Christopher Isherwood, a memória alegre

Por Manuel Hidalgo

Christopher Isherwood. Foto: Peter Schlesinger.


 
Os gêneros literários, como se sabe, não se configuram segundo a sexualidade, hétero ou homossexual, dos escritores, embora se fale da literatura gay ou da poesia sáfica, o que seria, antes, identificar rótulos de uma predileção temática, obviamente ligada à um ponto de vista que sem dúvida parte de identidades outras.
 
Uma certa classificação de Christopher Isherwood (1904-1986) — e de outros — como autor gay tem muito a ver, é claro, com a ênfase das manifestações literárias e pessoais do escritor britânico em relação à sua sexualidade. Não apenas seu olhar e conteúdo homossexual são explícitos em seus livros, mas ele foi um dos primeiros escritores do século XX a reconhecer publicamente sua posição sexual em entrevistas, em militar abertamente a favor dela e, isso é importante, em dotar seus livros de uma farta e franca carga autobiográfica relacionada às suas experiências sexuais.

Sem pertencer originalmente a nenhum grupo literário autoafirmado como tal, ainda jovem formou parte, com seus amigos íntimos os poetas W. H. Auden e Stephen Spender, de uma corrente policroma da literatura inglesa — ou, se quiser, de seu ambiente literário — que prolongou, a partir do inevitável eixo culto Oxford/ Cambridge, a modernidade que o Grupo Bloomsbury representara — Virginia Woolf foi amiga e editora de Isherwood na Hogarth Press —, intensificou a adesão de certos intelectuais britânicos às ideias da esquerda — fugazmente comunistas, antes das desilusões — e acrescentaram uma rejeição expressa da atmosfera opressora da Grã-Bretanha, traduzida, entre o exílio e o nomadismo; todos eles deixaram seu país. E foi assim que Auden, Spencer e Isherwood se encontraram e se encontraram novamente na Berlim da República de Weimar, na Berlim antes da ascensão de Hitler ao poder — o que levou à sua saída da capital alemã — uma procurada Berlim liberal e animada em matéria erótica, que está no centro de Adeus a Berlim (1939), o livro mais reeditado de nosso autor e a base de sua fama.


W. H. Auden, Isherwood e Stephen Spender. Foto: Howard Coster


 
Christopher Isherwood, nascido em um lar abastado, de pai que morreu na Grande Guerra, foi um mau estudante; passou por Cambridge sem se formar, tentou estudar Medicina e, ao realizar vários ofícios subalternos, começou a escrever e a publicar, tudo isso antes de se mudar para Berlim, aos 25 anos, onde viveu entre 1929 e 1933 e onde intensificou suas relações homoeróticas, mais do que sugeridas em Adeus a Berlim e reconfirmadas em livros posteriores.
 
Depois de deixar a Alemanha e após um nomadismo na Europa, ele se mudou com Auden para a China a fim de escreverem juntos Viagem a uma guerra (1939), sobre as consequências da guerra civil chinesa e do conflito sino-japonês. Juntos, os dois também escreveram três peças para o teatro.
 
No início da Segunda Guerra Mundial, eles optaram por não retornar à Europa e se mudaram para os Estados Unidos. Auden ficou em Nova York e Isherwood foi para a Califórnia, onde viveria o resto de sua vida, adquirindo a cidadania estadunidense em 1946, após superar a armadilha de ter se declarado um objetor de consciência.

Isherwood era atraído por Hollywood como uma válvula de escape para a carreira de escritor. Amava o cinema. Tivera uma experiência com a sétima arte na Inglaterra, trabalhando ao lado do diretor Berthold Viertel, sobrem quem ele refletiria com humor em seu romance Prater Violet (1945). Na Califórnia, foi recebido por Salka Viertel, famosa roteirista e esposa de Berthold, cabeça e anfitriã de um círculo de intelectuais e artistas europeus exilados nos Estados Unidos (Thomas Mann, Bertolt Brecht, Stravinsky e muitos outros) e nexo de um grupo de atrizes lésbicas e bissexuais que tinha como estrela Greta Garbo, para quem Salka escreveu vários filmes de grande sucesso.
 
Isherwood chegaria a escrever vários roteiros — para Lana Turner, por exemplo —, sendo o mais destacado aquele que assinou em 1964 para o diretor britânico Tony Richardson, a partir da adaptação do romance de humor negro e fúnebre de Evelyn Waugh, O ente querido.
 
O evento capital na vida do escritor — interessado em experiências místicas por meio de sua amizade com Aldous Huxley, que também morava na Califórnia — foi sua adesão ao hinduísmo, por volta de 1943, por meio da filosofia Vedanta, à qual dedicaria muitos anos de sua vida com livros e traduções. Chegou até considerar em se tornar um monge durante sua estadia num mosteiro da Vedanta.
 
Mas a exigência de castidade não combinava com um homem que acumulava amantes. Em um livro publicado postumamente a partir de diários e notas — Anos perdidos: memórias 1945-1951 —, Isherwood conta mais de quatro centenas deles e dá detalhes minuciosos sobre, incluindo os encontros sexuais com esses homens.
 
Christopher e seu povo (1976), junto com Leões e sombras (1938), sobre sua infância e juventude, e Kathleen e Frank (1971), sobre seus pais, constituem seu núcleo mais memorialístico. Os romances  dedicados à memória e aos textos hinduístas, logo deixaram de ter relevância, já a partir dos anos 1940 e 1950, com exceção, se preferir, de Um homem só (1964), romance que narra a experiência de um professor de inglês. após a morte repentina de um amante e que foi transformado em filme por Tom Ford em 2009. Este romance foi inspirado por uma crise de Isherwood com o pintor Don Bachardy, trinta anos mais jovem que ele e com quem viveu, até sua morte (a do escritor) por mais de três décadas.
 
Todo mundo sabe, graças ao filme Cabaret (1972), o que é, mais ou menos, Adeus a Berlim e conhece as aventuras de Sally Bowles. Christopher Isherwood não gostou muito do filme de Bob Fosse — antes existiu outro, Sou um câmera (1955) —, por estreitar e distorcer, a partir de um musical teatral, o conteúdo de um livro mais caleidoscópico, feito de diários e narrativas autônomas e convergentes, várias delas previamente publicadas separadamente.
 
Christopher Isherwood viveu até 4 de janeiro de 1988. Morreu de câncer em Santa Monica.


* Este texto é a tradução livre de La memoria alegre, publicado aqui em El  Mundo.
 

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