Desconservar o masculino: eis a questão (1)

Diálogo com Seis balas num buraco só: a crise do masculino, de João Silvério Trevisan 

Por Marcelo Moraes Caetano 
 
“Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria” 
(Gilberto Gil, “Super-homem”)

Colagem: Loui Jover / Reprodução


 
Há muitas décadas o feminismo vem denunciando a sociedade patriarcal e machista em que vivemos. Os sofrimentos para as mulheres com esse modelo social são inumeráveis: violências físicas, mentais, psicológicas, feminicídios, assédios morais, sexuais, desvalorização, misoginia, discriminação. Este é um tema que vem a cada dia se tornando mais e mais evidente até aos conservadores aguerridos. Levá-lo adiante é essencial, e já se tornou há muito tempo uma questão de vida ou morte.

Sem nenhuma dúvida, as mulheres, por todas as desrazões do mundo, são as que mais sofrem nas teias desse arranjo cultural que tanto as cerceia e tolhe. O lugar de fala das mulheres precisa ser cada vez mais respeitado. Ninguém melhor do que elas para falarem, em primeira pessoa, do fado a que são submetidas e que tanto as oprime.

Mas, afinal, e os homens? Será que são todos os homens que se sentem confortáveis no papel de representantes sociais da opressão, da violência, da truculência, da força bruta, da barbárie que se contrapõe a qualquer processo civilizatório? Será que os homens que já não se identificam com esse paradigma – o qual, de certa forma, também lhes é imposto socialmente – não estão começando a reverberar a agenda e as pautas levantadas pelas mulheres como urgentes, num outro prisma, também para eles?
 
A primeira edição de Seis balas num buraco só: a crise do masculino, de João Silvério Trevisan, foi lançada em 1998. Seu relançamento em 2021 teve como uma das motivações a ascensão meteórica “de pretensões irracionais do tipo ´imorrível, imbrochável, incomível´, como Trevisan menciona na “Nota à segunda edição”.

A obra faz parte de um conjunto de outros textos que, entre outras metas, também se debruçam sobre o principado caricatural do bolsonarismo (que vai além da própria figura de Bolsonaro), o qual pode ser resumido como um tipo de comportamento que privilegia a vivência em clã, que, para isso, ataca de maneira despudorada e orgulhosa qualquer princípio civilizatório mais básico.

Nesse mesmo rol, estão obras como Brazil, land of past (Brasil, o país do passado), de Georg Wink, Como o racismo criou o Brasil, de Jessé Souza, A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso, Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o Brasil, de Lula a Bolsonaro, de Eliana Brum.

Meu livro Em busca do novo normal: reflexões sobre a normose em um mundo diferente foi, também, fortemente influenciado pelo contexto anticivilizatório que passou, de forma abrupta, a revelar-se sem mais o menor pudor nos discursos e nos comportamentos de parte da população brasileira que simplesmente deixou, quase que de uma hora para a outra, de sentir qualquer vergonha em assumir-se totalmente pró-hegemônica e pró-oligárquica, isto é, machista, racista, homofóbica, misógina, com ódio expresso às classes trabalhadoras e pobres.

Dialogarei com todos os livros há pouco citados em outros momentos. Isso porque, embora Bolsonaro esteja malfadado a um escaninho desonroso da história, a que pertencem muitos outros líderes mundiais empurrados pela mesma pulsão de morte e pelo gozo da destruição, que tanto têm relação com a fixação falocêntrica da masculinidade tóxica em sua essência mais conservadora e puritana, o bolsonarismo – ou como quer que essa face revelada de parte do povo brasileiro vá se chamar no futuro – não é certamente algo que “nasceu” com Bolsonaro.

Todo esse ranço apenas despertou de forma mais pujante com ele, pois encontrou momentaneamente, quase num espasmo de frenesi, uma possibilidade de expressão mais livre. Destravou-se na alma brasileira uma espécie de recalcamento coletivo pró-violência, pró-conservadorismo e pró-machismo que, a bem dizer, já assombrava o espectro de “homem cordial” desde que os portugueses invadiram o Brasil e iniciaram o seu projeto de depredação, escravização e perpetuação de poder classista e patriarcal nas terras de Vera Cruz.

Parece-me, portanto, que falar do conservadorismo à brasileira encontra uma luneta muito privilegiada ao iniciar-se falando da grande exaltação – e consequente crise – que se deflagra agora no solo do Brasil: o culto de dimensões nunca antes vistas à masculinidade tóxica e ao patriarcado em sua manifestação mais normótica possível. Isso, por si só, condensa e metonimiza todas as demais variações de conservadorismos que temos visto, não sem perplexidade, no solo brasileiro. Por isso mesmo é um ponto de partida da mais alta legitimidade.

Por ora, então, volto à leitura necessária do livro de João Silvério Trevisan, que, como ele mesmo diz, decide “peitar o desafio de reabrir as entranhas da crise do masculino”.

Afinal, “homem não chora nem por dor, nem por amor”, como canta Frejat. Trevisan completa nos lembrando: “como é pesado o fardo de ser homem, com a obrigação de ter coragem sempre, mostrar-se durão, enfrentar o mundo através da força – muitas vezes com requintes de crueldade, mas também de inconsciência, como podemos ver todos os dias pela mídia”.

O homem também é oprimido numa sociedade machista e patriarcal, e essa é a crise que esse vagalhão “conservador, cristão e patriótico”, como o bolsonarismo gosta de se intitular, acabou despertando.

Como espécie de efeito colateral, esse culto orgulhoso do poder fálico precipitou e abreviou, também, a crise desse próprio paradigma normótico. Como acontece com todas as normoses, há um momento em que, de uma forma ou de outra, tudo o que gera “sofrimentos, doenças e mortes”, como Pierre Weil se refere à normose, apresenta-se como crise concreta e, somente a partir daí, começa a desabar.

A masculinidade tóxica – assim como a masculinidade frágil – é um fardo que muitos homens já não querem mais carregar. Há aqueles que cada vez mais querem ter o direito de, socialmente, poder desenvolver sua inteligência emocional e afetiva para além do estereótipo de macho-alfa que deve se contentar apenas em dominar e ostentar seu poder opressor.

Muitas questões podem ser observadas num imenso elenco de normoses patriarcais. O terno e gravata é um uniforme que pasteuriza a criatividade dos homens diante da moda, que sequer permite que se expressem em algumas situações sociais senão por esse uniforme que torna todos absolutamente idênticos como protótipos de dominadores. Um homem não pode ganhar menos do que sua esposa, até hoje, em muitas sociedades. A sexualidade do homem é alvo de piadas nos grupos ditos normais da sociedade, como rodas de amigos, ambientes esportivos.

O menor número de homens na população humana se deve ao fato de que os homens são os que mais morrem devido a mortes violentas, como assassinatos, guerras, confrontos policiais. A quase totalidade da população carcerária do mundo inteiro (no Brasil com maior ênfase) é composta por homens. Trevisan aponta que “o censo penitenciário de 2016 revelou que a população carcerária do Brasil era composta de 94,2% de homens e apenas 5,8% de mulheres”.

Como digo em meu livro sobre as normoses, a arte é sempre um elemento profético da cultura que aponta para normoses que estão próximas de desabar. Assim, “Um homem também chora”, como lembra Gonzaguinha, que continua nos mostrando que “guerreiros são pessoas, são fortes, são frágeis”.

Nem todo homem permanece, atualmente, numa suposta zona de conforto que o consentiria exclusivamente como aquele que, se for traído pela companheira, terá de lavar sua honra socialmente com violência, obedecendo à caricatura grosseira que o compositor Falcão faz do “man´s world”, em “Vida de corno”, cantando: “Você passa a noite fora / E quem é que garante que o Ricardão / Não come a sua comida / E dorme tranquilo no seu colchão?”

Toda essa objetificação – tanto do homem (o corno), quanto da mulher (a comida) – já não condiz mais com o desejo e o bem-estar de uma parcela de homens. Trata-se de uma grande normose, ou seja, de uma normalidade que já não se adapta ao desejável ou até ao suportável para grande parte das pessoas, uma normalidade desgastada e obsoleta que cada vez mais revela seu peso sobre as mulheres – e também sobre os homens.

Nem todo homem se identifica com o “cara valente” que “não é de nada” se, por acaso, contrariando a representação social normótica que se exige dele, desejar livremente escolher o “mal-me-quer / entre o amor de uma mulher / e as certezas do caminho”, como denuncia Marcelo Camelo em outra canção. O homem não precisa ser pressionado para escolher uma mulher sob pena de ter seu bem mais precioso – seu falo, sua masculinidade – posto em dúvida.

A arte (mas não só ela) fotografa, frequentemente, um conjunto de paradigmas do passado que, olhados do presente, revelam-se puras normoses. Não é por acaso que em meu livro eu dedique tantos exemplos a obras de arte da literatura que deixaram estampadas, para a posteridade, normoses que já afligiam suas populações de então.
 
Em meu recente livro Freud e a psicanálise: primeiros contatos com a teoria e a clínica (no prelo pela Editora Jaguatirica, 2022), trato, no último capítulo (“Normose: quando ser normal é o problema”), de como a normose e a psicanálise se relacionam de maneira inevitável no projeto de desalienação da prática psicanalítica. Nesse mesmo capítulo, assim como em outros deste meu livro (como no capítulo 5: “Panorama da complexa rede da sexualidade humana em Freud e nos estudiosos posteriores”), mostro como as questões do patriarcado e seu referencial hegemônico vêm causando patologias subjetivas e sociais.

Num dos trechos, destaco: “com o tempo, o que é normal vai se transformando – sempre foi assim, as sociedades nunca são estáticas. Um exemplo é o fato de que há povos e momentos em que o homem usava cabelos compridos, e outros povos e momentos em que isso era inaceitável. Em outros tempos, mulheres não podiam, de forma alguma, usar calças. O mesmo fenômeno se dá com as questões de gênero e sexualidade. E também com as representações de papéis sociais de gênero”.

Falo também, de forma muito panorâmica, sobre os recentíssimos estudos sobre papéis sociais de gênero (protótipos/estereótipos que partem de modelos hegemônicos em direção aos periféricos ou dissidentes), identidade de gênero, orientação sexual, atrações sexual, estética, romântica, sensual, emocional, intelectual.

Citando associação médica, comento, também, como o ICD-11 (International Classification of Diseases, da World Health Organization, ou CID-11, da OMS), que entrou em vigor em janeiro de 2022, tem observado mudanças em paradigmas normóticos do passado recente que são recategorizados. Dou o exemplo da transexualidade: “Outra mudança muito significativa em relação à CID 10 diz respeito à transexualidade, que deixou de figurar na lista de doenças mentais e foi reclassificada como uma “incongruência de gênero”, em vez de “distúrbio de identidade de gênero”. Com isso, ela foi transferida para a categoria de saúde sexual”.

Ou seja, estamos diante de uma crise muito concreta dos estereótipos patriarcais, cuja metonímia, como lembra Trevisan, se assenta cada vez mais desconfortavelmente sobre o macho “imorrível, imbrochável, incomível”.

Ou seja, se não houver a discussão, inclusive por parte dos homens que vêm tomando consciência do peso descomunal da normose do patriarcado e do machismo também sobre eles, a violência, a força bruta, a opressão continuarão, mesmo que por inércia, dominando as mentes de pessoas – homens e mulheres – que as introjetam e normalizam. Isso alimenta uma normose cada vez mais patológica e cada vez mais óbvia.

Não há como compreender (verstehen) os retrocessos conservadores anticivilizatórios que temos atravessado sem que se observe (erklären) o patriarcado e a sua monumental crise.

Nesse lugar de fala, é preciso dar voz àqueles homens que também já não suportem as consequências do peso do machismo e do patriarcado. Homens que queiram se unir para se expressar de outras formas que não as historicamente cultivadas sobre eles.

É de união que se precisa falar, não de uma suposta questão que viesse a acirrar ainda mais as disparidades tão gritantes entre homens e mulheres numa sociedade em que a masculinidade tóxica e/ou frágil se espalha como uma nuvem de gafanhotos. Essa é, em resumo, a meta civilizatória: incluir todas as pessoas em expressões de convívio, não de rivalidade.

Se os homens não se conscientizarem de que são vítimas, com outras formas e expressões, da mesma normose machista que oprime as mulheres, nosso avanço nas questões da igualdade serão sempre indolentes e glaciais.

A consciência precisa continuar avançando sobre as mulheres, mas também sobre os homens.

No que se refere às consequências extremamente violentas do patriarcado e do falocentrismo sobre os homens, Trevisan lembra: “O denominador comum: os protagonistas são homens – sempre homens –, muitas vezes atacando mulheres, crianças, animais, outros homens (mais vulneráveis e em situação de inferioridade) ou a si mesmos, acossados pelo desespero”.

É preciso prosseguir na consciência de que estamos todas e todos numa mesma nave, e que ela precisa ser conduzida com mais vozes expressivas e menos opressões normóticas. 

Pesquisa do Instituto Avon/Locomotiva, intitulada “O papel do homem na desconstrução do machismo”, traz o dado de que 31% dos homens dizem que gostariam de não ser machistas, mas não sabem como agir. Esse é o número de homens, segundo a pesquisa, que DIZEM isso, ou seja, que já EXPRESSAM seu desconforto. Mas o desconforto em si não é exclusivo desses 31%.

Esse dado sugere a crise de uma normose milenar nas culturas ocidental e oriental: o machismo. Parece sugerir, ainda, que, se não houver conscientização também dos homens, as pautas feministas sempre encontrarão uma barreira maciça.
 
Outro ponto que esse dado mostra é que, mais uma vez, as lutas feministas, como tem ocorrido no seu percurso histórico, precisam abraçar as causas sociais relativas a gênero e sexualidade para elas decolarem. Sem o amadrinhamento das mulheres, as causas progressistas simplesmente parecem não conseguir evoluir além de certo limite.
 
Quando houve a epidemia de aids, no início da década de 1980, as artistas mulheres foram essenciais, porque aumentaram ainda mais a militância pelos seus públicos gays. Foi o caso da Cher, da Madonna, da Donna Summer. Levou-se ao mainstream a causa que horrorizava o mundo então. Num mundo dominado pela indústria cultural e pela sociedade do espetáculo, deixar de fora aquela causa, naquele momento, poderia potencializar o poder destrutivo da situação. Os artistas homens gays estavam sobrecarregados pelo estigma, e, se não fossem algumas mulheres artistas aumentarem suas militâncias em prol dos homens gays, esse estigma teria sido ainda mais insuperável.
 
A propósito, a epidemia de aids foi outra ferida narcísica muito recente no muro do patriarcado. Figuras do imaginário ultramasculino, como  Rock Hudson, lembrado por Trevisan, revelaram o peso da hipocrisia necessária para se conservar o mito cada vez mais apagado e decadente do patriarcado.
 
Foi nesse momento, por exemplo, que essas cantoras e artistas, e muitas outras, começaram a ter bailarinos fortes, sarados, para se contrapor à representação cadavérica que os homens com aids nas décadas de 80 e 90 tinham. Esse gay sarado entrou no imaginário da cultura LGBTQIA+ com o rótulo de “Barbie” (que hoje traz certa conotação pejorativa de futilidade), como é conhecido até hoje, mas seu surgimento foi uma atitude subversiva social de enfrentamento a uma crise da masculinidade perpassada por uma epidemia que então era inevitavelmente fatal – a epidemia de aids nos anos 80 e 90 –, encabeçado pelas mulheres. Abraçando o estereótipo do macho viril espartano apolíneo e atlético, com todos os meandros da sua representação social implacavelmente marcada, muitos homens gays desfizeram parte da estigmatização que enfrentavam nos primeiros anos daquela fatídica epidemia.
 
Até o fato de o L (de lésbica) ser a primeira letra da sigla LGBTQIA+ ocorre porque as enfermeiras lésbicas foram as primeiras que entraram na linha de frente para cuidar dos homens que morriam naquela época.
 
Se as mulheres não tivessem abraçado o movimento gay como um todo e o incluído nas suas próprias agendas feministas, parece que muito pouco ou quase nada haveria de progresso na causa gay. 
 
As mulheres, antes até dos homens, precisam ser convidadas para dialogar e ensinar aos machistas que querem se desconstruir, senão o movimento cairá no ridículo de pensamentos lamentáveis como o dos homens que querem “direitos iguais” e o “dia do orgulho hétero”, " dia internacional do homem”, que pertencem à mesma família daqueles que dizem que não há consciência negra, o que existe é “consciência humana”, ou dos que querem o “dia do orgulho branco”, ou que acreditam em “racismo reverso” etc.
 
É nesse sentido que calar-se diante dos homens machistas que queiram se desconstruir constitui um desserviço totalmente evitável.
 

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