Os manuscritos inacabados por trás do alegado desprezo de Edward Said pela ficção
Por Donna Ferguson
Edward Said. Foto: Michael Birt. |
Edward Said era claro e firme: a
obra de um crítico, argumentava, é mais importante que a de poetas e
romancistas. São os intelectuais públicos, acreditava ele, os escritores mais
capazes de desafiar o poder e mudar o mundo. No entanto, de acordo com uma nova
biografia do altamente respeitado estudioso e crítico literário palestino, Said
secretamente escreveu tanto poesia como ficção – sem jamais mencionar o fato a
seus amigos.
Said, que morreu em 2003, deixou
para trás dois romances incompletos e abandonados, um conto rejeitado e ao
menos 20 poemas, como pioneiramente revela a biografia de Timothy Brennan.
A Brennan – um ex-aluno de Said
que é agora professor de literatura comparada na Universidade de Minnesota – foi
dado um acesso sem precedentes aos manuscritos inéditos, cortesia da família de
Said. A biografia, Places of Mind: a Life of Edward Said, publicada pela
Bloomsbury, lança nova luz sobre como, após toda uma vida ensinando literatura,
Said veio a rejeitar o romance como forma literária em 1992.
“Penso que ele crê que há grandes
inconvenientes em escrever romances”, diz Brennan. “Ele constata que há uma
falha no projeto da ficção se seu intento for o de mudar o mundo.” Ele agora
acredita que a conclusão de Said de que “para aqueles que sentem o impulso de
provocar mudança política o romance não é o melhor veículo para fazê-lo” é uma
conclusão nascida em parte de suas próprias experiências como malogrado escritor
de ficção.
Naquela altura, Said descobrira em
primeira mão os desafios enfrentados pelos autores que buscavam intervir
politicamente escrevendo romances – mas optou por manter essa intuição
potencialmente embaraçosa em segredo, junto de seus manuscritos inéditos.
Quando amigos que eram romancistas
famosos lhe escreviam cartas elogiosas, implorando-lhe para que considerasse
escrever um romance, sua correspondência mostra que ele ou ignorava seus
pedidos ou perguntava a eles, de forma um tanto enganosa, sobre o que diabos
ele escreveria. “Ele claramente se esforça para mantê-la [sua tentativa de
escrever ficção] longe das pessoas. Ele as ilude”, diz Brennan.
Brennan crê que, no máximo,
“talvez” apenas uma ou duas pessoas sabiam que Said tentara escrever romances.
“Repetidas vezes, quando entrevistei pessoas que o conheceram durante toda a
vida, elas diziam que não sabiam nada sobre isso.” Ambos os romances são políticos e
autobiográficos, e se passam no Oriente Médio.
O primeiro, um tríptico chamado Elegy
[Elegia], tem 70 páginas e se passa no Cairo da infância de Said nos anos 1940.
Ele começou a escrevê-lo em 1957 quando tinha 22, mais de 20 anos antes de
escrever Orientalismo, sua famosa crítica pós-colonial da representação
ocidental do “Oriente”.
Brennan pensa que Said estava
buscando uma forma acessível de explicar algo que, como cidadão americano
vivendo nos Estados Unidos, ele percebera que a maioria das pessoas
simplesmente não parecia capaz de entender: isto é, “que há uma cultura árabe
independente, que negociou e resistiu de forma bem-sucedida à imposição da
influência estrangeira em lugares como Cairo.”
Sua poesia, diz Brennan, é igualmente
“vincada na arabicidade”. Alguns poemas escritos nos anos 1950 expressam “um
sentimento claramente anticolonial”, explorando como é se ver “presa de dois
mundos” e crescer no Levante, onde – como escreve Said em um de seus romances –
“as cabeças de todos estão voltadas feito cata-ventos para o Ocidente”.
Outros parecem ser profundamente
pessoais. “Meu poema favorito é um altamente sexualizado e assustador que creio
ter sido escrito sobre sua conturbada relação com a primeira esposa, em 1962”,
diz Brennan. Nesse poema, “Little Transformation”, publicado pela primeira vez
hoje no Observer, “há esse súbito lampejo de alienação e temor diante da pessoa
com quem partilhara da intimidade. Ele mostra-se duvidoso quanto à lealdade da
mulher que ama.”
Durante a pesquisa para o livro,
Brennan descobriu que Said era “absolutamente obcecado” pela poesia de Gerard
Manley Hopkins e lia poesia incessantemente para sua segunda esposa. “Creio que
ele aspirava à poesia. Este era o eu secreto. Era um eu mais efusivo e
vulnerável que o eu que ele permitia que fosse visto por outrem.”
O título da única obra ficcional
que ele conseguiu completar é tirado do verso de um poema de Hopkins. “An Ark
for the Listener” é um conto sobre um jovem de Beirute que é gradualmente
forçado a se haver com “a dor palpável” de amigos palestinos da família sendo expulsos de seu lar. Após o conto ter
sido rejeitado pela New Yorker em 1965, Said desistiu de escrever ficção por 25
anos.
O que é importante, essas obras
iniciais e inéditas demonstram que Said não era apolítico antes da Guerra dos
Seis Dias em 1967, como se costuma acreditar. “Isso é um mito – de diversas
formas, antes disso, ele estava profundamente envolvido nas coisas com que mais
tarde construiu sua carreira”, diz Brennan. “Está completamente formado”.
Em 1987, Said deu início a seu
segundo romance, um thriller político sobre traição. Passado em Beirute em
1957, “está cheio de espionagem, muito próximo de um romance de John le Carré.
Ele é todo sobre as intrigas políticas que circundaram a invasão
norte-americana e as diferentes forças envolvidas.”
Said escreveu por volta de 50
páginas, mas abandonou-o para escrever seu livro de memórias quando foi
diagnosticado com leucemia. Ele se tornou ainda mais convencido de que “no fim
das contas, intelectuais são mais importantes” que autores: “São eles que mudam
os itinerários e desafiam o poder.”
Tradução livre de Guilherme
Mazzafera para “Unfinished manuscripts that lay behind Palestinian critic’s
stated contempt for fiction”, publicado aqui no The Guardian em 21 fev. 2021:
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