Escrever, de Marguerite Duras

Por Paula Luersen

Marguerite Duras. Foto: Hélène Bamberger.


 
Chega às livrarias nesse final de 2021, pela Editora Relicário, a coletânea de textos Escrever de Marguerite Duras. É um livro mandatório para os leitores da autora. A força arrebatadora presente em obras como O amante e Hiroshima mon amour aparece ali concentrada, com precisão e franqueza ímpares. Cada texto contribui para o panorama de uma atuação que se desdobrou em ensaios, roteiros, peças, romances, colaborações e direções de cinema. Mas não à toa o primeiro texto, “Escrever”, é também o que confere título ao conjunto. Meias palavras, relatos desinteressados ou quaisquer subterfúgios são dispensados nesse ensaio, dando lugar a um autorretrato de Marguerite, inteiro e sombrio, como uma mulher escritora no contexto do pós-Segunda Guerra.
 
Antes de comentar esse ensaio em específico, cabe sublinhar que o livro chega em um momento interessante para os leitores brasileiros por diversos motivos. No ensaio “O número puro”, por exemplo, Marguerite coloca uma reflexão importante a respeito da crise política e ética no período da guerra, tema que se relaciona de maneira inevitável com a realidade política brasileira que leva a tantos mortos durante a pandemia de coronavírus. Ao mesmo tempo, com “A morte do jovem aviador inglês” ela mergulha em uma poética ponderação a respeito da morte prematura. Suas palavras não deixam de ecoar naqueles que tiveram alguma ligação com o desastre da Boate Kiss, cujo julgamento acontece enquanto escrevo, no final de 2021.
 
Assuntos como esses são de abordagem difícil e quem sabe apenas partindo da ficção possamos encará-los sem sucumbir à dureza dos fatos. Citei a força arrebatadora e poética da escrita de Marguerite pois penso que ela atua nesse sentido, sendo capaz de endereçar o tema da morte de maneira contumaz, sem desviar, contudo, os olhos da vida. Uma máxima, eu sei, mas que funciona de maneira sensível na relação entre os fatos.
 
O livro compõe uma coleção que possibilitará ao leitor vislumbrar diferentes épocas da vida e obra da escritora francesa, a partir da cuidadosa seleção realizada pela Relicário. A capa de Escrever traz o rosto da autora em uma fotografia de Hélène Bamberger, em escolha que indica que o conteúdo do livro pertence a um período tardio da vida de Duras. Mesmo sem atentar à foto, contudo, saberíamos estar em contato com escritos marcados pela maturidade, cujas linhas deixam transparecer a todo momento um tom de balanço.
 
Repensando obras e revolvendo as próprias lembranças, a autora imprime em Escrever seu estilo mordaz e contundente de enunciar experiências. Algo extensivamente trabalhado dentro de seus romances e que nesse texto específico se converte em fala direcionada ao leitor.
 
Por alguma razão, fui levada pela leitura do ensaio a revisitar outra obra da autora: o parágrafo inicial de O amante. Sempre prezei a abertura desse romance e penso que ela expõe um importante matiz da literatura durassiana:

“Certo dia, já na minha velhice, um homem se aproximou de mim no saguão de um lugar público. Apresentou-se e disse: ‘Eu a conheço há muito, muito tempo. Todos dizem que era bela quando jovem, vim dizer-lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua juventude, que eu gostava menos de seu rosto de moça do que desse de hoje, devastado’.”
 
Algumas linhas depois, a voz narrativa arremata: “Muito cedo na minha vida ficou tarde demais”.
 
É desse tipo de intensidade e de dureza que é feito Escrever. Duras faz emergir a escrita como ato necessário àquele que se equilibra no limite de uma devastação — para usar o termo caro à autora. Escrever para não morrer, eis a lógica. Não existe no ensaio algo que sirva ao explicativo, ao didático, ao protocolar. Tudo o que está na página arde, vibra, arranha o limite.

“Acho que muitas pessoas não seriam capazes de suportar o que digo, elas fugiriam. Talvez por esse motivo nem todo homem seja escritor. Sim. É esta a diferença. É esta a verdade. Nada além disso. A dúvida é escrever. Portanto, é o escritor também”.



 
O ofício da escrita só se sustenta, do ponto de vista da autora, em pleno fazer. Mais do que uma função, profissão, posição social, o que define o escritor é o ato solitário da escrita. A dúvida sobre escrever que é a dúvida sobre o escritor se recoloca a cada novo lance. Uma bela formulação: se é escritor somente na medida em que se escreve. E é nesse sentido que o balanço feito por Marguerite não dá conta de uma retomada cronológica ou histórica da sua figura como artista, mas como atenção ligada aos espaços mínimos, aqueles que ocupou quando munida de papel e tinta. Ela trata do conjunto de hábitos, do material em torno do fazer. Fala da escrivaninha, da casa onde escreveu seus últimos livros. Fala principalmente da casa, pois a casa é o corpo, o espaço do entorno que ajuda a trabalhar a escrita. Sem ele não haveria ofício. Há uma beleza em não se distanciar daquilo que é o fazer, do tremor que é escrever em tudo que o ato guarda de jubiloso e de assustador.
 
Assim, não é surpresa que o maior dos temas de Duras nesse texto seja a solidão. Pois a escrita é fazer solo e a solidão é também um limite: “Essa solidão real do corpo se torna outra, inviolável, da escrita. Eu não falava disso com ninguém. Nesse período da minha primeira solidão já tinha descoberto que escrever era o que eu devia fazer”. Ou, em outro trecho: “Como eu escrevia, era preciso evitar falar dos livros. Os homens não suportam isto: uma mulher que escreve.”
 
Não é que Escrever não traga os amantes, a cidade, as paisagens, o lago, a luz. Sim, os amigos são citados. O filho, sucessor na casa. Mas tudo isso é mencionado apenas para corroborar o quanto o momento e o resultado da escrita seguem invioláveis: “As mulheres não devem deixar os amantes lerem os livros que elas estão escrevendo”; “Quando havia muita gente eu ficava ao mesmo tempo menos sozinha e mais abandonada.”
 
Escrever é recolher-se em um escuro difícil de nominar. E a autora afirma mais de uma vez a marca deixada pelo medo do escuro da casa. Ainda assim, o que fica às claras é não existirem outras saídas possíveis para habitar o tempo, outras soluções para as noites mal dormidas ou para as lembranças mal guardadas. Elas existem, mas tendem ao destrutivo. Marguerite tem nelas os olhos fixos, como se espiasse de cima do abismo:
 
“A solidão também quer dizer: ou a morte ou o livro. Mas, antes de tudo, quer dizer álcool. Quer dizer uísque.”
 
Admite que, sem os seus livros, teria sido uma alcóolatra inveterada.
 
A noite em Duras é descrita então como a própria escrita. Escrever, reitero, para a autora, passa longe da metáfora segundo a qual a formulação de um texto lança luz a uma ideia. O escrever para ela não tem a ver com qualquer tipo de iluminação. É antes enfrentar o escuro; encarar o não saber. É o que só se descobre em meio ao processo. Escrever não é ato criativo, mas dor sem sofrimento. Não é hábito, mas entrega: o livro ou a morte.
 
 “Viver assim, como digo que vivia, nessa solidão, por um longo tempo, isso implica riscos. É inevitável. Desde o momento em que o ser humano se vê sozinho, ele oscila para o desatino. Acredito nisto: acredito que a pessoa entregue a si mesma já esteja tocada pela loucura porque nada a detém quando surge um delírio pessoal”.
 
Elencando o que tinha a temer nesse não-saber, Marguerite avança. Tratando do desatino que estava em jogo, ela avança. Até deixar o leitor com aquele gosto amargo que nasce na boca quando se descobre não existir qualquer linha que separe a lucidez da loucura. Todos temos capacidade para nos perder, com a diferença de que o escritor admite para si mesmo tal realidade. Marguerite mantém o desatino à espreita, não tenta esquecê-lo. Investiga-o. E é nesse sentido, de algo que domina a alguns mas que assombra a todos, que escrever “é a pergunta mais perigosa que podemos nos fazer. Mas também a mais comum”.
 
Quando Marguerite fala de si mesma não há lugar para a excepcionalidade. Entretanto, tudo é excepcional: do copo de uísque à morte de uma mosca. Tudo pode verter em uma escrita que olha para o todo a partir do espaço mínimo, que se diz envolta na banalidade geral, mas se detém em detalhar, como se eternizasse o momento.
 
“Há uma loucura da escrita que existe em si mesma, uma furiosa loucura da escrita, mas não é por isso que ficamos loucos. Ao contrário.”
 
É espantoso como a autora sabe redimensionar, fazer girar, o que nos chega primeiramente de seu texto com o peso do inequívoco. Ou cavoucar nas certezas para encontrar a sobra, o resto, recolocando as questões como dúvida. São textos únicos que fustigam com a franqueza das certezas para depois desenganá-las.
 
Da precisão e economia nos diálogos ao passeio delirante por uma casa que escreve, por um espaço que faz (ou é) o escritor, falo de textos indispensáveis para quem está cansado da tentativa de esclarecer ideias quando, não nos enganemos, estamos no centro da devastação.

“Estamos sozinhos mesmo em nossa própria solidão. Sempre inconcebível. Sempre perigosa. Um preço a pagar por ter ousado sair e gritar.”

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