Farmácia Literária ou a cura pelo romance
Por Pablo Augusto-Silva
Farmácia Literária, ainda que não
original, é uma obra singular. Ella Berthoud & Susan Elderkin criaram um
livro que poderíamos classificá-lo como de 1001 utilidades — misto de dicionário
analógico, autoajuda, receituário, crítica literária, manual para biblioterapeutas — mas, para além de tudo isso, indicações ao grande público de boas obras
literárias, de best-sellers às ilustres desconhecidas. As autoras listaram uma
série de problemas ou doenças, físicas e emocionais, e para cada uma sugere a leitura
de uma obra de ficção.
A primeira lista, “Males de A a
Z” (p. 11-360) segue com verbetes como: “abandonar o barco, desejo
de”, “câncer, cuidar de alguém com”, “concentração,
incapacidade de”, “diferente, ser”, “fobia”, “internet, vício em”, “inveja”, “maternidade”, “nariz, detestar o seu”, “ódio”, “pânico, ataque
de”, “pesadelos”, “quarenta anos, ter”, “ressentimento”, “sentido, falta de”, “tagarela,
ser”, “terminar, medo de”, “TPM”, “trinta anos,
ter”, “vender a alma”, “vingança, em busca de”, “vinte anos, ter”, “xenofobia”, “zumbido no
ouvido” etc.
Na segunda lista, vem um índice de
males ligados à leitura, do qual cito alguns: “Aflito pelo número de
livros na sua casa (cura: xxxxxx)”, “Ficção científica, vício em (cura:
xxxxxx)”, “Livros, compulsão por ter (cura: xxxxxx)”, “Ocupado demais para ler (cura: xxxxxx)”, “Passar os olhos
superficialmente, tendência a (cura: xxxxxx)” etc. Não citei as curas
propositalmente, para aguçar a sua curiosidade...
Na terceira, temos um índice com uma
lista de “melhores livros para...”. Algo como “os melhores
livros escapistas”, “os melhores livros para chocar”, “os
melhores livros para curar os xenófobos”, “os melhores livros para os
muito tristes”, “os melhores livros para quem está na casa dos
vinte”, “os melhores livros para quem está na casa dos quarenta”, “os melhores livros sobre rompimento” etc.
Ao fim, na quarta lista um índice de centenas de autores e os quatrocentos livros sugeridos (alguns autores têm mais de
uma obra indicada) para cada problema nos verbetes “Males de A a Z”:
“ABE, KOBO, Mulher das dunas
[27]”
“JACOBS, KATE, O clube do
tricô [78]”
“NABOKOV, VLADIMIR, Lolita
[315]"
“SARAMAGO, JOSÉ, Caim [203];
Ensaio sobre a cegueira [91]”
“TABUCCHI, ANTONIO, Afirma
Pereira [250]”
Etc.
Os números que pus entre colchetes
referem-se à página onde você encontrará o livro listado e para qual problema ele
é indicado.
Este criativo livro, afora ser uma
boa ferramenta para terapeutas, serve tanto para autoconhecimento como para
indicar a amigos, colegas de trabalho, vizinhos, alunos, familiares e — pasmem! — até mesmo àquelas com quem provavelmente conversaremos apenas uma vez na vida
como a pessoa desconhecida que nos acompanha na poltrona ao lado — no ônibus, no
Uber, no avião, no metrô, no cafezinho da padaria...
A tradução do título como Farmácia
é bem apropriada porquanto ao invés de remédios, já que não temos conhecimento
nem autoridade profissional para receitá-los, podemos pelo menos indicar uma
boa obra a quem está passando por determinado problema. (Não preciso dizer que
nada substitui a busca por ajuda profissional e especializada, mas em tempos de
fake-news e negacionismo científico em meio a uma pandemia, para não dizer que
não falei de ciência, está falado...)
É fato que alguém poderia criticar
a obra porque os autores e livros indicados é, em sua grossa
maioria, de língua inglesa. Concordo, mas ressalvaria que tal fato é não só um
defeito menor no contexto de sua proposta editorial como, pelo contrário, pode até
ser uma vantagem se pensarmos que as autoras, formadas em literatura inglesa, selecionaram
obras que fazem parte do universo do seu universo de convívio profissional, portanto, a
seleção é menos amadora e mais acurada, isto é, de curadoria no sentido
profissional do termo, pois separar joio e trigo é o que esperamos de
especialistas como curadores e organizadores de obras temáticas. Não à-toa, as
obras selecionadas terem um recorte textual específico: são apenas romances (e
novelas, entendidas como romances curtos no contexto da obra) como, aliás,
sugere o título do livro original (Novel cure).
É um daqueles livros que, como
toda obra de referência, tem o potencial de nos servir para toda a vida e que
cada um de nós, como leitores e graças aos inúmeros aplicativos, pode ir acrescentando
outras obras que julgarmos serem dignas de lidar com determinados, senão
inúmeros, problemas que nos afligem atualmente, em especial os emocionais numa
era de quase pós-pandemia. Livro recomendado inclusive a negacionistas que
adoram uma automedicação.
Ella Berthoud & Susan Elderkin. Farmácia Literária. Tradução Cecília Camargo Bartalotti. Rio de Janeiro: Verus, 2016. 378 págs. ISBN: 978-85-7686-286-4. (Título original: The novel cure)
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