Fiódor Dostoiévski, o filósofo da liberdade
Por Gary Saul Morson
Dostoiévski. Fotografia em Paris por Émile Bondonot (c. 1862) |
No dia 22 de dezembro de 1849, um
grupo de ativistas radicais foi retirado de suas celas na Fortaleza de São
Pedro e São Paulo em São Petersburgo, onde foram interrogados por oito meses. Foram
levados para a Praça Semenovski e ali ouviram suas sentenças de morte por
fuzilamento. Receberam longas batas brancas de camponês e gorros — suas
mortalhas — e foi oferecida a extrema unção. Os três primeiros presos foram
agarrados pelos braços e amarrados a um poste. Um deles se recusou a ser
vendado e olhou desafiadoramente para as armas apontadas em sua direção. No
último minuto, os soldados baixaram as armas quando um mensageiro entra a
galope com um decreto imperial substituindo suas sentenças de morte por
reclusão num campo de prisioneiros na Sibéria, seguido por um período de
serviço militar no exército. Esse resgate de última hora, na verdade, foi
planejado com antecedência e fazia parte da punição, um aspecto da vida pública
que os russos entendem especialmente bem.
Segundo os relatos do
acontecimento, dos jovens que suportaram esta terrível provação, um ficou de
cabelos brancos, um segundo enlouqueceu e nunca recuperou a sanidade e o
terceiro, cujo bicentenário de nascimento celebramos em 2021, acabou por
escrever Crime e castigo.
O simulacro de execução e os anos na
prisão siberiana — apresentados em seu romance Memórias da casa dos mortos
(1860) — mudaram Dostoiévski para sempre. Seu romantismo ingênuo e esperançoso
desapareceu. Ele se tornou muito mais religioso. O sadismo dos prisioneiros e
dos guardas ensinou-lhe que a visão otimista da natureza humana sustentada
pelos defensores do utilitarismo, do liberalismo e do socialismo era absurda.
Os seres humanos reais nada tinham a ver com o que essas filosofias promoviam.
As pessoas não estão apenas
interessadas em pão — ou no que esses filósofos chamam de “maximização do lucro”.
Todas as ideologias utópicas pressupõem que a natureza humana é
fundamentalmente boa e simples: o mal e a complexidade são o resultado de uma
ordem social corrupta. Acabe com as diferenças de classes e acabarás com o
crime. Para muitos intelectuais, a própria ciência provou essas afirmações e
apontou o caminho para o melhor de todos os mundos possíveis. Dostoiévski
rejeitou todas essas ideias, que considerava absurdas e sem sentido. “É claro e
é inteligível até à obviedade”, escreveu numa resenha de Anna Kariênina
de Tolstói, “que o mal reside mais profundamente nos seres humanos do que
nossos médicos sociais supõem; que nenhuma estrutura social eliminará o mal;
que a alma humana continuará a ser como sempre foi [...] e, finalmente, que as
leis da alma humana ainda são tão pouco conhecidas, tão recônditas e
misteriosas para a ciência, que existem e não pode haver médicos ou juízes finais”,
exceto o próprio Deus.
Os personagens de Dostoiévski assombram
por sua complexidade. Seu comportamento, imprevisível mas crível, nos mostra
experiências que estão além do alcance das teorias “científicas”. Apreciamos
que as pessoas, longe de maximizar seus próprios benefícios, às vezes tornam-se
vítimas deliberadamente para, por exemplo, se sentirem moralmente superiores.
Em Os irmãos Karamázov (1880), o Padre Zósima percebe que pode ser muito
agradável sentir-se ofendido, e Fiódor Pavlovich responde que pode até ser algo
superior.
De fato, as pessoas se prejudicam
por vários motivos. Metem o dedo nas feridas e têm um prazer curioso em fazê-lo.
Humilham-se deliberadamente. Para sua própria surpresa, têm impulsos,
decorrentes de ressentimentos reprimidos durante anos, que os levam a provocar
cenas escandalosas ou cometer crimes horríveis. Freud gostou especialmente da
exploração de Dostoiévski da dinâmica da culpa. Mas nem Freud nem a maioria dos
leitores ocidentais compreenderam que Dostoiévski pretendia que suas descrições
da complexidade humana transmitissem lições políticas. Se as pessoas são tão
surpreendentes, tão “indefinidas e misteriosas”, os engenheiros sociais estão
destinados a fazer mais mal do que bem.
O narrador de Memórias da casa
dos mortos descreve como os prisioneiros, sem motivo aparente, às vezes
fazem coisas tremendamente autodestrutivas. Atacar um guarda, mesmo sabendo que
a punição — receber uma surra de milhares de golpes — pode ser fatal. Por quê?
A resposta é que na essência do humano está a possibilidade de surpresa. O
comportamento dos objetos materiais pode ser totalmente explicado por leis
naturais, e para os materialistas, se ainda não, o mesmo também acontecerá com
as pessoas num futuro próximo. Mas as pessoas não são objetos materiais e farão
qualquer coisa, por mais autodestrutiva que seja, para demonstrar que não o
são.
O objetivo da prisão, como
Dostoiévski a experimentou, é restringir a capacidade das pessoas de tomar suas
próprias decisões. No entanto, é a capacidade de escolha que nos torna humanos.
Esses prisioneiros atacam seus carcereiros como consequência de seu desejo
imanente de possuir vontade própria, e esse desejo é, em última análise, mais
importante do que seu próprio bem-estar e até mesmo sua própria vida.
O narrador anônimo da novela de
Dostoiévski de 1864, Memórias do subsolo (comumente chamado de “o homem
do subsolo”) insiste que a aspiração das ciências sociais de descobrir as leis
de ferro do comportamento humano ameaça reduzir as pessoas a uma “tecla de
piano ou de um pedal de órgão”¹. Se essas leis existem, “se realmente se
encontrar um dia a fórmula de todas as nossas vontades e caprichos”, raciocina,
então cada pessoa perceberá que “tudo é feito de acordo com as leis da natureza”.
Assim que essas leis forem descobertas, as pessoas não serão mais responsáveis
por seus atos. E mais:
Todos os atos humanos serão calculados,
está claro, de acordo com essas leis, matematicamente, como uma espécie de
tábua de logaritmos, até 108.000, e registrados num calendário; ou, melhor
ainda, aparecerão algumas edições bem-intencionadas, parecidas com os atuais
dicionários enciclopédicos, nas quais tudo estará calculado e especificado com
tamanha exatidão que, no mundo, não existirão mais ações nem aventuras. [...]
Erguer-se-á então um palácio de cristal [...]
Não haverá mais aventuras porque
aventuras implicam acaso, e acaso implica encontrar-se em situações cruciais:
dependendo do que se faça, é possível mais de um resultado. Mas, para um
determinista, as leis da natureza garantem que apenas uma coisa pode acontecer
em um determinado momento. O acaso é apenas uma ilusão em decorrência de nossa
ignorância sobre o que findará por acontecer.
Nesse caso, todas as agonias que produz
uma escolha são inúteis. O mesmo ocorre com a culpa e o arrependimento, uma vez
que ambas as emoções dependem da possibilidade de ter agido de forma diferente.
Experimentamos o que devemos experimentar, mas não alcançamos nada. Como disse
Tolstoi em Guerra e paz: “Se aceitarmos que a vida humana pode ser
governada [exaustivamente] pela razão, então se destrói a possibilidade da vida.”
A visão supostamente “científica”
da humanidade transforma as pessoas em objetos — claramente as desumaniza — e
não existe insulto maior. “Era o coração que praticava de certo modo uma
torpeza... No caso, não se podia sequer culpar as leis da natureza, embora,
realmente, as leis da natureza me ofendessem sempre e mais que tudo, a vida
inteira.” — observa o homem do subsolo ironicamente, e conclui que as pessoas
se rebelarão contra qualquer negação de sua humanidade. Elas se sentirão “rejeitadas”,
como ele diz, sem nenhuma razão, exceto para mostrar que podem agir contra seus
próprios interesses e contra o que as chamadas leis da psicologia humana
predizem.
“Chamam-me de psicólogo; mas não é
verdade”, escreveu Dostoiévski. “Sou simplesmente um realista no sentido mais
elevado, isto é, retrato todas as profundezas da alma humana.” Dostoiévski negava
ser psicólogo porque, ao contrário dos profissionais dessa disciplina, reconhecia
que as pessoas são verdadeiros agentes, que tomam decisões reais pelas quais
têm de se responsabilizar.
Por mais que se descrevam
minuciosamente as forças psicológicas ou sociológicas que atuam sobre uma
pessoa, sempre há algo deixado de fora, um “excedente de humanidade”, como
disse o filósofo Mikhail Bakhtin, parafraseando Dostoiévski. Apreciamos esse
excedente, “o homem no homem”, como Dostoiévski o chamou, e o defenderemos a
todo custo.
Uma passagem de Memórias do
subsolo que lembra os romances distópicos modernos, obras como Nós (1920-21),
de Ievguêni Zamiátin ou Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley,
onde heróis se rebelam contra a felicidade garantida. Eles querem ter suas
próprias vidas. Coloca o ser humano numa utopia, diz o homem do subsolo, e ele conceberá
formas de “destruição e caos”, cometerá ações perversas e, se tiver oportunidade,
regredirá a um mundo de sofrimento. Em suma,
“Desejará conservar justamente os
seus sonhos fantásticos, a sua mais vulgar estupidez, só para confirmar a si
mesmo (como se isto fosse absolutamente indispensável) que os homens são sempre
homens e não teclas de piano, que as próprias leis da natureza tocam e ameaçam
tocar de tal modo que atinjam um ponto em que não se possa desejar nada fora do
calendário.”
Em um ensaio supostamente dedicado
à mania russa de sessões espíritas e comunicação com demônios, Dostoiévski
aborda a objeção cética de que, uma vez que esses demônios poderiam facilmente
provar sua existência nos dando algumas invenções fabulosas, então é impossível
que existam. Eles são apenas uma fraude perpetrada contra os crédulos. O
escritor responde, com um pouco de humor, que esse argumento falha porque os
demônios (isto é, se houver demônios) preveem o ódio que as pessoas acabarão
sentindo pela utopia resultante e pelos demônios que a tornaram possível.
Sem dúvida, num primeiro momento as
pessoas ficariam em êxtase porque, “como os nossos socialistas sonham”, todas
as necessidades seriam satisfeitas, o “ambiente [social] corruptor, que antes
era a fonte de todos os defeitos”, teria desaparecido, e não haveria nada mais
a desejar. Mas em uma geração
“As pessoas veriam de repente que já
não têm mais vida, que não têm liberdade de espírito, nem vontade ou
personalidade [...] veriam que sua imagem humana desapareceu [...] que suas
vidas foram arrebatadas em cestos de pão, de ‘pedras transformadas em pão’. As
pessoas perceberiam que não há felicidade na inatividade, que a mente que não
trabalha se amofina, que não é possível amar os outros sem dar-lhes uma parte
do sacrifício do seu trabalho [...] e que a felicidade não reside na própria
felicidade, mas simplesmente na tentativa de alcançá-la.”
Ou, como observa o homem do subsolo,
os engenheiros sociais imaginam um mundo “completo”, um produto acabado
perfeito. Na verdade, já existe “um edifício surpreendente no gênero,
indestrutível para os séculos: o formigueiro”. O formigueiro se tornou a imagem
favorita de Dostoiévski para descrever o socialismo.
O humano, ao contrário do que só
tem forma, requer não apenas o produto, mas o processo. O esforço só tem valor
quando pode falhar, ao passo que as escolhas só importam se o mundo for
vulnerável e parcialmente dependente de fazermos uma coisa em vez de outra. Por
outro lado, as formigas não escolhem. “As dignas formigas começaram pelo
formigueiro e certamente acabarão por ele, o que confere grande honra à sua
constância e caráter positivo. Mas o homem é uma criatura volúvel e pouco
atraente e, talvez, a exemplo do enxadrista, ame apenas o processo de atingir o
objetivo, e não o próprio objetivo.”
Mas talvez, raciocina o homem do subsolo,
“todo o objetivo sobre a terra, aquele para o qual tende a humanidade, consista
unicamente nesta continuidade de processo de atingir o objetivo, ou, em outras
palavras, na própria vida e não exatamente no objetivo, o qual, naturalmente, não
deve ser outra coisa senão que dois e dois são quatro, isto é, uma fórmula;
mas, na realidade, dois e dois não são mais a vida, meus senhores, mas o começo
da morte.” Quando se multiplica dois por dois, o resultado é sempre o mesmo:
não há suspense, incerteza ou surpresa. Não há o que esperar para ver o que
esses dígitos de multiplicação vão obter desta vez. Se a vida for assim, não
faz sentido. Em um paroxismo de humor furioso, o homem do subsolo conclui:
“Dois e dois são quatro constitui,
a meu ver, simplesmente uma impertinência. Dois e dois fica feito um
peralvilho, atravessado no vosso caminho, as mãos nas cadeiras, cuspindo. Estou
de acordo em que dois e dois são uma coisa admirável; mas, se é para elogiar
tudo, então dois e dois são cinco também constitui, às vezes, uma coisinha
muito simpática.”
Na mesma linha, um personagem do
romance de Dostoiévski O idiota (1869) afirma: “Oh, podem estar certos
de que Colombo foi feliz não no momento em que descobriu a América mas quando a
estava descobrindo; [...] A questão está na vida, apenas na vida —no seu
descobrir-se, contínuo e eterno, e de maneira alguma na sua descoberta!”²
As pessoas estão sempre em
processo de construção ou, como disse Bakhtin, estão “incompletas”. Conservam a
capacidade de “falsificar qualquer terceirização e definição externalizada e definitiva
delas. Enquanto uma pessoa está viva, vive do fato de que ainda não terminou,
de que ainda não pronunciou sua última palavra”.
A ética exige que tratemos as
pessoas como pessoas, não como objetos, e isso significa que devemos tratá-las
como seres capazes de nos surpreender. Nunca se deve estar muito seguro acerca
dos outros, coletiva ou individualmente. Em Os irmãos Karamázov, Aliócha
explica a Lise que o empobrecido e humilhado capitão Snieguirióv, que
orgulhosamente rejeitou uma grande quantia que lhe foi oferecida, certamente a
aceitará se ela lhe for oferecida novamente. Como você já salvou sua dignidade
humana, certamente aceitará o presente de que tanto precisa. Lise responde:
“Escute, Alieksiêi Fiódorovitch,
será que não há em todo esse nosso raciocínio, ou seja, seu raciocínio… não, é
melhor nosso… será que não há um desprezo por ele, por aquele infeliz… no fato
de estarmos esquadrinhando sua alma de um jeito arrogante, hein? No fato de que
acabamos de resolver com tanta certeza que ele vai aceitar o dinheiro, hein?”
Dostoiévski compreendeu não apenas
nossa necessidade de liberdade, mas também nosso desejo de nos livrar dela. A
liberdade tem um custo terrível, e os movimentos sociais que prometem nos
libertar dela sempre terão seguidores. Esse é o assunto das páginas mais
famosas que escreveu, “O Grande Inquisidor”, um capítulo de Karamázov. O
intelectual Ivan recita a seu santo irmão Aliócha seu “poema” oral em prosa
para mostrar-lhe suas preocupações mais profundas.
Ambientado na Espanha durante a
Inquisição, a história começa com o Grande Inquisidor queimando hereges em um
auto-de-fé. Enquanto as chamas perfumam um ar já rico em louro e limão, o povo,
como ovelhas, assiste ao terrível espetáculo com veneração servil. Quinze
séculos se passaram desde que Jesus prometeu voltar rapidamente e eles anseiam
por algum sinal dele. Então, com sua infinita piedade, Ele decide mostrar-se ante
eles. Suavemente, silenciosamente, se move entre eles, e eles o reconhecem
imediatamente. “Esta poderia ser uma das melhores passagens do poema justamente
porque O reconhecem”, diz Ivan com uma autocrítica irônica. Como eles sabem que
ele não é um impostor? A resposta é que, quando alguém está na presença da
bondade divina, é tão bela que é impossível duvidar.
O Inquisidor também sabe quem é o
estranho e imediatamente ordena sua prisão. O pastor de Cristo é quem manda
prendê-lo! Por quê? E por que os guardas obedecem e o povo não resiste? Sabemos
a resposta a essas perguntas quando o Inquisidor visita o Prisioneiro em sua
cela e abre seu coração para ele.
Ao longo da história humana,
explica o Inquisidor, houve um choque entre duas visões da vida e da natureza
humana. Para se adaptarem ao tempo e ao lugar, mudaram-se constantemente seus
nomes e dogmas, mas em essência sempre foram os mesmos. Uma visão, que o
Inquisidor rejeita, é a de Jesus: o ser humano é livre e a bondade só faz
sentido quando é livremente escolhida. A outra visão, sustentada pelo
Inquisidor, é que a liberdade é um fardo insuportável porque leva a uma culpa
sem fim, ao arrependimento, à ansiedade e às dúvidas insolúveis. O objetivo da
vida não é liberdade, mas a felicidade, e para ser feliz as pessoas devem se
livrar da liberdade e adotar alguma filosofia que afirma possuir todas as
respostas. O terceiro irmão dos Karamázov, Dmitri, comenta: “o homem é vasto,
vasto até demais; eu o faria mais estreito”, e o Inquisidor garantiria a
felicidade humana “estreitando” a natureza humana.
O catolicismo medieval fala em
nome Cristo, mas na verdade representa a filosofia do Inquisidor. É por isso
que o Inquisidor prendeu Jesus e pretende queimá-lo como o maior dos hereges.
Em nossa época, esclarece Dostoiévski, a visão da vida do Inquisidor assume a
forma de socialismo. Como no catolicismo medieval, as pessoas renunciam à liberdade
em lugar da segurança e substituem as agonias da escolha com a satisfação da
certeza. Ao fazer isso, ele renuncia à sua humanidade, mas o trato vale a pena.
Para explicar sua posição, o
Inquisidor reconta a história bíblica das três tentações de Jesus, uma história
que, em sua opinião, expressa os problemas essenciais da existência humana como
somente uma inteligência divina poderia fazer. Você pode imaginar, pergunta
retoricamente, que se essas perguntas tivessem sido perdidas, qualquer grupo de
sábios poderia tê-las recriado?
Na paráfrase do Inquisidor, o
diabo exige primeiro:
“‘Queres ir para o mundo e estás
indo de mãos vazias, levando aos homens alguma promessa de liberdade que eles,
em sua simplicidade e em sua imoderação natural, sequer podem compreender, da
qual têm medo e pavor, porquanto para o homem e para a sociedade humana nunca
houve nada mais insuportável do que a liberdade! Estás vendo essas pedras neste
deserto escalvado e escaldante? Transforma-as em pão e atrás de ti correrá como
uma manada a humanidade agradecida e obediente, ainda que tremendo eternamente
com medo de que retires tua mão e cesse a distribuição dos teus pães’.”
Jesus responde que o homem não
vive só de pão. É verdade, responde o Inquisidor, mas justamente por isso Jesus
deveria ter aceitado a tentação do diabo. As pessoas, com efeito,
anseiam o significativo, mas nunca têm certeza de saber distinguir entre o que
é realmente significativo e as falsificações. É por isso que os não-crentes são
perseguidos e as nações são conquistadas para convertê-los a uma fé diferente,
como se o acordo universal fosse em si uma prova. Só há uma coisa de que
ninguém pode duvidar: do poder material. Quando experimentamos um grande
sofrimento, isso, pelo menos, é inquestionável. Em outras palavras, o apelo do
materialismo é espiritual! As pessoas aceitam porque é certo.
O Inquisidor censura a Jesus que,
em vez de alegrar as pessoas tirando o peso da liberdade, o que ele conseguiu
foi ... aumentar! “Ou esqueceste que para o homem a tranquilidade e até a morte
são mais caras que o livre-arbítrio no conhecimento do bem e do mal? Não existe
nada mais sedutor para o homem que sua liberdade de consciência, mas tampouco
existe nada mais angustiante.” As pessoas querem se sentir livres, não
querem ser, e assim, raciocina o Inquisidor, a coisa certa a fazer é
chamar a não-liberdade de liberdade melhora, como os socialistas tendem a
fazer.
Para fazer as pessoas felizes,
todas as dúvidas devem ser banidas. As pessoas não querem receber informações
que, como diríamos hoje, contradizem sua “história”. Farão o que for preciso
para evitar que eventos indesejados cheguem ao seu conhecimento. A trama de
Karamázov, na verdade, gira em torno do desejo de Ivan de não admitir para si
mesmo que deseja a morte do pai. Sem se permitir isso, ele abre o caminho para
o assassinato desejado. Não se pode começar a entender as pessoas ou a
sociedade se não entender as múltiplas formas que existem do que poderíamos
chamar de epistemologia preventiva.
Então o diabo tenta Jesus para
demonstrar sua divindade atirando-se de um lugar alto para que Deus possa
salvá-lo com um milagre, mas Jesus se recusa. O motivo, segundo o Inquisidor, é
mostrar que a fé não deve ser baseada em milagres. Uma vez que se é testemunha
de um milagre, fica-se tão sobrecarregado que a dúvida é impossível, e isso
significa que a fé é impossível. Bem entendida, a fé não é como o conhecimento
científico ou a prova matemática, e não se parece em nada como a aceitação das
leis de Newton ou do teorema de Pitágoras. Só é possível em um mundo de
incerteza, porque só então se pode escolher livremente.
Pelo mesmo motivo, é preciso se
comportar moralmente para não ser recompensado, seja neste mundo ou no próximo,
mas simplesmente porque é a coisa certa a se fazer. Comportar-se moralmente
para ganhar uma recompensa celestial transforma a bondade em prudência, como
economizar para a aposentadoria. Claro, Jesus fez milagres, mas se você crê em
Deus como consequência deles, então — apesar do que muitas igrejas dizem — você
não é um cristão.
No final, o diabo oferece a Jesus
o império do mundo, que ele rejeita, embora, segundo o Inquisidor, ele devesse
tê-lo aceitado. A única maneira de manter as pessoas fora da dúvida, diz ele a
Jesus, é por meio de milagres, do mistério (basta acreditar em
nós, sabemos do que estamos falando) e da autoridade, algo que poderia
garantir um império universal. Apenas alguns indivíduos fortes são capazes de
ser livres, explica o Inquisidor, assim é que a sua filosofia condena a maior
parte da humanidade à miséria. E assim, o Inquisidor conclui assustadoramente, “corrigimos
tua façanha”.
Em Os demônios (1871),
Dostoiévski prediz com surpreendente precisão como seria o totalitarismo na
prática. Em Karamázov, ele se pergunta se a ideia socialista é boa mesmo
na teoria. Os revolucionários de Os demônios são desprezíveis, mas o
Inquisidor, por outro lado, é alguém totalmente desinteressado. Sabe que irá
para o inferno por corromper os ensinamentos de Jesus, mas está disposto a
fazê-lo por amor à humanidade. Resumindo, ele trai a Cristo por motivos
cristãos! Na verdade, ele vai além de Cristo, que deu sua vida terrena, ao
sacrificar sua vida eterna. Dostoiévski aguça esses paradoxos ao máximo. Com
sua integridade intelectual incomparável, ele retrata o melhor socialista
possível, ao mesmo tempo em que esclarece os argumentos a favor do socialismo
com mais profundidade do que os verdadeiros socialistas.
Aliócha, por fim, exclama: “Mas...
isso é um absurdo! [...] Teu poema é um elogio a Jesus e não uma injúria...
como querias.” Todos os argumentos vieram do Inquisidor, e Jesus não disse uma
palavra em resposta: como pode ser isso? Faça a si mesmo a seguinte pergunta:
depois de ouvir os argumentos do Inquisidor, você quereria renunciar de
qualquer escolha em troca de uma garantia de felicidade? Deixaria que fosse um
sábio substituto de seus pais a tomar as decisões por você, permanecendo para
sempre uma criança? Ou existe algo mais elevado do que a simples felicidade?
Venho fazendo essa pergunta aos meus alunos há anos, e nenhum aceitou o
tratamento do Inquisidor.
Vivemos em um mundo em que a
maneira de pensar do Inquisidor está se tornando cada vez mais atraente.
Cientistas sociais e filósofos presumem que as pessoas são simplesmente objetos
materiais complicados, não mais capazes de surpreender genuinamente do que as
leis da natureza de se suspendê-las. Os intelectuais, cada vez mais confiantes
de que sabem fazer justiça e fazer felizes as pessoas, veem a liberdade dos
outros como um obstáculo ao bem-estar da humanidade.
Para Dostoiévski, por outro lado,
a liberdade, a responsabilidade e a capacidade de surpreender definem a
essência humana. Essa essência torna possível tudo de valor. A alma humana é
“tão pouco conhecida, tão remota e misteriosa para a ciência, que não há nem
pode haver médicos ou juízes finais”, apenas pessoas sempre incompletas sob um
Deus que lhes deu a liberdade.
Nota da tradução:
1 As traduções de livros de
Dostoiévski citados neste texto são: Memórias do subsolo (Boris Schnaiderman,
Editora 34, 2009); O idiota (Paulo Bezerra, Editora 34, 2020); Os
irmãos Karamázov (Paulo Bezerra, Editora 34, 2008).
* Este texto é tradução livre de “Fyodor Dostoevsky: philosopher
of freedom”, publicado aqui, em The New Criterion.
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