Faça-se você mesmo, de Enzo Maqueira
Por Pedro Fernandes
Enzo Maqueira. Foto: Pablo Montero |
Muitos são os motivos que obrigam
alguém a estabelecer em ultimato itinerários que não se anteviam; nem sempre os
motivos da fuga são antevistos pelo fugitivo: a fúria da natureza, o desmanche
de uma condição mínima de sobrevivência em comunidades sequestradas por
governos espúrios, de um grave erro capaz de levá-lo à condena no seu grupo
social, por uma oportunidade irrecusável — sim, ainda existem casos fora do
circuito das negatividades —, enfim, as possibilidades são muitas. Mas, e quando
a fuga é deliberada, do que fogem? Da insatisfação com o lugar de morada, de um
amor problemático, em busca de outro modo de vida? Nesse caso, a justificativa
parece não importar. Mesmo se bem ajambrada, no final da reta, é a busca por si,
o que nem sempre aparece assim visível a olho nu por quem foge, principalmente
se este não está disponível ou não encontra no outro a dimensão capaz de
favorecer qualquer coisa que poderíamos designar como a luz no fim do túnel
para o ser.
Situado num tempo que designamos a
partir de Milan Kundera, como o dos paradoxos terminais, isto é, um agora feito
de iminências e de crises, a personagem engendrada pela narrativa de Faça-se
você mesmo se filia muito bem no grande trânsito dos indivíduos profundamente
marcados por algum motivo exterior mas que estão afetados pelo impasse de se
descobrirem ou estabelecerem consigo uma autenticidade, o tratamento que de alguma
maneira permite enxergarmos qual nossa presença entre a coletividade. Há, portanto,
um mistério fermentado quanto mais o tempo novo quer se estabelecer, mas com
ele, cada vez mais se nota que a força motriz para a fuga é feita de pulso interior
marcadamente desfeito, solapado por um motivo de espera como se o exterior
pudesse desempenhar a atitude que resta apenas ao próprio indivíduo.
Essa condição subjetiva não é
característica e nem determinada neste tempo, mas a expansão da técnica acelerou
ou agravou os limites da crise e assim tais sujeitos, como o protagonista deste
romance de Enzo Maqueira, aparecem encalacrados entre o que o mundo exterior
cobra deles e o que interiormente não conseguem oferecer. Ora estrategicamente ora
pelo impasse nascido entre esses dois limites, resta a estes o lugar de fronteira
— este que se marca de maneira muito diversa em Faça-se você mesmo, num
tratamento que visa articular forma e conteúdo, base que, quando bem
executada (e é este o caso), é sempre o traço essencial, mesmo que não o único,
de uma obra literária.
Assim, o fronteiriço neste romance
principia pela fuga repentina do protagonista, que troca o grande centro urbano
pelo interior, como se buscasse se reintegrar com uma vida mais original, centrada
não no movimento monótono que privilegia o trabalho sobre a experiência mas integrado
a esta e abrindo-se para o trabalho. Com o abandono de Buenos Aires pelo
vilarejo de San Benito, a personagem deixa a tarefa de homem do mercado de
negócios motivacionais, um dos ramos sempre em ascensão nesta sociedade do
imperativo da técnica e um desses aparelhos de conforto aos seus indivíduos
junto à psicanálise e ainda a religião. Todo seu esforço é o de burilar um modo
de vida talvez centrado na prática de suas próprias lições de conforto e tentar
redigir o roteiro para um filme. Isto é, em parte, uma saída do modo de produção
pela repetição para a criação.
A estas fronteiras somam-se a da
região onde o protagonista de Faça-se você mesmo busca seu refúgio
depois de dois acontecimentos que formam o segredo da narrativa; do limite
maior para o menor, temos: a Patagônia, região fronteiriça do sul da Argentina
espremida entre montanhas, deserto e oceanos; a casa de San Benito que
pertenceu aos avós maternos situada exatamente entre o deserto e o mar e a meio
caminho de outro centro urbano melhor desenvolvido, certa sombra da metrópole
deixada na fuga; a vida e o modo de viver da personagem — entre o distante
passado de quando visitava os avós no veraneio e a casa era uma espécie de
pequeno oásis na aridez e o presente marcado pela solidão assombrada por essas
memórias, pelo acontecido em Buenos Aires, a decrepitude da casa no presente da
personagem e a aparição de um vizinho que casualmente ou não inicia um trabalho
de dupla valia, ora a dilapidação das fronteiras desta casa-reduto sob a desculpa
de construir sua privacidade ora do estabelecimento de outros limites, designadamente
um muro que quase sufoca a macieira sobrevivente no quintal da casa dos avós e
esconde a vista para o deserto e a derrubada da acácia plantada pelo avô que
demarca as linhas entre esta casa e a do vizinho.
Reparamos nas correntezas de
violência que correm nos subterrâneos das circunstâncias. Do aparente
despretensioso incurso deste homem, por exemplo, a personagem é arrastada para
duas vazões distintas: certa parte do idílico passado quando se descobre
apaixonado pela música do Queen, uma vez que as feições do vizinho reanimam
integralmente as de Freddie Mercury, vocalista desse grupo de rock; e de quando
o avô, de posse de uma arma ainda encontrada pelo neto, matava os gatos da
vizinhança que corriam pela sua propriedade. A estes episódios é possível acrescentar
as histórias de um avô que participou ou não da guerra como combatente, as
memórias de quando em criança assistia ao amigo na matança de lagartos — gesto
por ele sempre procurado cumprir — e o segredo que o empurra do norte para o
sul da Argentina, o do complicado amor com Martina virado para o avesso.
A figura do vizinho perfaz outra
zona fronteiriça, a que invalida os limites da imaginação e do mundo visível. Além
desses limites, podemos acrescentar os da vida e da morte, uma vez que este
jovem suspeita de alguma doença terminal, outro fator decisivo para se abrigar
em San Benito. É neste limiar que se instaura certa urgência de uma
aprendizagem pela vida — algo que ironicamente se dispôs a oferecer como se um desses
coach mas se demonstra um incapaz de levar adiante quando se encontra
confrontado com a prática de suas estratégias. A nova vida que busca e se
confunde logo com a necessidade de reinvenção / descoberta de si, instaura outra
fronteira: a de transição de um domínio exclusivamente verbal — a autoajuda é
uma prática situada no âmbito da retórica suspeitosa, bem sabemos — para o
plano da imagem, visto o interesse da personagem se desenvolver em torno da
obsessão por encontrar o episódio ideal, capaz de desencadear na feitura de um
filme que quanto mais avança o tempo e se multiplicam as ideias mais se torna uma
obra impossível.
É no limite entre o verbal e a imagem
que o narrador de Enzo Maqueira situa sua narração. Isto é, instala-se aqui, a
relação entre tema e forma. E é rico o diálogo interartes: ora são episódios que
recordam cenas de peças cinematográficas ora são essas cenas que alcançam a
potência visual advinda pela palavra. Quer dizer, esta não é uma obra que se
apropria de protocolos da sétima arte para uso na literatura, mas uma acertada
tentativa de articular as duas linguagens. Por isso que todo uso de recursos,
como corte e a objetividade, para situar dois dos mais comuns, são o mínimo a
se observar no tratamento procedimental da narração, visto que, se prevalece a
interferência desses modos discursivos. Agora, o valor disso é mais que implicar
conteúdo e forma.
Recordemos as duas obsessões do
protagonista de Faça-se você mesmo: descobrir-se e conseguir escrever o
roteiro ideal de um filme. Para cada uma delas, essa personagem não dispõe nada
mais que a vontade — correndo o risco de não realizar nem um e nem outro
interesse. Mas, enquanto isso não se constitui (nem diremos se isso acontece), este
jovem encena-se. Embora não seja este um romance escrito em primeira pessoa —
outra decisão acertada do escritor argentino porque se distancia do vício da crise
do sujeito que se confunde com a do autor numa época quando, muitas vezes
erroneamente, estreitamos os limites entre ficção e vida — esse tratamento é
muito visível. Como notamos, embora a ruína da memória invada continuamente o
dia-a-dia da personagem no retorno a San Benito, o que se ensaia é uma vida
outra, que sobreponha o tempo de Buenos Aires, que mesmo recuperando qualquer
coisa do idílico da infância seja um tempo presente autêntico. Essa figura se
ensaia para ser um outro, da mesma maneira que um ator ensaia para assumir uma
personagem. Eis, portanto, a marca essencial, o sentido fundamental que
alimenta o enredamento entre as duas extensões de linguagem.
Essa leitura encontra-se justificada
não apenas nas relações conteúdo-forma. Das recordações do protagonista lhe
chegam um episódio de quando o avô oferece algumas lições para uso de
estilingue, interesse formado do convívio de idas ao deserto da Patagônia com o
amigo Leandro; depois de muitas tentativas, cobrando postura e firmeza do neto
para manejo da arma, o avô desiste da empreitada com a expressão-título do
romance que se reitera na profissão assumida: “Faça-se você mesmo”. Este
momento cobra pelo menos três leituras: a primeira justifica no infante certo
desejo de ser outro, isto é, eis o motivo profundo da articulação literatura-cinema
não apenas pela interferência de duas linguagens como pela sua natureza em
comum. Depois, na também fronteiriça relação entre o menino de apartamento —
para utilizar de uma expressão do próprio protagonista quando tomando banho de
sol nu no quintal é surpreendido pelo vizinho-Freddie-Mercury — e o menino do
campo, de forças irreconciliáveis; e ainda a demonstração de uma natureza fragilizada
que resulta no jovem de agora, incapaz de assumir uma postura mais firme, por
exemplo, ante a atitude desmesurada do seu vizinho ou, antes, o zelo mesurado
com o qual alimenta seu pavor pelos cães.
Este sujeito que se encena encontra
marcado pela tentativa de alcançar ser o outro imaginado na educação do avô: o
homem da força e não o capaz de superar os obstáculos pelo manejo da palavra.
Sua cisão entre interior e exterior parece se localizar especificamente aqui: a
posição em possibilidade é parte da não confirmação do papel social que dele
esperam. Um episódio singular nesse sentido é a visita da polícia quando recebe
a denúncia de algum vizinho acusando-o de atirar contra os cães do vilarejo.
Não confirmado o crime no prenúncio de uma arma velha demais para atirar, o
desfecho desse quadro é com abertura da casa para que os policiais colham maçãs.
Daqui se organizam os acontecimentos finais do romance que entram especificamente
numa zona de indecibilidade, arrastando mesmo todas as circunstâncias do relato
que podem ser lidas como um longo sonho dessa personagem — uma das obsessões reiteradas
continuamente nos fragmentos de possíveis roteiros para filmes nunca
realizados.
Enzo Maqueira exercita algo
curioso: o impasse fronteiriço interior-exterior implica, como é esperado, no
funcionamento da própria narrativa. É que, embora os acontecimentos apareçam
narrados com um realismo cortante e objetivo, tudo está preso nessa região
limiar (outra vez) do acontecido ou apenas projetado para acontecer, como se o
que lêssemos fosse o roteiro para um filme. Mas o por-acontecer não está contado
num futuro hipotético e sim num hipotético presente. Para que o leitor possa
compreender melhor esse efeito, a passagem a seguir é esclarecedora. É um dos
últimos episódios do romance e nele se encena a invasão do quintal do vizinho
pela personagem que noutro tempo (e agora depois de regressar a San Benito)
sempre espiona desde o alto da macieira. Notem o simbólico valor da árvore para
o conhecimento — essa é outra rica dimensão do romance de Maqueira que não comentamos,
mas não deve ser desprezada.
“Atravessa uma grade recém-pintada
e pisa pela primeira vez no quintal do vizinho. Nunca soube se os Cuchicullione
percebiam que ele os espiava da macieira. Quando a família foi embora de San
Benito, ele continuou espiando, apesar de já não haver mais ninguém. Por isso
agora lhe parecem tão familiares a torneira que salta à vista da parede, o quadrado
com terra seca que no passado foi uma caixa de areia, o galpão onde os irmãos
guardavam as bicicletas. O mesmo com a cerca que o vizinho derrubou para erguer
o muro e deixou enrolada num canto. Mas o galho sagrado se destaca entre os
sacos de cimento. Parece um meteorito que caiu num lugar qualquer. Ele agacha
para tocar a madeira: a casca solta, as marcas do corte na ponta dos dedos. Não
parece feito com uma cerra elétrica, nem mesmo com uma serra. Levanta-se
desesperado para ir olhar no galpão. Destrava a porta com um golpe de ombro.
Nenhuma ferramenta além de umas chaves de fenda, uma espátula, um balde. Volta
a analisar o corte, agora mais de perto. Parece arrancado, como se o galho
tivesse caído sozinho. Pensa nisso e não consegue acreditar. Será que é tão
idiota assim? Ele pesa o triplo do que pesava aos onze anos. O galho caiu
porque não aguentou seu peso. E enquanto repete isso em sua cabeça, escuta o
ruído do motor — nem sequer é uma serra elétrica, parece mais um cortador de
grama — que vem do outro quintal.
Violinos em crescendo, o reflexo
do sol na arma, os preços no alto-falante do verdureiro, um vento agitando os cabelos
do protagonista. O braço para frente, a mão leva o cano à boca.
Então alguns latidos.
Mal dá tempo de pensar. Aponta a
arma para o cachorro, que vem correndo, furioso, em sua direção. Prende a
respiração; olhos fixos, braço firme. Escuta a voz de Freddie Mercury cada vez
mais perto.”
Observemos a sequência de verbos
no presente que atestam sobre a realização do acontecimento. Entretanto, tudo
isso cai no possível, seja pela informidade do tempo verbal que não atualiza um
passado como é recorrente na ficção e sim o integra numa infinita continuidade.
Não fosse isso suficiente, o narrador titubeia sobre o que narra, ao analisar pelo
ponto de vista de sua personagem a impossibilidade do que vê porque este
confronta com o visto: o galho seco da macieira desfeito não corresponde com a
ação de na noite anterior ter subido para observar o grande fogo no monte que
imagina provocado pela bituca de cigarro descartada de qualquer forma quando aí
esteve. A mesma imprecisão de correspondências nota-se (também aos olhos do
protagonista) na construção repentina do muro e na destruição da acácia pelo
vizinho para recuperar outros dois episódios da narrativa.
Numa altura quando as mais
variadas possibilidades de criação ficcional já foram colocadas em prática — do
zelo excessivo com o fabular ao seu apagamento — ainda encontrar um romance
capaz de nos oferecer qualquer lance de renovação é talvez a melhor surpresa
que os leitores mais atentos buscam numa obra. Enzo Maqueira, como outros da
sua geração, reafirma a vitalidade da forma romanesca.
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