Andrei Platônov: a ideologia e as paixões
Por Geney Beltrán Félix
Andrei Platônov na varanda do sanatório em Moscou, 1948. |
Chamado por Sergio Pitol de “o
escritor mais original das terríveis décadas” do stalinismo, considerado por
Joseph Brodsky o melhor ficcionista russo desde Dostoiévski, Andrei Platônov
morreu em 1951 num estado de completa ostracismo nos círculos literários, sem
ter visto publicados seus dois mais importantes trabalhos. No início da década
de 1920, o autor, um comunista convicto, não encontrou grandes obstáculos para
divulgar seus textos, mas com o passar dos anos sua sorte foi virando de cabeça
para baixo. Em seu país, A escavação só veio a público em 1987 e Tchevengur
foi publicado, em sua primeira edição completa, em 1988.
— Você é um vigarista ou um patrão
burguês?
— Sou... sou do proletariado, respondeu
Chiklin com relutância.
— Ah! O czar de agora!
Este diálogo entre um velho e um
trabalhador em A escavação reúne muitos exemplos nos quais a narrativa
de Platônov apresenta uma visão crítica do processo de estabelecimento do
comunismo na Rússia.
Platônov percorreu, dedicando-se
ao trabalho técnico, os vastos espaços do centro e do sul do seu país durante
os anos de coletivização da propriedade agrária, época em que foi registrado o
que o sociólogo Michael Mann em seu aterrorizante estudo dos genocídios do
século XX, The Dark Side of Democracy chama isso de classícido: o
extermínio de quase dois milhões de proprietários camponeses, ou kulák,
que resistiram à implantação do poder soviético central.
Os dois romances escritos por
Platônov em 1929 tiveram aí o seu impulso criativo. Tchevengur narra as
aventuras de dois amigos, Dvánov e Kopienkin, ingênuos e bem-intencionados, em
busca de um lugar onde o comunismo tivesse se estabelecido naturalmente. É
assim que encontram Tchevengur, uma cidade na qual um grupo de camaradas espera
realizar a utopia perfeita, para a qual eles não se permitem o menor escrúpulo
quando se trata de exterminar os inimigos de classe. Por sua vez, A
escavação apresenta uma galeria de trabalhadores dedicados ao trabalho
enunciado no título: a escavação — interminável, profunda — para a construção
de um edifício gigantesco no qual residirão as famílias felizes do futuro, ainda
que às custas de trágicos sacrifícios.
A crítica direta da coletivização
não é a única coisa que se destaca em Platônov. Existe um procedimento com o
qual o autor marcaria sua crítica e que tem sido definido como parecido ao
surrealismo e um precursor do absurdo, com fortes contornos satíricos.
Um exemplo. Em Tchevengur é
narrada a execução de vários membros das kuláks. Não é incomum que a voz
narrativa apresente os fatos com um ponto de vista suspeito, de forte
indeterminação, como se não os entendesse em sua essência e fosse necessário
descrever passo a passo, com termos incomuns, o que acontece, em vez de resumi-lo
ou glosá-lo. Assim, em vez de “atirou na cabeça”, lê-se “alojou a bala de seu
revólver no crânio” em:
“E ele mesmo alojou a bala de seu
revólver na cabeça de Zavin-Duvailo […] Da cabeça do burguês emergiu um frágil
vapor e do crânio, por entre o cabelo, logo escorreu uma crua matéria maternal,
parecida com cera de vela; mas Duvailo não desabou, apenas se sentou sobre o
fardo de roupa caseira.
— Mulher, envolve meu pescoço com
um pano! Disse com impaciência. Já me escapa a alma inteira por aqui!”
Na mesma circunstância, Platônov
incorpora crenças do folclore russo — como, neste caso, que a alma se aloja na
garganta — com um tom de aquiescência, sem se vejam refutadas pela forma como o
narrador as relaciona, nem pelos gestos ou falas dos outros personagens: a
diegese parece surgir da percepção e do emaranhado de crenças da própria
matéria narrativa.
Por isso, o estranhamento
percebido em Platônov não corresponde a um postulado surrealista ou a uma
exploração do absurdo. Os tradutores de A escavação para o inglês,
Robert Chandler e Olga Meerson, apontam isso: as obras desse escritor “quase
não contêm incidentes ou diálogos que não estejam diretamente relacionados a um
evento real ou uma publicação recorrente naqueles anos. O interesse de Platônov
não está em um mundo de sonho privado, mas na realidade política e histórica —
uma realidade tão extraordinária que parece inacreditável.”
O perfil satírico de Platônov
também não chega a ser visto exclusivamente fundado. Por exemplo: um dos
personagens de Tchevengur possui um fiel cavalo batizado por Força Proletária,
e vive obcecado — repete como bordão — em ir à Alemanha resgatar o cadáver de
Rosa Luxemburgo. Em outro momento, Chepurni, o líder Tchevengur, confessa que
nunca leu Marx.
“Chepurni pegou a obra de Karl
Marx nas mãos e acariciou as páginas atulhadas de letra impressa.
— Veja o que este homem escreveu!
Chepurni disse tristemente. — E fizemos tudo antes de ler qualquer coisa. Mais
valeira não haver escrito nada!”
Os trabalhadores e oficiais
comunistas apresentam-se como personagens simples, convencidos da validade e da
necessidade de sua missão, estritamente focados em cumpri-la, muitas vezes
ignorantes e supersticiosos ou até fanáticos. Esses adjetivos, é claro, são
colocados por si mesmo como um leitor com uma visão de mundo que se julgaria
mais complexa, menos “básica” e, acima de tudo: cética. Esse choque entre o que
um leitor de adjetivos e o que os personagens desejam congruentemente almejar —
a felicidade universal — estaria na origem de uma leitura satírica.
No entanto, os personagens de Platônov
se recusam a um olhar tão estreito e redutor. Apesar do extremo de suas ações e
da utopia de seus pensamentos e expressões, nunca perdem seu teor mais
vulnerável: podem experimentar estados de inquietação vital em alguns casos, de
perplexidade e raiva em outros e, nos mais trágicos, uma melancolia paralisante.
A chave é esta: para eles, o comunismo substituiu a religião. É muito mais do
que um sistema político e sim, inteiramente, um modo de percepção e relação com
o meio e a existência, que moldou os filtros de sua sensibilidade. De Safrónov,
o trabalhador mais ativo nos círculos políticos de A escavação,
se diz: nele “a ideologia esteve sempre no meio das paixões de sua vida
cotidiana”.
Nos casos mais comuns, essa
mistura de ideologia e paixões não está isenta de desajustes e divergências;
portanto, mesmo o mais exaltado vacila em algum ponto. E os casos mais
dramáticos são aqueles que, como o protagonista Vóschev em A escavação,
não deixam de perceber que o comunismo exige a fusão em uma coletividade que
priva a todos de seus traços individuais e que tenta, sem sucesso, anular seus
feitos ao caráter de indeterminação. A crise surge porque a experiência para
eles resiste à demanda total da ideologia e porque a vida permanece
incompreensível, um depósito de dor, decepção e confusão. Retratar esses
estados mentais — colocá-los em dúvida, a partir do interior de personagens que
gostariam de ser exemplares em seu compromisso ideológico, de tudo que justificava
a existência da União Soviética — custou o silenciamento e a censura de Platônov.
* Este texto é a tradução livre de “Andréi Paltónov: la idelogía y las pasiones”,
publicado aqui, em Confabulario.
Comentários