Uma vida comum, de Uberto Pasolini
Por Solange Peirão
Causa impacto esse filme, criado e
dirigido pelo cineasta Uberto Pasolini, começar com cenas de serviços fúnebres
religiosos de crenças variadas. No espaço, o morto, o celebrante e uma pessoa
que se conhecerá mais adiante. Trata-se de John May, o funcionário público
londrino, acionado para inspecionar a casa dos que são e morreram só. A
princípio, lembra um perito procurando as provas de um crime. Paramentado,
cauteloso, vasculha o ambiente da casa, que em geral já encontra revirado. E
nessa procura, o cineasta expõe as marcas, ainda frescas, de uma antiga vida
solitária: um pote de creme com a marca dos dedos, um travesseiro afundado no centro,
um varal com calcinhas. E fotografias.
E elas, as fotografias, vão compor
a mola mestra que costura a narrativa desse belo filme. Servem para dar pistas
sobre a identidade do morto. Mas, para esse obcecado perito, são o caminho também
para localizar seus entes queridos. Afinal, ambos merecem esse derradeiro
encontro.
Em todos os casos, ou quase todos,
já que no último tudo se transforma para compor o sentido transcendente da
narrativa, os familiares e amigos localizados recusam o convite insistente do
funcionário para o funeral. Desavenças mal explicadas, era um canalha, e por aí
vão as justificativas.
E em todos eles, vai se inserindo,
aos poucos, a rotina da vidinha profissional e pessoal do Senhor May, que
analisa os documentos encontrados, faz os contatos, e se ocupa cuidadosamente
da preparação da cerimônia, como se fosse um querido seu.
Depois de repassar o que foi
reunido na casa do morto, ele compõe uma história para o oficiante ler na
celebração: um batom, um colar, um vestido vermelho, a foto da gata Suzie da Senhora
Jane Ford, as cartas que ela inventa, em nome da gata, e que num átimo de
segundo todos pensam tratar-se de uma filha. Só que a assinatura é uma
patinha...
Para completar, escolhe, na sua
coleção pessoal de CDs, a música da cerimônia. Só no último caso, aquele que
consagrará todas as reviravoltas, ele planeja usar a música escolhida no conjunto
de LPs do falecido William Stoke. E, ao higienizá-los, uma descoberta
importante vem à luz: encontra, em uma
das capas, uma sequência de negativos fotográficos. As fotos reveladas serão
decisivas na identificação de Bill Stoke.
Selando os dossiês, há sempre uma
fotografia do morto. Quando dá por encerrado o caso, coloca a pasta em um
arquivo, e separa a foto para si. E ela nos encaminha, então, para a expressão
mais bonita que desnuda a vida pessoal de May, seu mundo interior. Após a
janta, sempre composta de uma maçã, um enlatado, uma fatia de pão e um chá, ele
arranja cuidadosamente, com apoio de pinças e cantoneiras de papel, mais uma
foto em seu álbum particular.
Logo, talvez, a gente se pergunte:
o que se encontraria na casa de May, caso ele morresse? Quais as pistas nesse
espaço liso, asséptico, aparentemente sem objetos significantes? Seus mortos?
O caso derradeiro, o de Bill
Stoke, ele conduz sob pressão. Está demitido por demorar demais para chegar aos
desfechos. Os enterros, que só acontecem se há sinais de alguma crença
religiosa do morto, são caros demais. E as urnas com as cinzas, só descartadas
quando o caso está encerrado, enchem prateleiras. Na hierarquia do
departamento, o chefe grotesco, insensível, e o funcionário de controle dos
“estoques” das urnas geram algumas situações divertidas. O funcionário, por
exemplo, acha que, sem May, pode perder o emprego porque, afinal, a saída das
cinzas ficará rapidamente maior que a entrada...
O caso de William Stoke é o
substrato para o grande final. Bill é um vizinho, de condomínio, de May, vejam
só. Suas janelas dispõem-se, frente a frente. May se vê refletido na vidraça da
janela do morto, quando retorna para seu apartamento, depois da vistoria. Dispensável
explicitar qualquer comentário sobre o significado da cena...
Esse caso é especial, primeiro,
porque são as investigações que mais se desdobram e avançam. Os laços
familiares e de amizade em torno do falecido permitem resgatar uma história de
vida mais completa e complexa. Segundo, porque é nesse contexto que a vida
pessoal de May sofre a grande reviravolta. Arrisca novos hábitos, experimenta
novos sabores e descobre o amor. Ficaria para trás, a vida marcada pela solidão?
A partir daqui, é mais adequado
nada comentar. Impossível caminhar sem spoilers. Mas o filme que já é grande,
sem o desenlace, vai ficando maior. É só conferir. Está momentaneamente
disponível na plataforma do Sesc Digital, na seção Cinema em Casa.
O que interessa, nessa parte final
do texto, é comentar o que suscita em relação à Memória, História e Fotografia.
Especialistas de diversas áreas do
conhecimento, seja das Humanidades ou das Artes Visuais, já abordaram
amplamente esses temas . Não se trata de busca-los nesse espaço de forma
individualizada. Interessa, sim, registrar algumas das considerações principais
que remetem ao filme.
O primeiro ponto: a Memória é fragmentada.
Partindo dessa constatação, compreende-se que a memória individual já é seletiva,
e aponta, por meio de objetos tangíveis e das esferas pessoais intangíveis, o
que é de interesse do indivíduo. E tenta-se preencher as lacunas com as
lembranças que interessam aos grupos nos quais ele se insere, enfim, com a
memória coletiva.
Segundo: toda memória é social.
Supõe, portanto, que ela só se realiza enquanto experiência em um contexto,
seja familiar, seja comunitário, seja o da grande sociedade.
Outro aspecto relacionado é a
possibilidade, não exclusiva, do olhar subjetivo da Memória. Nesse ponto, acho
importante remeter ao objeto especialíssimo que alinhavou o filme: a
Fotografia. Há uma cena magistral em que a câmera percorre demoradamente alguns
retratos colecionados no álbum dos mortos do Senhor May. E se desvenda tudo o
que se pode dizer sobre eles, a partir das imagens. Aspectos concretos: idade,
situação de contexto, profissão, classe social, escolhas pessoais
diversas. Mas, sobretudo, o olhar,
desnudando o que vai pela alma de cada um. A isso se soma um outro olhar: o do
fotógrafo, privilegiando expressões, ângulos, luz, etc.
As lembranças em geral se
materializam em forma de relato. A memória, inclusive a que se apoia em
substrato visual, imagético, precisa de uma estrutura narrativa para lhe dar
corpo. E é em busca dessa estrutura que vai nosso John May, no filme.
E a grande beleza é que esse
funcionário público, de coração largo, que a princípio é movido pelo afeto, age
como um grande pesquisador, orientado pelos rigores que as Humanidades
estipulam. Já falamos do cuidado que dispensava no trato com as fotografias, da
recolha cuidadosa dos objetos significantes. Em dado momento, ao finalizar cada
busca, John May passeia seu olhar, reverente e silencioso, pelo espaço do
falecido que ainda guarda seus sinais vitais. Dá para entender, então, como o
título inglês do filme se encaixa perfeitamente: Still Life, quer dizer, “Natureza Morta...” E ainda se compreende que a maçã, tão clássica nessa
modalidade de pintura, é sempre o elemento presente nas refeições do Senhor
May.
O pesquisador, porém, sabe que
para se desenhar um perfil, uma identidade, fechar enfim um relato, precisa ir
além. Precisa buscar aquilo que é o mais caro aos historiadores: os documentos
escritos. E a informação pode vir de um boné com uma marca, das cartas, dos
bilhetes espalhados pela casa, ou então de documentos jurídicos armazenados nos
arquivos públicos.
Esse circuito completo de
investigação John May realiza no seu derradeiro caso. É possível que os
profissionais da Memória, da Arquivologia e da História reconheçam esses passos
e saboreiem melhor o filme.
Quanto à Fotografia, o que nos vem
à mente são as palavras encantadoras de Roland Barthes, em sua obra A câmara clara
(1984, p.121):
“De um corpo real, que estava lá,
partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou aqui: pouco importa a
duração dessa transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como raios
retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o
corpo da coisa fotografada.”
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