Uma pasta de achados e perdidos
Por Pedro Fernandes
Roberto Bolaño. Foto: Giovanni Giovannetti |
Tardou o tempo necessário para que
os leitores brasileiros entrassem em contato com A Universidade
desconhecida, de Roberto Bolaño, que nos chega através do exímio trabalho
de tradução já reconhecido de Josely Vianna Baptista. Trata-se de um livro
póstumo organizado pelos herdeiros responsáveis pelo arquivo do escritor,
singularizado por Carolina López, a última mulher com quem ele conviveu.
Embora, a generosa antologia reúna algum trabalho que Bolaño deu forma final,
como os textos de “Gente que se afasta” apresentado como Amberes
(Anagrama, 2002), e outros conjuntos tenham servido para pleitear algum lugar na
concorrência dos vários prêmios literários que buscou, grande parte do material
é inédita e foi organizada a partir de várias pistas deixadas por um homem assombrado
com a morte e com o desamparo de um filho em criança.
Não tanto a crítica mais
sistematizada pelos dogmas da teoria, mas se reitera com cada vez mais senso de
verdade, não sem certa ignorância que a poesia ou qualquer outro gênero para designar
uma obra (ou mesmo o gênero literário) é uma etiqueta que o escritor pode se
valer ao sem entender. A literatura, sabemos, é um manancial de disparates. O
escritor, como qualquer outro leitor, é livre para fazer as afirmações e acreditar
nas definições que quiser; espanta é a crítica comprar esse saber como verdade
inconteste, desfazendo-se, veja bem, de uma das suas funções, construir alguma
ordem entre o complexo emaranhado de sandices e sistematizar esse imenso
manancial construído pela liberdade criativa. Não quer isso dizer,
esclareça-se, que a crítica é uma determinante e detentora da palavra final
sobre o fenômeno poético; é possível que seja uma linha a mais na aporia,
entretanto, sua tarefa é problematizar o controverso, abrir possibilidades
melhor ajustadas para os leitores. Em miúdos, o escritor escreve, o crítico
critica. Quando esses lugares são trocados, o resultado nem sempre é, por
limitações próprias do saber, convincente e facilmente questionável.
O livro de Roberto Bolaño publicado
apenas quatro anos depois da morte do escritor é, desde sempre, referido como
poesia. É assim que se identifica desde à entrada — como se o termo fosse uma
placa para os desavisados que só então sabiam do romancista. O designado não
partiu da crítica, parece, nem dos organizadores do material aí reunido; esses
apenas compraram, sem grandes resistências, a definição aposta pelo autor dos
escritos, quem, aliás, confessou publicamente reiteradas vezes o apreço pelo
gênero em relação à prosa e a aspiração de ser reconhecido como poeta e não
como ficcionista. E, se considerarmos algumas das predileções poéticas — muitas
delas direta ou indiretamente referidas em A universidade desconhecida,
diríamos que Bolaño lutou para pertencer a estirpe dos poetas de vanguarda
latino-americanos. Isso fica visível ainda em várias circunstâncias de sua obra,
que, embora se repita nos mesmos temas (o próprio ofício, os amores, certos
cotidianos) e certas figuras (o tira, o corcunda, a adolescente inconsequente, os
artistas de convívio), é sempre marcada pela presença no seu interior de uma
variabilidade formal, isso que também acrescentamos ao que chamamos por
obsessões da criação.
O caso é que entre se afirmar
poeta e ser poeta existe uma longa distância. E pouco importa que o candidato tenha
levado a vida inteira a tentar o ofício. Não se forma poeta — ou qualquer outra
profissão — pelo cansaço da autoafirmação. O poeta Roberto Bolaño não conseguiu
ficar ao lado dos poetas chilenos, ainda que em seu país, tenha se estabelecido
uma rica variedade criativa que se assume em resposta aos modelos que ficaram
reconhecidos universalmente — pensamos, claro está, na tradição vanguardista individualmente
atuante a partir da negação dos modelos de poesia praticados por uma Gabriela
Mistral e um Pablo Neruda. O fracasso de Bolaño talvez nunca tenha sido
admitido, seja porque nas várias entrevistas confesse seu interesse em ser
poeta sem aceitar nas recusas — que sempre lhe foram persistentes — como verdadeiras,
seja porque até os últimos dias de sua vida teimou em organizar o livro de
2007, seja porque nesses instantes finais continuou a tentar vestir o papel de
poeta com o qual conseguirá enganar alguns pela emotividade empregada para fazer
as tintas dos seus últimos textos mas que nunca conseguiu trajar naturalmente.
As primeiras tentativas para o
controverso livro datam de final dos anos setenta do século XX, quando Roberto
Bolaño organiza um arquivo com esse título, La Universidad Desconocida,
reunindo textos situados entre 1978 e 1981; segundo Carolina López, na nota
escrita para a edição final, trata-se de uma versão anterior a 1984, uma vez
que numa das cópias, o datiloscrito se apresenta como “Concorrente ao prêmio
Villa de Martorell 1984”. A partir de então, o livro se tornou uma espécie de
arquivo aberto, sempre pronto para receber novos textos; poderíamos chamá-lo de
livro-rizoma, se considerarmos que as visitas realizadas pelo escritor ao
centro dos primeiros escritos contribuem para a formação de outros textos ou
ainda que outros livros ou brotos deles, pensados independentes, encontraram a
possibilidade de se enganchar num projeto que tanto teve seu fim adiado que se
viu tragado pelo próprio fim. Isto é, o arquivo permaneceu indefinidamente
aberto.
À medida que as fronteiras dessa
universidade se expandiam, perdia-se uma unidade como livro para se tornar algo
como uma bíblia ou o centro irradiador de interesses criativos, fosse de temas,
situações, episódios, diálogos, ideias, interesses dos mais variadas, incluindo
os de fazer uma poesia de vanguarda etc. Podemos pensar que esse espaço se firmou
como uma instituição imaginária com sentido literal para o que significa os termos
postos: é este um centro de formação, com alas das mais diversas, visível até
então apenas pelo escritor quando de alguma maneira materializa o pensamento em
palavra escrita e que agora se oferece ora como um baú de curiosidades ora como
o caminho possível para deslindar certos detalhes de funcionamento do restante
da obra.
Além de tudo, a miscelânea de
textos de A universidade desconhecida, em grande parte organizados em
linhas dispersas como se um verso, noutras, como pequenas anotações ou mesmo contos
— pela unidade narrativa — se ora é feita em contato com o vasto universo ficcional
engendrado por Bolaño, ora se organiza muito rente com a própria vida do
escritor, assumindo, por vezes, ainda que sem o trato de um eu confessional, certa
função do diário. É quase possível reconstruir os interesses, a relação
angustiada com a literatura, as decepções e as recusas, os muitos amores
perdidos e encontrados, a vida difícil numa Barcelona que, nas suas palavras, o
assombrava e o instruía, o desconcertante lugar que o México, o Chile e a
América Latina ocupa no seu espírito, sempre entre muita reminiscência da
adolescência como um tempo eterno e aberto para descobertas, os empregos que
precisou se submeter para subsistir, a estadia na Itália, a paternidade descoberta
numa altura muito próxima da certeza da morte. Ou seja, eis um catálogo com
todas as pistas para um biógrafo que se interesse por recontar a vida de um
homem que se tornaria na saída desse mundo um dos nomes mais importantes para a
literatura chilena do século XX.
Ao acentuar os detalhes interiores
dessa universidade — também pela pluralidade de matérias que contemplam
a um só tempo a vida, as obsessões criativas e a obra — cada vez nos
distanciamos mais de que estamos em contato com um livro de poemas e este só se
admitirá se reduzirmos a poesia ao centro irradiador de toda literatura, o gênero
genesíaco. Quer dizer, as metamorfoses que se acumulam a partir das primeiras
sete seções que foram as primeiras pensadas para ser um livro de poesia e que
certamente se tornou um monstro de muitos braços para Bolaño aos poucos se
estabelece com a mesma força para o leitor.
Agora, a pergunta que obviamente ronda
a todo instante é qual seria a concepção de poesia favorável ao escritor que
mesmo depois dessa descoberta — e dos sucessivos fracassos como poeta (vale
recordar a publicação de Reinventar o amor, seu primeiro livro, Os
cães românticos, Três, para citar algumas outras investidas) — continuar
apostando no seu catálogo de coisas como poesia. A resposta pode ser diversa e
não caberia numa matéria simples como esta. Parece visível, entretanto, que
Bolaño jamais conseguiu se desvincular das experiências construídas aquando da
sua estadia na Cidade do México dos anos 1970. Isto é, o adolescente e mais
adiante o jovem que se acreditava parte importante da vanguarda de poetas
malditos (note bem o descompasso temporal) que ele próprio deu a conhecer como
infrarrealistas; algo disso está disperso por todo o universo ficcional do escritor
chileno, principalmente, como observa a crítica especializada, em Os
detetives selvagens.¹
Alguns caminhos interessantes, que
partem e levam a esse rico período de formação criativa de Roberto Bolaño, podem
ser encontrados fora de A universidade perdida. Javier Campos em “O
Primeiro Manifesto Infrarrealista, de 1976: seu contexto e sua poética em Os
detetives selvagens” (Sibila, abril de 2009) cita três artigos que
Bolaño escreveu sobre poesia para a revista mexicana Plural e que datam
do mesmo período de quando aparece a primeira versão do que agora chamamos de
grande catálogo²; ressalte-se, antes, a antologia organizada pelo autor de A
ficção nazista na América Latina, intitulada Muchachos desnudos bajo el
arco-íris de fuego. A este material, Campos agrega o manifesto referido no
título do seu ensaio compartilhado por um dos integrantes do grupo de Bolaño,
Rubén Medina. Essas referências em síntese poderão revelar algo do conceito de poesia
que aqui nos interessa.
O que até então se viu como uma
aproximação dos vanguardistas mexicanos do começo do século XX, é deslindado
por Javier Campos — principalmente pela leitura do manifesto — como “um
reprocessamento atualizado, naqueles anos 1970, de toda poética surrealista do
final do século XIX e princípio do XX, mais a forte influência de dois grupos vanguardistas
latino-americanos dos anos 1960-70.” Essas outras vanguardas eram Los
Tzántzicos, o grupo equatoriano fundado por Marco Muñoz e Ulises Estrella fez “uma
poesia de denúncia combativa e revolucionária” de limite tão extremado que se
negou a publicar seus poemas e “o grupo peruano Hora Zero, que em 1971 se definia
como ‘construir o novo — destruir o velho’”. Essas são, portanto, as fontes
para alguma possibilidade de apontar o que era a poesia no horizonte de expectativas
do infrarrealista.
Para Campos, “o poeta
infrarrealista devia subverter o cotidiano por meio de uma imaginação
igualmente subversiva para descobrir mundos novos. O poeta devia ser um
franco-atirador, um aventureiro. Devia ter outra maneira de olhar, oposta ao
olhar complacente do burguês. O poeta devia fixar-se no diverso do mundo, em
especial na diversidade da urbe, assimilando-a em sua poesia. O poeta devia
criar usando os níveis inconscientes, sobretudo o onírico.” Tudo isso é
sintetizado por Bolaño nos referidos artigos dos anos 1970 com a ideia de que a
poesia deve ser o agora.
O infrarrealismo não se apagou;
vingou como movimento nascido por uma confluência de acasos da mente inquieta
de um grupo que quis encontrar caminhos próprios entre as práticas poéticas
vigentes, fosse as vanguardas latino-americanas, fosse a Geração Beat nos
Estados Unidos, fosse o vanguardismo europeu. Nada disso os servia; tudo isso
os serviu. Agora, pensar que o movimento tenha se firmado enquanto um modelo criativo
capaz de renovar os destinos da poesia moderna parece facilmente questionável, ainda
que a nova poesia tenha se interessando pelo miúdo do cotidiano ou a
evanescência do contemporâneo, seguiu outros caminhos mais autocentrados na
linguagem e sua sintaxe e não numa combinação entre a agoridade mental e
factual. Mesmo se considerarmos a pouca obra deixada por seus
participantes — com Bolaño, estiveram desde a formação Rubén Medina e Mario
Santiago³ — encontramos muito mais um anacrônico malditismo emulado de Rimbaud
ou Lautréamont que a dicção de uma nova e inovadora poética. Talvez se
justifique então mais como uma posição assumida pelo escritor para com a criação
que a criação propriamente dita, visto que, esta parece seguir protocolos
criativos conhecidos noutros movimentos e o da Geração Beat é o mais visível. “Gente
que se afasta”, o referido livro dos anos 1980 que se fez uma seção de A
universidade desconhecida foi composto como recupera seu autor na
correnteza do seu entusiasmo com a leitura de William Burroughs.
Este livro de Roberto Bolaño, A
universidade desconhecida, talvez pudesse garantir alguma sobrevivência da
ideia de movimento e o conceito de poesia infrarrealista justifica extensa
parte do que aí se denomina poesia, mas toda vocação de Bolaño resulta
exclusivamente na prosa e os textos que imitam a possibilidade de um poema
estão profundamente marcados de uma força sentimental de corar qualquer poeta
maldito. Não que os malditos sejam intocados pelo sentimento, mas certamente
não são do seu feitio a mélica. Até mesmo o que seria experimentalismo poético
é parte naquela condição que se faz universal a do jovem criador, quem, ainda impossibilitado
de adestrar suas forças interiores, finda construindo produtos mal-amanhados,
afinal, a centelha do gênio toca um só homem em toda uma era; o resto é devoção,
talento e esforço.
Machado de Assis tornou público em
1893 o conto “Um homem célebre”, em A estação — depois acrescentado ao
livro Várias histórias, em 1896. Nele, encontramos um pianista famoso
por suas polcas, um tipo de composição popular nos salões do Rio de Janeiro
afrancesado, vulgar quando colocada ao lado das peças eruditas. Enquanto a
sociedade o celebra como um exímio músico, ele se angustia por não conseguir
compor a obra capaz de o catapultar para o lado dos grandes criadores
clássicos. Por mais que se esforce, e a inspiração chegue a ressoar apontando
para que, enfim, consiga o feito, não adianta: é outra polca que o piano
devolverá ao artista. Toda vez que saímos de um poema de Roberto Bolaño
e entramos no seguinte é a voz do prosador que havia fechado a porta saída quem
nos saúda na porta de entrada. Esse drama íntimo foi levado, como dissemos até
as últimas consequências.
Como consolo, o escritor chileno forjou
uma saída para o fracasso admitindo-o no rol dos grandes feitos; foi buscar o
consolo nos dizeres de William Carlos Williams para quem, dada a mobilidade, a poética
vanguardista “deve sempre falhar”, “deve sempre se mover para manter fora
de sua própria merda”. Quer dizer, retornamos à ideia, segundo a qual, a poesia
é um território movediço, porque uma zona de experimentação, e o fracasso seria
uma predisposição de sua natureza prevista desde sua própria origem, uma vez
que, que todo experimento está duplamente motivado para a realização ou o fracasso.
Mas, insistimos que isso parece ser uma alternativa muito cômoda para querer
filiar qualquer coisa como poesia ou literatura. (A literatura latino-americana
está repleta dessa alternativa — que o diga Mario Levrero). É óbvio que Bolaño não
se interessa se filiar no rol do eruditismo ocidental (sabe-se que no tempo de
infrarrealista aborrece-se com as tentativas latino-americanas de vanguarda,
incluindo Nicanor Parra a quem depois considerará como sua influência), nem no
academicismo, mas uma polca nunca deixará de ser uma polca ainda que se passe a
chamá-la de noturno.
Notas
1 No texto que Javier Campos referido
no parágrafo seguinte, o pesquisador anota que Roberto Bolaño muda-se para a
Cidade do México com a família aos quinze anos; viveu até aos vinte anos quando
regressa ao Chile de Salvador Allende e tão logo se instala o golpe militar no
seu país natal muda-se outra vez para a capital mexicana de onde só sairá aos 24
anos para Barcelona. Soma-se, assim, quase uma década — “a parte mais
fundamental da sua formação de poeta e prosador”.
2 Os três artigos citados por
Javier Campos são: “El estridentismo” (1976); “Tres estridentistas” (1976) e
“La nueva poesia latino-americana” (Crisis o renacimiento?) (1977). Estridentista
se refere à vanguarda surgida em 1921 na Cidade do México com Manuel Maples
Acre que combinava aspectos do vanguardismo europeu do futurismo, cubismo,
dadaísmo e surrealismo.
3 Foram várias as fases do
movimento, dada as variações históricas do período — não esqueçamos os
terríveis anos das ditaduras na América Latina — e as idas e vindas do próprio
Bolaño. Na Infra. Revista Menstrual del Movimiento Infrarrealista,
juntam-se José Peguero, Bruno Montané, Carlos David Malfavón e Javier Suaárez Meji.
José Vicente Anaya, outro integrante, elenca vinte poetas fundadores do
infrarrealismo; além dos citados, Juan Esteban Harrington, Jorge Hernández,
Rubén Medina, Ramón Méndez Estrada, Cuauhtémoc Méndez Estrada, Lisa Johnson,
Mara Larrosa, Vera Larrosa, Pedro Damián Bautista, Victor Monjarás-Ruiz, Guadalupe
Ochoa, José Rosas Ribeyro, Estela Ramírez e Darío Galicia.
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