Os personagens vis em Haruki Murakami
Por Paula Luersen
Haruki Murakami. Foto: Nathan Bajar |
“Não existem pessoas más nos seus
romances”. Haruki Murakami diz ter ouvido essa frase de uma de suas leitoras
quando estava iniciando a carreira como escritor. Ele comenta no livro Romancista como vocação, que passou algum
tempo pensando sobre a avaliação e concluiu que talvez a leitora tivesse razão:
“nessa época eu estava com mais interesse em criar um mundo pessoal –
harmonioso, por assim dizer – do que em compor obras muito complexas. Antes de
tudo eu precisava criar e estabilizar o meu próprio mundo, uma espécie de
abrigo para enfrentar o mundo real”.
Sempre julguei essa elaboração de
Murakami de uma honestidade reveladora. Ao externar esse tipo de reflexão sobre
o que produziu como escritor, ele mostra que muito antes de partir de ditames
ou de preceitos relacionadas à literatura enquanto campo de pensamento – entre
eles, a histórica incumbência da representação – Murakami precisava atender a
uma necessidade própria, subjetiva, de sentir-se acolhido pelo processo de
escrita, formulando um universo próprio. Consciente ou inconscientemente, estava
construindo um entorno harmonioso que o mobilizasse para o fazer, ainda que,
segundo sua avaliação, passasse ao largo de certos aspectos da realidade.
A ausência do mal choca-se, à
primeira vista, com a busca confessa de Murakami por construir personagens
verossímeis, calcados na memória e que procuram produzir no leitor um
sentimento de identificação. Se a verossimilhança está entre os desejos de
Murakami ao compor seus personagens, como escapar a um traço humano tão
indiscutível quanto a nossa capacidade de exercer a malevolência e a crueldade?
Como escapar aos personagens vis? Levando em consideração o que ouviu de sua
leitora, Murakami diz ter começado a inserir, de forma consciente, “tendências
maldosas” entre os personagens que criava, o que fez parte de um processo de
aprofundamento, diversificação e amplificação do seu universo ficcional.
Detenho-me sobre esse tópico pois
me interessa tentar entender a maneira pela qual o mal está expresso nas
histórias do escritor japonês. Mais do que atribuir a maldade como
característica a certos personagens – Murakami está longe de ser um escritor
que se vale de estereótipos – percebo que, em suas obras, o mal atua como força.
Outros predicados também se manifestam dessa mesma forma, mas como iniciamos o
texto tratando do assunto, vamos à maldade. Muitas vezes podemos percebê-la
como uma força dominante que captura um personagem e seus modos de agir – como no
caso do esfolador de Crônica do pássaro
de corda, ou do pai do protagonista em Kafka
à beira-mar – a ponto de parecer que estamos falando de uma característica.
Observo, entretanto, que o vil, o
cruel, o impulso destrutivo que atravessa várias das histórias de Murakami não são
uma característica presente ou ausente nos personagens, mas algo que transcende
o tempo histórico, ainda que se instaure por ações e atitudes. Certos contextos
favorecem esse processo – para dar um exemplo prático, podemos pensar no
extermínio dos animais realizado por oficiais em um zoológico no livro Crônica, um ato que pode parecer
violência gratuita mas que se insere em um cenário de guerra e de sofrimento. A
força do mal produz associações: o militar responsável pelas torturas em meio à
Batalha de Nomonhan nos anos 30 de repente liga-se por pequenas atitudes e
sinais ao empresário audacioso, alçado à figura de político, na Tóquio dos anos
70. Murakami convoca elementos que, tal qual marcas insistentes, elaboram relações entre diferentes tempos e personagens – lembremos do hematoma que
marca o rosto de dois personagens, habitantes de diferentes planos na
narrativa em Crônica ou façamos a
relação entre o desmaio de um grupo de crianças e a chuva de peixes que marcam o enredo de Kafka
à beira mar. Mais do que os fatos em si, são as forças que movem a narrativa
para a frente, estando os personagens mais ou menos preparados, mais ou menos
sensíveis a canalizarem esses impulsos.
Gostaria de destacar também outro
tipo de força que emana dos personagens criados por Murakami e que, desconfio, mantenham
os leitores voltando para os livros do autor a cada novo lançamento. Há uma
força de honestidade altamente apaixonante na literatura de Murakami. Kafka
Tamura, Toru Okada, Tsukuro Tazaki, Toru Watanabe são personagens que tem na
honestidade implacável uma das cores fortes de sua paleta de composição. Cada qual tenta lidar com seus desejos sinceramente, afastando-se da
tendência à hipocrisia e das convenções que regulam as relações em sociedade. Está
sempre presente a tentativa de escapar ao autoengano, buscando encarar com
honestidade as contradições, problemas e preconceitos que cada personagem
enfrenta. Para dar um exemplo rápido e um tanto bobo, Toru Okada em Crônica não cansa de repetir aos que lhe
convidam para qualquer compromisso que se encontra livre a qualquer hora: “à
tarde eu não tenho nada para fazer”. Essa é sua frase clássica. Tsukuro Tazaki,
protagonista de outro romance, afirma diversas vezes que nem precisa consultar a
agenda para aceitar um convite: depois do trabalho, está sempre disponível. Ambos
compartilham, assim, de uma maneira de agir avessa às regras da sociedade
capitalista, segundo a qual devemos ostentar o fato de estarmos sempre
ocupados, pois nisso reside a aparência de que nossa vida teria sentido e
significado.
Longe de simples artifício, esse
tom adotado pelos protagonistas é o mesmo que guia as entrevistas dadas por
Murakami, as falas sobre si próprio e sobre seu trabalho como escritor. Há a
tentativa de responder muito francamente sobre as questões que dizem respeito
ao fazer e de desmistificar o discurso sobre própria escrita. A afirmação dessa
força de honestidade está, assim, para além dos universos criados em seus
livros. Ela liga arte e vida na obra de Murakami atuando igualmente como
postura política e princípio ficcional. É, de fato, um grande desafio para
qualquer um tornar-se totalmente honesto consigo mesmo e essa procura parece
estar sendo constantemente empreendida dentro e fora do universo literário do
autor.
A dificuldade em encontrar esse
caminho de sinceridade frente aos próprios desejos e desafios é, inclusive, nas
histórias de Murakami, um dos motivos pelos quais os personagens adoecem. Eles
murcham, curvam-se, buscam o isolamento, mentem, perdem a cor. E é por esse
motivo que não cabe personalizar essas relações, mas sim falar de forças,
nomeadas ou não, reconhecidas ou não por quem as encarna – faz algum tempo que escrevi
para o blog um texto comentando sobre a recorrência da palavra algo em obras de Murakami. Volto a dizer
que o que está em jogo não são fatos ou circunstâncias. Os nexos causais são
sempre incompletos, falhos, mentirosos. O que vale e governa a história, realmente,
são as forças e sua lógica de afeto e de acaso.
Em lugar de características, da
ideia de uma essência que define os personagens, é possível falar, então, em
forças e fluxos. Em lugar da maldade ou da honestidade expressarem-se como
valores morais, nos livros de Murakami elas são pensamento e ação, forças que
passeiam deixando nos personagens marcas tão indeléveis quanto difíceis de
explicar. O mal, a crueza do mal. A honestidade em seus atalhos e descaminhos. Entre
símbolos e personagens, Murakami dedica-se a elaborar essas forças reconhecendo
nelas todo o seu potencial de mistério.
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