarismo, que Pound, como tantos outros de
ambos os lados do espectro ideológico, abraçaria com entusiasmo.
Por que Joyce escolheu o nome Ulysses
para o título de seu romance? Durante este século, em parte por esse esforço
gratuito de sistematização a que nos referimos anteriormente, as
correspondências entre a época de Leopold Bloom e o poema homérico foram
estudadas até a saciedade, com resultados tão aparentes quanto decepcionantes.
A referência às aventuras de Ulisses é de natureza extraformal. Em seu romance,
Joyce partiu para integrar e subverter o cânone, fazendo-o ressoar com sangue
novo. De acordo com essa extrema angústia das influências, que pela primeira
vez se manifesta de forma violenta, Homero é o artífice da palavra no tempo. Em
seus poemas, os eventos da história e a evolução da experiência são criados,
assim como nós, no Ocidente, aprendemos a imaginá-los. A relação dos homens com
os deuses, a guerra, a viagem, o regresso, a procura do pai ou o casamento são
os constantes problemas humanos com os quais construímos a nossa representação.
Dois mil anos depois, o título de Ulysses só poderia ser irônico. O que
no épico era oralidade e escuta comunitária agora era escrita e leitura
individual. A relação entre os homens e os deuses havia sido truncada com o
esgotamento do cristianismo. A rica e longa experiência de Ulisses em seu poema
cheio de aventuras foi reduzida a um dia comum na vida de um judeu traído na
cidade de Dublin num ano indiferente. As perspectivas de realização épica — o
nacionalismo irlandês — estavam se afogando em sua própria banalidade. A
metáfora homérica, portanto, só poderia ser negativa.
E é que, apesar dos fogos de
artifício, Ulysses não passa de um romance. E, como tal, assume e
explora todas as limitações de seu gênero, postulando-se também como a
conclusão da odisseia imaginativa que começou com Cervantes. É eloquente que
tanto Dom Quixote quanto Ulysses, alfa e ômega de uma tradição,
tenham sido originalmente um conto, um romance exemplar no caso de Cervantes e
um conto de Dublinenses no de Joyce. Para ambos os autores, seus dois
personagens se emanciparam da trama, fugindo do destino para se repetirem ao
infinito. Da mesma forma que o cavaleiro e seu escudeiro são uma paródia de uma
extinta experiência trágica, Leopold Bloom e Stephen Dedalus aparecem no início
do século XX para atestar o esgotamento do drama burguês que o romance vinha
contando. Cyril Connolly observou que em Ulysses os personagens não têm
evolução. Mas é exatamente disso que o romance trata. As tramas de iniciação,
formação, desentendimentos pais-filhos e adultério que constituíram a pedreira
do grande romance moderno são aqui elididas e borradas em favor do estudo de alguns
personagens e sua relação com a linguagem. Joyce parece dizer: “Já sabemos o
que aconteceu com eles, agora temos que perguntar o que são”.
Joyce pôde arcar com essa
transgressão porque já havia experimentado todos os gêneros, desde a poesia e o
conto até o teatro e o romance de formação. A totalidade de sua obra, de fato,
se reduz a uma série de motivos que se repetem e se transformam em diferentes
estilos até chegar ao paroxismo de Ulysses. Dublinenses (1914)
continua sendo uma coleção exemplar de gravuras sobre a vida de uma sociedade. Exilados
(1915) é um bom drama ibseniano sobre o casamento. E Retrato do artista
quando jovem (1916) é um Bildungsroman em que, como observou Anthony
Burgess, pela primeira vez o que é contado afeta o estilo. Ulysses nada
mais será do que a problematização radical de todos os elementos expostos
nestas obras. Stephen Dedalus, alter ego de Joyce, se encontra com
Leopold Bloom, cuja experiência sentimental prolonga e complica o que já havia
sido estudado tanto em “Os mortos” quanto em Exilados. E, claro, a
experimentação estilística do Retrato torna-se ali noutro personagem. É
interessante observar como Joyce decepciona as expectativas do leitor do
romance clássico, já que o primeiro capítulo apresenta alguns personagens cuja
história é posteriormente abortada para focar em outros aspectos que nunca
haviam merecido a atenção do gênero.
O que diz Ulysses então? Retrato
do artista quando jovem abre com uma citação das Metamorfoses de
Ovídio: “Et ignotas animum dimittit in artes” (“E aplicou sua alma escura às
artes”). A frase refere-se a Dédalo, o artesão que construiu o labirinto em que
foi trancado com seu filho Ícaro por ordem do rei Minos. Graças a essas
obscuras artes, Dédalo foi capaz de projetar as asas de cera com as quais pai e
filho escaparam da prisão. Para Joyce, o mito de Dédalo representa a posse da
arte para nos libertar dos laços familiares e históricos. Apesar de toda a
negatividade que suportaram, os autores do modernism são os últimos a
manifestar uma fé inabalável no poder e na magia da imaginação artística. Nesse
sentido, eram herdeiros do esteticismo do final do século. E Joyce, como Pound,
esteve toda a vida convencido de que a literatura era uma nova religião. Não
foi em vão que se sentiu filho do naturalismo e do simbolismo. Por isso, em Ulysses,
a linguagem não é mais apenas um instrumento, mas também mais um protagonista,
talvez o principal.
A questão da linguagem passa,
claro, por toda a estética da época. Um ano antes da publicação de Ulysses,
Wittgenstein revolucionara a filosofia com o Tractatus logico-philosophicus,
lançando a questão mais séria que se formulou em torno dos limites da
linguagem. Por sua vez, Joyce também se preocupou em mapear as fronteiras do
mundo da palavra, submetendo seus personagens a um teste verbal inédito. A
linguagem, em Ulysses, nasce, se desenvolve e se destrói. Que verdade
permanece na palavra? Essa é uma das perguntas constantes do romance, que por
isso mesmo confronta os grandes pais da tradição literária. Não apenas Homero,
mas também Shakespeare e Dante desempenham um papel central no confronto mortal
de Joyce com sua herança recebida. Joyce, Eliot e Pound foram os primeiros a
julgar o cânone europeu cunhado pelos românticos, sentindo-se guardiões de um
legado que também questionaram severamente.
Stephen Dedalus é o filho pária
que foge da casa do pai para procurar um pai espiritual que acaba encontrando
em Leopold Bloom. Bloom é um homem comum de trinta e tantos anos, agente de
publicidade, descendente de emigrantes judeus húngaros, embora tenha se
convertido ao protestantismo. Ele e sua esposa, Molly, uma conhecida cantora de
ópera em Dublin, têm uma filha de quinze anos, Milly, que não mora mais com
eles, tendo ido para outra cidade estudar fotografia. O casal também teve um
filho, Rudy, que morreu onze dias após o nascimento — uma lembrança da morte de
Hamnet, filho de Shakespeare que morreu aos onze anos —, perda que traumatizou
Molly, que por isso não quis fazer sexo com seu marido na última década. Molly,
por outro lado, tem um caso com Blazes Boylan, seu empresário. De sua parte,
Bloom se limita a manter uma relação epistolar clandestina com uma certa Martha
Clifford. Apesar de tudo, Bloom e sua esposa ainda se amam muito, como sabemos
pelo monólogo final de Molly.
Stephen invade essas vidas comuns
em busca de uma revelação. Até então, sua vida consistia em um desprezo
perpétuo — “Non serviam” era o lema de Joyce —, mas aos poucos foi
compreendendo que todos os seus sonhos de redenção política, intelectual e
religiosa são falsos. A princípio o encontramos vivendo com dois companheiros
na torre Martello, isolado de tudo, como Telêmaco prestes a sair e criar seu
pai. A Irlanda é um terreno baldio, dominado por um rei inglês e um papa
italiano. Até mesmo sua língua é tanto sua quanto estrangeira. O encontro com
Bloom ensinará a Stephen que a verdadeira jornada espiritual está em abandonar
as seguranças ilusórias do ego e da identidade e aceitar o desenraizamento da
existência. Dedalus parece seguir o ditado de Hugo de São Victor de que o homem
para quem sua terra é a mais doce ainda é um iniciante; aquele que vê todo solo
como o de sua pátria já é mais forte, mas somente aquele que ousa ver o mundo
inteiro como um exílio é perfeito. É nisso que consiste realmente sua missão de
“forjar na frágua de sua alma a consciência incriada de sua raça”.
Nesta variante da Telemaquia,
Joyce também invoca o espectro de Shakespeare, seu antepassado no manejo
virtuoso do inglês. A esse respeito, Ulysses é uma meditação poderosa,
mas satírica, sobre Hamlet e o mito da paternidade. O príncipe da
Dinamarca também foge da roda do poder e do sacrifício a que parece destinado a
tentar dar à luz outra coisa, descobrindo-se no exílio da meia-idade. Todo o
ciclo trágico de Shakespeare, especialmente o de Henrique IV a Hamlet
e Rei Lear, lida com esse problema, que não será resolvido até os
romances posteriores. Em obras como Conto de inverno ou A tempestade,
o trágico parece encontrar uma solução. A morte intolerável de Cordélia é
redimida pelo feliz reconhecimento de Miranda por Próspero, seu pai. A
esterilidade da terra fria e dos crânios com que Hamlet fecha,
materializada na morte da inocente Ofélia, transforma-se numa fecundidade
luminosa representada por personagens femininos triunfantes e restaurados,
sejam elas Miranda, Perdita ou Hermione. Bloom e Stephen se encontram na
maternidade, onde ouvem o trovão do renascimento interior, acesso a outra forma
de espiritualidade, assim como no final de A terra devastada, de T. S.
Eliot, o poema que terminou o ano que havia começado com Ulysses.
Joyce, como se sabe, foi escritor
de formação católica, educado por jesuítas, mas a sua pertença à tradição
anglo-saxónica permitiu-lhe gozar do privilégio, negado em outras línguas, de
trabalhar com um instrumento que havia sido temperado na tradução da Bíblia e
depois refinada por um autor, Shakespeare, que levou a imaginação do
Renascimento a uma concepção de homem emancipada do cristianismo. Essa
influência, imperdoável para qualquer escritor de sua área, foi especialmente
problemática para Joyce, que, como Eliot, oscilava entre a devoção a
Shakespeare e a Dante, entendido como o poeta canônico da Europa católica.
Joyce, além disso, no longo exílio que o levou a deixar a Irlanda ainda muito
jovem e morar em Paris, Trieste e Zurique, adotou o italiano como quase sua
própria língua e com ela se comunicava com os filhos. Há nele, como no caso de
Eliot, um deslocamento para a velha Europa que lhe permite ampliar a distância
com que os irlandeses, por suas próprias idiossincrasias, tradicionalmente julgaram
a cultura inglesa.
Sob a influência de Dante, Ulysses
pode ser lido como uma descida ao inferno. Na verdade, por sua própria
admissão, Joyce queria organizar seu trabalho segundo o padrão da Divina comédia.
Ulysses seria o inferno e Finnegans Wake (1939) seria o
purgatório. O paraíso seria uma peça sobre o oceano que nunca chegou a escrever.
Mas, segundo alguns depoimentos, Joyce queria que fosse uma peça curta, simples
e diáfana, o retorno à clareza após a longa agonia da escuridão e do hermetismo.
No seu caso, porém, o modelo de Dante serve-lhe, ao contrário do que acontece
com Eliot, para tentar fugir da ortodoxia católica, sobretudo da sua ideia de
Deus, que Joyce quer reformular em termos de imanência: God is a shout in
the street. Deus não é aquela cisão ontológica criada pelo monoteísmo, mas
um grito na rua. A fuga da casa paterna e o encontro com o princípio feminino,
como acontece com Ulisses com Circe ou Calipso, supõe também uma transformação
espiritual, um trânsito da transcendência à imanência que teve que se cumprir
naquele Paraíso que ele não chegou a escrever mas isso é sentido em “Anna
Livia Plurabelle”, o último capítulo da Parte I de Finnegans Wake
dedicado a essa mãe que também é esposa e rio. Tudo isso já está prenunciado no
encontro entre Stephen e Poldy Bloom, que é o homem comum, o homem da rua com o
pé no chão que ensina seu filho adotivo a ver o mundo com humildade geradora.
Afinal, o grande tema de Ulysses é o amor, mas não um amor capital ou
sobrenatural, mas o sentimento mais comum e difícil, a caritas, aquela
que sobrevive, apesar da dor e da infidelidade, dentro do casamento Bloom.
Como podemos ver, Ulysses
continua sendo uma obra viva e instigante para o leitor do século XXI, tão
perdido em tantos aspectos. Lido hoje, o romance surpreende pelo número de
sintomas que seu autor detectou em relação às transformações pelas quais a
sociedade ocidental estava passando e que hoje já são características
dominantes de nosso mundo. Para começar, Joyce, que tinha um ouvido para o
inglês comparável apenas ao de Shakespeare, percebeu como a língua estava esgotada
e vigiada, empobrecida. Capítulos inteiros são escritos no jargão de revistas
femininas ou de publicações masculinas. No mundo de Ulysses, a
publicidade, o jornalismo e o clichê invadiram tudo. O flâneur de Baudelaire
já é, como profetizou Benjamin, um publicitário. Joyce demonstra até que ponto
a linguagem pública é degradada e explorada, a ponto de ser um instrumento de
tiranias, sem dúvida o precedente da atual imposição do politicamente correto.
A forma clássica de narrar também se esgotou porque não há mais uma linguagem
adequada para ela. A saída só pode ser a paródia, o sarcasmo, a caricatura, as
sucessivas eras estilísticas da língua inglesa se despedindo com uma última
risada. A explosão final do discurso interior de Molly Bloom é o único momento
em que a linguagem parece recuperar sua pureza. O monólogo da esposa torna-se
assim o despertar após um pesadelo de morte, mentiras e esterilidade que
culmina numa afirmação orgástica, paradoxalmente o final mais luminoso de toda
a literatura do modernism.
Mas há ainda mais sinais sobre a
inércia do nosso tempo. Joyce ousou preencher a linguagem e a vida de seus
personagens com a então quase inexplorada fisiologia dos corpos. Em contraste
com a vida mental de Stephen, Bloom incorpora toda a experiência somática,
desde comida e sexo até defecação e expectoração. Algo semelhante seria feito
por Thomas Mann em A montanha mágica (1924) e depois por Céline em todos
os seus romances. A atual preeminência do discurso biológico, que acabou com a
metafísica, já está ali anunciada e exposto com uma crueza que hoje nos
surpreende e continua a nos provocar. O mesmo acontece com os sinais de morte
que Joyce dissemina ao longo do romance de forma sinistra e insistente. Uma
nova onda de aniquilação parece se aproximar nestas páginas, como se Joyce
estivesse ecoando a carnificina que estava acontecendo na Europa enquanto ela
escrevia o romance. O enterro de Paddy Dignam, com a visão do matadouro a
caminho do cemitério, funciona neste sentido como o aparecimento de uma nova forma
de morte, agora sem redenção ou salvação possível. O mesmo que a morte bestial
da mãe de Stephen. O filho transformou a morte da mãe em morte animal,
recusando-se a rezar de joelhos ao lado dela, como ela havia pedido. Esse non
serviam acaba por transformá-lo num canalha.
Ao longo deste século, Ulysses
deixou de ser uma obra herética, proibida e censurada, como era no início, para
ser consagrada no cânone com uma autoridade indiscutível que acabou desativando
sua ferocidade até se tornar uma ruína inócua de museu e mesmo desprestigiada.
Joyce teve epígonos insuportáveis que lhe prestaram um desserviço, mas também
discípulos inteligentes e hábeis que souberam aproveitar sua influência sem se
deixar queimar por ela, como foi o caso de Samuel Beckett, que assumiu o papel
da linguagem para o extremo oposto, ou de Nabokov, para quem Ulysses
sempre foi seu grande modelo, ou o de Anthony Burgess, talvez o romancista que
soube tirar o máximo proveito do mestre sem cair em suas armadilhas. Borges
chegou a dizer que se duas obras da literatura moderna tivessem que ser salvas,
deveríamos escolher Ulysses e Finnegans Wake, como exemplo do que
Virginia Woolf chamou de “um glorioso fracasso”.
Concordemos que hoje, um século
depois de sua publicação, a influência de Ulysses é bastante escassa, para
não dizer nula. A indústria acadêmica que se dedicou a obscurecer ainda mais
seu significado foi substituída pela indústria dos estudos culturais, algo que
talvez constitua a última etapa dessa era caótica profetizada por Giambattista
Vico em um ciclo que Joyce usou para estruturar Finnegans Wake e que
Harold Bloom tomou emprestado para compor sua elegia particular para o cânone
ocidental. No entanto, enquanto esperamos o alvorecer de uma nova era
democrática, talvez possamos fazer da necessidade uma virtude. Despojadas de
sua autoridade, as obras-primas do modernism se mostram novamente como
eram no início, desafiadoras e rebeldes, prontas para transgredir os novos
limites que nossa sociedade atual, talvez sem saber, acabou impondo.
* Este
texto é a tradução de “El centenario de Ulises”, publicado aqui, em Letras
Libres.
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