“Rock do cachorro morto”, Barão Vermelho e Machado de Assis
Por Wagner Silva Gomes
Francis Bacon. Man with Dog, 1953 |
Lembro-me que certo dia,
Na rua, ao sol de um verão,
Envenenado morria
Um pobre cão
Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão
Nenhum, nenhum curioso
Passava sem se deter,
Silencioso,
Junto ao cão que ia morrer
Quem sabe é delicioso?
Ver padecer
Como se lhe desse gozo
Ver padecer
Como se lhe desse gozo
Ver padecer…
George Israel e Guto Goffi, em
parceria póstuma com Machado de Assis, cobriram de eletricidade e
percussividade o poema “Suave Mari Magno” (1880) que, na estética roqueira,
recebeu o título de “Rock do cachorro morto” (do disco Barão ao vivo,
1989). Os compositores, como que seguindo os preceitos de Ezra Pound em ABC
da Literatura (1934), encheram de energia as imagens e as sonoridades dos
versos, potencializando o contexto narrado com “Ventre e pernas sacudindo mais
na convulsão” (sétimo e oitavo versos do poema, em adaptação do autor deste
ensaio para o corpo, textual e humano, em versão ao vivo).
Considerando a tradução de “rock”
por “rocha” (ou “pedra”), visualiza-se, nesse poema-rock, o “pobre cão” como um
cachorro “no meio do caminho”, lembrando assim o famoso poema de Carlos
Drummond de Andrade. Os deslocamentos da palavra “rock” (“pedra”) por todas as
posições do sintagma do título onde se encontra (rock que vai soando na
guitarra durante a música) faz com que a palavra ocupe novos sentidos durante o
caminho, como nos hipérbatos do poema de Drummond. No início foi “rock”, como o
início da banda em 1981, no meio foi “cachorro”, metáfora que tantas vezes Cazuza,
que foi integrante do Barão Vermelho, usou para descrever o seu sujeito lírico,
como em “Mal nenhum” (1985) “Me deixem, bicho acuado/ Por um inimigo
imaginário/ Correndo atrás dos carros/ Como um cachorro otário”.
No poema-rock analisado, pela
agressividade do canto, percebe-se que os inimigos não são tão imaginários
assim. São esses os olhos sádicos que tentavam atingir o Cazuza durante o tempo
que viveu com o vírus do HIV, vindo a falecer em 1990. O hedonismo da geração de 80 fez com que os
compositores recuperassem o verso “Quem sabe? É delicioso”, penúltimo de uma
primeira versão do poema, como destaca Antônio Sanseverino em “Cantos
ocidentais (1880), a poesia machadiana na Revista Brasileira” (2015), sem
dispensar o verso “como se lhe desse gozo”, da segunda versão, em uma imagem
hedonista sádica bem ao espírito da época, que remete ao desumano que olha e
condena quem padece por HIV nos anos 80 e 90, sentindo prazer com isso.
No entanto, como que retomando a
palavra “rock” (“pedra”) do sintagma analisado, Cazuza, como se voltasse ao Rock
(ao início), hoje goza, deitado, “silencioso”, banhado pelo sol (em bronze),
eternizado em uma estátua do bairro carioca Leblon, vendo padecer quem lhe
detesta (“O tempo não para”).
Se a Cazuza coube o papel da
personagem machadiana Quincas Borba, voltando a vivenciar por outra maneira
suas metáforas de cão, aos dois compositores, diferente do parceiro Machado,
que, como bem analisou Wilberth Salgueiro em ensaio escrito para o jornal Rascunho
(2017), sinalizava que o padecimento do cão também era o seu, coube o papel de
Rubião, personagem do mesmo livro, ao “guardar um cão em vez de ser o cão que o
guardasse a ele”, mas com o orgulho de ter compartilhado da poesia e da vida do
amigo (Cazuza), e sem o medo da opinião pública, pois se nota “a esperança de
um legado, pequeno que fosse. Era impossível que lhe (s) não deixasse uma
lembrança”.
Comentários
- Olha, nada a revisar. Texto "portuguesmente" perfeito, rs.
Sua análise, se saquei, toma a gravação da música como uma espécie de metáfora para a situação dramática de Cazuza, transformado num cão pela mídia e pelos sádicos. Leitura original e ousada, e que acho pertinente.
Quando apresentei para a turma recebi a seguinte crítica de um colega:
-Parabéns! Conforme escrevi no chat, seu trabalho me emocionou.
Chamo-lhe a atenção para uma correção necessária na data da publicação do poema de Machado: 1880.
E aqui vai algo que pode ser uma implicanciazinha minha, mas creio que a data desta citação não ficou bem registrada. Em seu ensaio, lê-se "como destaca Antônio Sanseverino em Cantos ocidentais (1880)", o que pode induzir o leitor a pensar que o artigo em questão é que foi publicado em 1880.
Ocorre que o artigo de Sanseverino é de 2015 (https://machadodeassis.fflch.usp.br/node/23), e seu título completo é: “Cantos ocidentais (1880), a poesia machadiana na Revista Brasileira”.
Como há uma data entre parênteses dentro do próprio título do artigo, creio que a confusão pode ter decorrido daí.
Creio que o trecho talvez fique melhor assim: como destaca Antônio Sanseverino em “Cantos ocidentais (1880), a poesia machadiana na Revista Brasileira” (2015).
Mesmo com a apreciação do primeiro, considerei a crítica construtiva do segundo e melhorei o texto. Acho que sua observação tem sentido, mas no que ela tem sentido meu texto a fundamenta.