Todo (o) sentimento em todo (o) tempo: um pequeno itinerário para uma breve crítica poética
Por Marcelo Moraes Caetano
Todo o sentimento
(Bastos e Buarque, 2012)
Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Ferenc Pintér. |
(Bastos e Buarque, 2012)
Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.
A poesia “Todo o sentimento”, escrita por Chico Buarque e Cristóvão Bastos,
será encarada, nesta crítica, pela perspectiva imanente (cf. Todorov, 2009) do
texto. Com isso, quero dizer que não observarei o chamado “sujeito
intencional”, encarecido na estilística, nem a crítica biológica ou
ontogenética da tessitura, nem buscarei intertextos (cf. Kristeva, 1977) ou
dialogismos (cf. Bakhtin, 2000). Em outros termos, a análise aqui levada a cabo
privilegia a captação de implícitos inconscientes do material poético e
subjacentes a este, calcados, entretanto, numa pura materialidade
composicional. Trata-se de, como na psicanálise discursiva (cf. Benveniste,
1991), chegar-se ao interior da realidade intersubjetiva (id. ib.) por meio da
(e através da) concretude da inverossimilhança externa (cf. Aristóteles, 1974).
Farei, aqui, uma primeira análise, muito superficial, do corpus desse texto
rico em significantes e significações. Não tenho a pretensão de esgotar o
material estético aí presente, uma vez que minha análise ocorrerá tão somente
na procura de significados e significações por meio do campo lexical articulado
à sua semântica criada-criadora. Não observarei, quero dizer, filigranas tais
como as antíteses, os paradoxos, as metáforas e outras figuras de linguagem,
uma vez que, à minha proposição aqui, elas não tornariam mais claro o que
tenciono demonstrar.
Iniciando, pois, a empreitada a que me propus, observo que o tema (horizonte,
cf. Iser, 1980) da poesia não é o sentimento, como sugeriria, à primeira vista,
seu título. O tema do poema é, antes de tudo, o tempo. Além do levantamento
vocabular prolífico que me levou a essa conclusão, como mostrarei abaixo, há,
no poema, até como causa e consequência do aludido levantamento, uma
circularidade temporal que justifica minha escolha de eixo temático centrada no
tempo.
Uma espécie de objeção que poderia surgir, aqui, diz respeito ao fato de que,
por ser uma narrativa, o poema tem, necessariamente, o tempo como pano de
fundo. Pretendo eu defender que, muito além de, neste poema, o tempo ser mero
pano de fundo constitutivo inevitável das narrativas, é ele, sim, o
protagonista de sua própria narrativa, um meta-tempo, portanto, sendo o Tempo e
o Sentimento-EU+TU os personagens (respectivamente protagonista e antagonista)
da trama ou narrativa poética. Aqui, sim, justifica-se (embora sem necessidade
de justificativas...) o título da poesia: “Todo o sentimento”: o título remete
não ao personagem protagonista, mas ao antagonista (sentimento+EU+TU).
Um suprapersonagem ou suprapessoa, o “acontecimento”, o “não-tempo” ou “supratempo”,
será uma espécie de “fada” (uso a etimologia do latim, “fata”, feminino de “fato”
ou “fado”, o feminino que resolve os descaminhos do destino, a famosa “ironia
do destino” é ainda mais verossímil a presença mágica da fada no vocábulo “encantado”,
dos versos 24 e 31), que resolverá os deslizes que todo sentimento de EU+TU
ocasionam a si mesmos, talvez com o fito último de retornarem a si mesmos e,
enfim, redimirem-se de si mesmos.
Sobre o levantamento lexical supracitado, há muito mais palavras relacionadas à
enunciação semântica de temporalidade do que à de um sentimento integral (ou à
de sentimentos vários); seguindo-se da primeira à última estrofe, tem-se
(repetirei vocábulos que o foram no texto):
“consumar”,
“tempo”,
“conduzir”,
“tempo”,
“devagar”,
“urgentemente”,
“último momento”,
“tempo”,
“refaz”,
"desfez",
“recolhe”,
“guarda”,
“outra vez”,
“até”,
“então”,
“depois”,
“tempo”,
“onde” (mostrarei abaixo como esse “onde” é temporal, num processo de
gramaticalização),
“depois”,
“tempo”,
“onde”.
Outro passo, ainda no campo lexical, se dá com a gama vasta no paradigma de
conjugações verbais presentes no texto. Além das três formas verbo-nominais (os
infinitivos “dormir”, “consumar”, “conduzir”, “amar”, “descobrir”, “querer”,
“cair”, “partir”, “poder”, “desvencilhar”, “perder”; o gerúndio “amando” e o
particípio “encantado”), há o presente do indicativo (“preciso”, “pretendo”,
“refaz”, “recolhe”, “bota”, “prometo”, “prefiro”, “encontro”), o pretérito
perfeito do indicativo (“desfez”, “aconteceu”) e o futuro do presente do
indicativo (“diremos”, “seguirei”). Com isso, o poema possui presente, passado
e futuro, explicitados em suas respectivas conjugações gramaticais. Outra marca
inexorável da temporalidade como fonte motriz do texto.
Sobre as “pessoas”, há três delas dentro do poema (depois surgirá uma quarta, a
fada, como disse eu acima, desdobramento/ fato feminino de outra já existente;
ver-se-á, também, uma quinta pessoa). Dessas três, por assim dizer,
prOeminentes (mas não prEeminentes), duas se expressam por suas ações: as
expressas pelo presente do indicativo, que são 1) o sujeito poético
(EU, que também se expressa por um futuro; cf. “seguirei”) e 2) o TEMPO (que
também se expressa por um passado; cf. “desfez”): observe-se que tudo o que se
FAZ é feito ou por um EU ou por um TEMPO.
A terceira pessoa é 3) o amante, que, em vez de ação, apenas diz algo,
juntamente com o sujeito poético: cf. “diremos”. E, ainda mais, “não
diremos nada”. Ou seja, o ser amado/ amante, quando participa como
pessoa do poema, não participa em ação, mas em discurso, e, ainda por cima, num
discurso de ausência e silêncio: “não diremos nada”.
Os únicos sujeitos do poema que realmente agem, que fazem ações, são o sujeito
poético e o tempo (além, naturalmente, da mágica do supratempo).
(Há, também, como eu dizia, uma 4) suprapessoa do próprio tempo, a aludida
quarta pessoa, a fada, expressa em “nada ACONTECEU”, que é um verbo impessoal,
indicando, pois, temporalidade. Esta sim a fada do texto, uma vez que, como
mágica de um feminino etimológico de fato ou fado, a fada/ fata vem para
resolver os ruídos perpetrados entre EU e TU.)
Ainda uma outra pessoa que surge no poema, uma quinta pessoa, é 5) o “amor”,
porém, um personagem que Oswald Ducrot (2012) chamaria de personagem do “discurso
narrado”, pois que só aparece inserido na narrativa do sujeito poético EU: é
uma daquelas intravozes que Goethe, por exemplo em seu célebre “O rei dos elfos”,
tanto tecia e entretecia. Esse “amor”, o mais passivo de todos os personagens,
aparece narrado pelo sujeito poético, EU, quando cai “doente, doente”, gerando,
naquele sujeito poético, personagem que, no texto, só encontra correlato ativo
com o tempo, como vimos, a necessidade e a consecução de “então [EU] partir / a
tempo”, conflito que tornará necessária a solução, cujo “encontro com certeza”
(v.19) é o retorno.
Além desses fatores, outro, de cunho estrutural mais profundo, fez-me ver que o
tema horizontal do texto é o tempo, e não o sentimento. O sentimento, nele, é,
agora na perspectiva dos analistas do discurso franceses (AD), um cenário para
o personagem principal, que é o tempo, repito. Esse fator é a percepção de que
há, na poesia, três (ou dois) por assim dizer tempos de decorrência:
O primeiro, que vai de “Preciso não dormir” até “uma outra vez”. Podemos chamar
a este momento de T1.
Em seguida, há um breve tempo, um segundo tempo, que vai de “Prometo te querer”
até “desvencilhar da gente”, nessas duas pequenas estrofes intermediárias,
onde, como numa sonata, a ambiência de alegria se nubla. Trata-se de T2.
Por fim, há o tempo que se dá de “Depois de te perder” até “ao lado teu”, o T3.
Disse eu, há pouco, que oscilo entre chamar de três ou dois tempos, uma vez que
T1 e T3 são, na verdade, voltas ao mesmo ponto, e, numa circularidade
cronológica, espiralada, que o pensamento grego, por exemplo, tanto enfatizava
e amava, tudo retorna ao seu início, após a intercessão crua/ curativa de T2.
O poema segue, portanto, uma forma circular, que os clássicos e neoclássicos
tanto usaram em suas formas de sonata, e que José Lins do Rego, assumidamente,
usou em seus romances: um allegro, um andante, e um rondó. T1, T2, T3.
Também os contos de fada usam essa estrutura, quando tudo se inicia em relativa
paz (porém já com prenúncios de conflito), seguindo-se a isso o conflito
propriamente dito e, em seguida, a resolução (sempre por intermédio de forças
mágicas) daquele conflito, restabelecendo-se a paz e a harmonia iniciais. Outra
não é, aliás, a constituição dicotômica entre a Ilíada e a Odisseia:
a saída de casa, a guerra (catábase ou hamartía, cf. Aristóteles, op. cit.) e o
retorno a casa.
Esse início/ retorno (T1) vinha profetizado com palavras na primeira estrofe,
como “até se consumar/ o tempo”, e “o tempo que refaz/ o que desfez”, o que
prefigura que a perda e o desvencilhar da complicação de T2 se refarão, pela
ação do tempo, no que o próprio tempo desfizera, constituindo-se, pois, a sua
consumação final. Por essa razão é que T3 pode ser, na verdade, um retorno a T1,
e que T1, portanto, não é o início do poema, mas sim o seu fim e a sua
finalidade: um tempo de espera(nça) pelo retorno do que se tem a “certeza” (v.
26) de que “talvez” (v. 27) ocorra no “tempo da delicadeza” (talvez esse sim o
tempo de fusão entre T1 e T3). Esse sim, o tempo da delicadeza, o lugar e o
tempo “onde” (eis a gramaticalização a que me referi) início e fim se
reencontram para sempre, após a catábase (ou hamartía) trágica da separação
momentânea (e imperativa categórica, cf. Kant, 2011) de T2.
O tempo da delicadeza é um tempo sem complicações, ou, se as houver, um tempo
onde as cinco pessoas, essas sim, todas e “todo/ totalmente sentimento”,
preeminentes, ou seja, 1) o sujeito poético, 2) o tempo, 3) o amante e 4) o
supratempo, além do próprio 5) amor convalescente/ curado se fundem no tempo
perfeito, o “tempo da delicadeza” (uma possível sexta pessoa e a terceira
pessoa do Tempo), ao expressarem:
depois de [EU] TE perder
TE encontro com certeza
talvez no TEMPO
da delicadeza [a sexta pessoa? terceira pessoa do Tempo]
onde [EU E TU] não diremos nada
nada [SUPRATEMPO] ACONTECEU [o amor não está mais doente]
apenas [EU] seguirei
como ENCANTADO [outro índice da mágica ocasionada pela fada do SUPRATEMPO]
ao lado TEU.
Pergunto eu, derradeiramente: esse TEU final seria a fusão de TU + EU = TEU?
Referências
ARISTÓTELES. Περὶ Ποιητικῆς. Madrid, Gredos, 1974.
BAKHTIN, Mikhail. Dialogismo e construção de sentido. Campinas:
Editora Unicamp, 2000.
BASTOS, Cristóvão e BUARQUE, Chico. “Todo sentimento”. Disponível aqui. http://letras.mus.br/chico-buarque/45181/
BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. 3 ed. São Paulo:
Pontes, 1991.
DUCROT, Oswald. Le dire et le dit. Paris: Les editions de Minuit,
2012.
ISER, Wolfgang. The Act of Reading: A Theory of Aesthetic Response.
Johns Hopkins University Press, 1980.
KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. Berlin: Reclam, 2011.
KRISTEVA, Julia. Polylogue. Paris, Seuil, 1977.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de janeiro: DIFEL,
2009.
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