Futebol de literatura periférica
Por Wagner Silva Gomes
Ilustração: Giovanna Jarandilha. |
Pasolini, escritor, poeta e
cineasta italiano, escreveu em 1971 o ensaio intitulado “O futebol”. Nele o
escritor analisa as diferenças entre o que ele chama de futebol de prosa
(cerebral, esquemático, técnico) e futebol de poesia (imprevisível, gingado,
inventivo). Ele diz que o primeiro tipo de futebol tem mais a ver com a
realização europeia e o segundo com a realização latino-americana, mais
especificamente a brasileira. Refiro-me a Pasolini pra trazer a minha
constatação de que há um futebol de literatura periférica (esquemático e
imprevisível; cerebral e gingado; técnico e inventivo) que, para além dos
gêneros literários narrativo e lírico, é realizado por uma literatura em que as
palavras e frases são pensadas, enchidas, energizadas, por construtos estéticos-sociais
(escola de samba, dança de quadrilha, futebol, capoeira, música, principalmente
o rap, a cultura hip-hop em geral etc.) realizados e exercitados fortemente
pela coletividade de uma comunidade periférica. Articulo aqui o conceito de
construto estético-social me remetendo de forma livre ao ensaio “Desartificação
da arte e construtos estéticos sociais” (UFMG, 2012), de Rodrigo Duarte.
Para esse futebol, Zumbi, histórico
líder do quilombo dos Palmares, é referência de resistência e consciência negra,
pois os construtos estético-sociais se dão em articulação com demandas e
vivências coletivas nas comunidades majoritariamente negras. O esquemático
desse futebol é o envolvimento coletivo em circularidade, por isso a prática
artística dessa literatura se realiza por meio do rap, do slam, do teatro, do
cinema, dos livros (e outras formas de jogadas ensaiadas, construtos estético-sociais
que surgem em cada contexto). Exemplos dessa literatura de futebol periférico de
vários tempos são Filipe Ret (rap), César MC (slam e rap), teatro (Bando de
Teatro Olodum), Cinema Também é Quilombo (festival de cinema realizado de forma
virtual), Carolina Maria de Jesus (livro – tanto prosa quanto poesia). Quando
esses escritores jogam em casa tratam de suas comunidades (Ret joga no Catete,
Rio de Janeiro; César MC joga no Morro do Quadro, Espírito Santo; Bando de
Teatro Olodum joga no Pelourinho, Bahia; Carolina Maria de Jesus joga na favela
do Canindé, São Paulo). Quando não jogam em casa, a exemplo do Festival Cinema
Também é Quilombo, os futebolistas da literatura periférica usam assim mesmo
palavras e frases, imagens, que trazem os conteúdos das jogadas ensaiadas e dos
construtos estéticos de sua comunidade para jogar em outros campos. Dessa
maneira, a prosa desse futebol, de alguma forma, implicitamente ou
explicitamente, está fundada na história da comunidade de onde o artista nasceu
e se criou.
No quesito inventividade, ginga da
poesia, a comunidade é que forma a realidade do sujeito poético. É uma poesia
que bebe de tópicas da ancestralidade africana que são atualizadas em metáforas
que envolvem vivência com construtos estético-sociais. No meu primeiro livro,
por exemplo, intitulado Classe Média Baixa (2014), narro parte da
história da comunidade de Mangue Seco, onde sou nascido e criado, lidando com a
transformação econômica e social gerada pelos dois governos Lula (PT),
destacando principalmente o ingresso em massa de jovens negros nas
universidades e como está sendo realizada a passagem na ponte que liga a periferia
à universidade. Quando fui dar um nome ao protagonista desse livro me veio uma
frase muito forte que se colocava em minha mente como algo sussurrado por
alguém que me lançava uma missão. Essa frase é “Tom Maior”, que é o nome de uma
música do Martinho da Vila onde o sujeito poético observa a gestação de sua
companheira e conta como irá ensinar o filho a viver na sua comunidade, como é
a vida ali, dizendo que ele “Vai ter que amar a liberdade/ Só vai cantar em tom
maior/ Vai ter a felicidade/ de ver um Brasil melhor”. O nome da personagem não
me veio de referência de livros, me veio da música, me aparecendo como uma
tópica imprevisível, coisa de poesia, de um construto poético periférico (o
samba), me lembrando da vivência de ver e ouvir meu pai cantando, dele me ver e
pedir para eu prestar atenção no que estava sendo dito na música, que é
importante, e que aquilo ali era poesia. O Luiz Antônio Simas, historiador,
compositor, babalaô, na palestra intitulada “Encontro entre Walter Benjamin e o
Caboclo da Pedra Preta: o espaço escolar a contrapelo”, realizada na FGV,
destaca a importância de lidar com a gramática dos tambores na educação
escolar. Diz ele que determinada frase rítmica do tambor, a base rítmica do
batidão do funk carioca, é o toque de Xangô, o deus da justiça para as
religiões de matriz africana como a umbanda e o candomblé. Lembra-nos Simas que
ao emitir aquela frase, aquele toque, se está entrando na história de Xangô,
evocando o seu poder, a sua vivência. Dessa forma, quando pensei na frase “Tom
Maior” para o nome da personagem de meu romance, eu recorria para além do
construto estético do samba à ancestralidade da mitologia dos orixás. Para mim
isso foi imprevisível, me veio como poesia, como missão, e eu sabia que aquele
nome era uma peça importante no time do meu livro, como um jogador, que eu
deveria colocar na circularidade do campo para assim fortalecer o esquema, e
consequentemente a resistência.
A escola tem sido primordial para
o futebol de literatura periférica. Um governo que valorize a construção de
escolas, a efetivação dos professores, o aumento no número de vagas, programas
contra a evasão escolar, programas para a melhoria do ensino e para o incentivo
à formação dos professores faz essa literatura dar saltos nos índices de bom
desempenho. O rapper Mano Brown, quando entrevista o Djonga (Spotify, 2021),
cita que a sua geração de rappers, que surgiu no final dos anos 80 e início dos
90 do século 20, em sua maioria tinha estudado até a segunda ou terceira série.
Essa geração em sua maioria fazia um rap mais próximo da cultura oral, com
forte conteúdo crítico e vivencial, mas que se afastava dos recursos poéticos
da literatura escolar. Rappers que tiveram projeção na segunda década do século
21, como Djonga, Emicida, Criolo, Rincon Sapiência, BK, Fróid, trazem conteúdos
provindos de conceitos da história, da sociologia, da filosofia, da psicanálise
etc., aplicados em recursos mais propriamente poéticos da literatura escolar,
por terem avançado por mais anos na educação regular, terminando o ensino médio
e alguns até indo além (Djonga estudou na Universidade Federal de Minas Gerais;
Jhon Conceito formou-se em jornalismo; Renan Inquérito faz doutorado).
Um poema do final dos anos 70 que
anteviu muito do que é o futebol de literatura periférica é “[esse jeito]”, do
livro Régis Hotel (1978), de Régis Bonvicino, que transcrevo aqui mas
atualizando alguns versos. Segue o poema e a atualização em negrito:
esse jeito
de meia-armador
(cerebral
distante)
(reinante)
é pra disfarçar (realizar)
a vontade
de ser
goleador
poeta
centroavante
Esse poema se dá em uma prancheta
concreto-marginal onde se visualiza no esquema de jogo no número de versos de
cada estrofe (esquema 4/3/3) e a dinâmica de jogo na métrica de cada verso (3532
/ 532 / 423), como analisado pelo crítico Wilbert Salgueiro em sua análise do
poema (Rascunho, 2021). Nele se nota a influência da literatura marginal
(coloquial, gingada, elíptica — notada na irregularidade métrica de fraseado
que se apoia no modo cotidiano de falar — “esse jeito” “é pra”) que se firma na
base visual elíptica e cerebral da poesia concreta. A elipse é o eixo que une
literatura marginal e poesia concreta. Assim, no futebol de literatura
periférica não há disfarce que não seja literal. Troquei a palavra “distante”
por “reinante”, na primeira estrofe, pra mostrar a influência negra metafórica
do rei Pelé, tomado aqui como um líder negro, como vários que vieram da África
(Zacimba Gaba é um exemplo), reis e rainhas que aqui usaram de suas influências
e, como o rei Pelé, conseguiram articular as jogadas de resistência em seus
devidos campos. Na última estrofe troquei a palavra “disfarçar” por “realizar”
porque o meia-armador, conduzindo sua liderança de líder negro também realiza a
sua vontade de ser (livre, aceito, valorizado, respeitado, premiado, homenageado
etc.) mesmo que não seja ele mas um igual que conclua a jogada. Da mesma
maneira que no poema de Régis há nessas narrativas de futebol de prosa e de
poesia da literatura periférica, em engendramento com construtos
estético-sociais em seus vários ramos de arte, um narrador que conduz a
influência reinante de um líder, às vezes como técnico, às vezes como
meia-armador, e há um sujeito poético que recebe a bola e dá seguimento a
jogada passando a bola para outros sujeitos.
Há nesse futebol de literatura
periférica uma qualidade de ensaísta, de quem discute, de quem se vale de
conceitos, de esquemas, os criticando e formando outros esquemas sintetizados
em situações cotidianas, valorizando o transitório da vida em prol da
permanência de um entendimento, de uma resistência, como é pensado por Theodor Adorno
e como eu faço aqui. Na linguagem desse futebol, o visual é importante porque
uma imagem vale mais que mil palavras, é fato, mas, mesmo a imagem é por
palavras, pois parafraseando o professor Sérgio Amaral, meu professor na
pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, onde curso
mestrado, uma imagem não dá conta do conteúdo de mil palavras. Por isso os
livros, cds, slams, usam do visual de capa, do visual de gestos, para comunicar
um pouco mais, pois assim desperta quem é mais ligado a outro construto
estético-social e só a partir dele vai entender o recado cifrado de como irá
realizar a condução da jogada. Em meus livros todas as capas trazem imagens
fortes, e dificilmente se acha um livro de literatura periférica com a capa
toda preta, ou toda vermelha, a não ser que seja conceitual, pois aí o chapado
da cor fará sentido (John Conceito, por exemplo, tem um livro intitulado Depois
do Nada (2016), onde a capa é toda marrom, de papelão. Pelo conteúdo eu entendo
que conceitualmente faz lembrar um tijolo de casa sem reboco, como são muitas
em periferias – às vezes é esse construto estético da arquitetura periférica
que irá despertar mais fortemente a sensibilidade do leitor para a importância
da condução da obra).
Por fim, cê qué ver uma coisa. Sabe
aquela ponte que liga a periferia à universidade, que falei lá em cima ao
tratar do meu primeiro livro, intitulado Classe Média Baixa, ela está
abordada em um desenho da Marília Carreiro, poeta, escritora, líder da Editora
Pedregulho. O desenho mostra o Mangue Seco, minha comunidade periférica, como
um coliseu, sendo uma baixada ao nível do mar rodeada por morros (Morro do SESI
e Morro do Meio, e sua própria encosta em Porto Novo; e do outro lado, separado
pela baía de Vitória, há a montanha do maciço central, que carrega abaixo
comunidades como Bela Vista, Morro do Quadro, Alagoano). A Marília desenhou a
ponte da passagem, ponte próxima à universidade e bem longe da periferia, ligada
direto à última. Trabalhando discursos sobre a imagem desse coliseu faço no
livro saudações às comunidades do Alagoano e do Morro do Quadro. Desse
despontou nos últimos anos o César MC, slamer e rapper que lançou o disco Dai
a César o que é de César (2021). O César pode não ter lido o meu livro, mas
tenho certeza que ele compartilha comigo de muitos dos mesmos construtos estético-sociais
(compartilhamos, por exemplo, de vivências com o Coral Serenata, do colégio
Mauro Braga, localizado em Santa Tereza, próximo ao Morro do Quadro — onde dei
aula e onde ele gravou o clipe “Canção Infantil”; alunos meus daquele tempo atuaram
como atores e atrizes do clipe). Assim, realizamos em nossas artes construtos
estético-sociais que trabalham a condução da emancipação das periferias no mesmo
cenário da baía de Vitória.
* Este texto é resultado de uma palestra na Escola EEEM Mario
Gurgel
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